Há mais de 40 anos, a atual sede da EBA – UFBA, conquistada através de uma ocupação estudantil, se mantém firme e forte resistindo às tentativas de desapropriação do terreno.
Rafael Moreno* | Salvador
CULTURA – Escola centenária e segunda Escola de Artes do Brasil, a Escola de Belas Artes (EBA) tem sido terreno de lutas muito importantes no âmbito estudantil, político e artístico da cidade de Salvador.
Localizada no Canela, um bairro de classe média-alta do centro da capital baiana, muitos talvez não saibam que a atual sede da escola é fruto de uma ocupação estudantil. Por mais de 40 anos luta para se manter num dos m² mais caros de Salvador, a centenária Escola já resistiu a diversas tentativas de desapropriação da mesma.
Tal resistência se faz notável numa região onde já tombaram o Colégio Estadual Odorico Tavares, vendido em 2020 pelo então governador Rui Costa (PT). Onde a escola vizinha da EBA, a Escola de Teatro da UFBA (ETUFBA), está há anos tentando recuperar sua sede no bairro, a qual desde 2017 está em uma interminável reforma. Onde o prédio da antiga residência estudantil feminina da UFBA (R3) está a 15 anos abandonada e hoje é sede da Ocupação dos Estudantes da UFBA – Sarah Domingues, bravamente fundada pelo Movimento Correnteza em novembro de 2023.
Para falar um pouco mais de todo o processo histórico envolvendo a EBA e sua luta de resistência entrevistamos Luiz Freire, professor de História da Arte da EBA há 30 anos. Doutorou-se em História da Arte pela Universidade do Porto, Portugal, especialista em cultura e arte barroca pela universidade Federal de Ouro Preto, Bacharel em Museologia pela UFBA e Licenciado em Letras com Francês pela Universidade Católica de Salvador (UCSAL). Foi coordenador do colegiado do curso de Licenciatura em Desenho e Plástica; do colegiado da pós-graduação e vice-diretor da EBA.
A VERDADE – Como chegamos, enquanto EBA, a ocupar esse lugar privilegiado no centro de Salvador?
Luiz Freire – Com a venda da sede localizada na Rua 28 de Setembro no Centro Histórico de Salvador, a EBA passou a funcionar parte nas dependências do Museu de Arte Sacra (Convento de Santa Tereza), parte na casa da Rua Araújo Pinho, onde localiza-se a Galeria Cañizares. Consta, através do registro da memória oral, que o casarão neoclássico datado de 1870 estava ocupado pelo Instituto de Geologia, prestes a se mudar para a nova sede, construída com o dinheiro da venda da sede da EBA.
Essa casa do século XIX estava prometida à EBA, mas surgiu rumores de que ela seria destinada à Escola de Dança, daí o alunado resolveu ocupar a casa, e, graças a essa ação, a EBA pode ter um espaço privilegiado, nem tanto pela infra-estrutura, mas pelo imenso espaço físico, um amplo terreno atrás do casarão, uma considerável área verde, repleta de mangueiras e outras árvores frutíferas, possantes e muitos galpões. Os galpões construídos pelo Instituto de Geologia, a maioria de compensado, passaram a servir de salas de aulas e ateliês.
A VERDADE – Há interesse externo nesse local?
Luiz Freire – As empreiteiras da construção civil se interessam por todos esses remanescentes arquitetônicos de localização privilegiada e amplos terrenos para neles construírem torres, cada vez mais altas. O que sabemos pela oralidade é que esse casarão e seu terreno quase foi negociado ao Supermercado Paes Mendonça na década de 1970. Episódio recente demonstra o quanto os interesses das empreiteiras determinam a gerência desse patrimônio.
O episódio que testemunhamos foi a tentativa de ocupação do terreno do fundo da EBA por uma empresa em um certo dia dos anos 2005-2012. O dia começou com as máquinas limpando o terreno, o diretor à época acionou a prefeitura de Campus da UFBA para provar e convencer aos representantes da empresa, que o terreno era da UFBA, por fim, se retiraram, mas se mantiveram no terreno ao fundo do Edíficio Mansão do Canela.
Houve então, um interesse da administração da UFBA em rever a documentação de posse e solicitar o Plano Diretor da EBA com projeto da sede para o amplo terreno localizado no fundo do casarão. O projeto arquitetônico do prédio que deveria ser construído para a Escola foi elaborado em 2010 pelo concluinte da Faculdade de Arquitetura, Masayochi Noguchi, orientado pela professora Esterzilda Berenstein de Azevedo. Esse projeto foi amplamente discutido com a comunidade da EBA, na gestão de Roaleno Costa, na qual, eu ocupava o cargo de vice-diretor.
O projeto não saiu do papel, não foi detalhado, o terreno continua desocupado e a EBA asfixiada por falta de espaços construídos, apesar de se ter conseguido a construção do modesto prédio da pós-graduação e a ampliação do Pavilhão Mendonça Filho.
A VERDADE – Desde quando começou o interesse especulativo na EBA?
Luiz Freire – Pelo que se tem apurado, desde a quase venda do imóvel à rede de Supermercado Paes Mendonça em cerca de 1976.
A VERDADE – Como se dá o processo de especulação, quais os impactos?
Luiz Freire – Qualquer terreno com boa localização, em terreno plano, nas cumeadas, defronte ou com o mar nas traseiras, em bairros dotados de infra-estrutura e ocupado por classe-média, média alta e alta, atrai o desejo das empreiteiras adquirirem para neles construírem condomínios de luxo, ou edifícios altos, dotados, de muitos apartamentos com espaços exíguos e amplas e especializadas áreas de lazer e serviços.
Houve um tempo que o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Salvador era bastante restritivo, mas desde que ele foi flexibilizado (2016), praticamente possibilitou a construção de prédios altos em áreas antes interditadas, a exemplo do Edifício Mansão Wildberger.
É um mercado que movimenta muito dinheiro e que garante representações políticas em todas as esferas de poder. Salvador está em um processo de asfixia urbana, sem volta. Como consequência nós temos o aquecimento do clima da cidade, provocada pelas barreiras prediais, aumento de fluxo de automóveis, supressão de áreas verdes, corte de árvores centenárias, “requalificações”, que concretam canteiros centrais, excesso de pavimentação asfáltica, tamponamento de rios e córregos, há muito transformados em esgotos e construção excessiva de viadutos. Tudo isso contribui para uma diminuição e impedimento de deslocamentos a pé, facilitam os alagamentos e aumento da temperatura. Um movimento que contraria os princípios do urbanismo contemporâneo.
A VERDADE – Quem tem esse tipo de interesse na EBA?
Luiz Freire – Atualmente não temos muito claro o posicionamento da comunidade da EBA sobre a questão. Quando o assunto é retornado, há sempre uns poucos que advogam a favor da construção de uma sede no campus de Ondina, conforme foi pensado nos anos 2003-2006 no esboço de Plano Diretor da UFBA, rejeitado por toda a comunidade da EBA e muitos outros da UFBA. Eu e Alejandra Muñoz provocamos a imprensa, fizemos carta aberta e a grita foi geral. Felizmente reformularam o plano e continuamos no Canela.
A VERDADE – O prédio da EBA é tombado?
Luiz Freire – Sim. O prédio da EBA tem tombamento Estadual pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia – IPAC.
A VERDADE – Quais as estratégias para seguir resistindo?
Luiz Freire – É preciso fazer gestões, pressionar a reitoria para a construção do prédio nos fundos do casarão, com espaços suficientes e adequados às aulas, ateliês, laboratórios, biblioteca, espaços expositivos, cantina, administração, etc. O Plano Diretor da EBA destinou o casarão para o Memorial da EBA, que se encontra em processo de institucionalização, com seu acervo artístico e documental. É preciso retomar o projeto, fazer as plantas baixas, os detalhamentos e incluir sua edificação nos Planos Orçamentários da UFBA.
A VERDADE – Qual o nosso papel enquanto comunidade EBA e sociedade civil na preservação da EBA?
Luiz Freire – A comunidade da EBA e a sociedade civil devem se sentir responsáveis pelo bem-estar urbano, cuidar para a manutenção dos espaços verdes e conservação do patrimônio cultural, como condição indispensável à vida saudável. Ela deve estar permanentemente mobilizada para protestar frente às ameaças, reivindicar a conservação do patrimônio e impedir as agressões individuais e governamentais.
*Rafael Moreno é militante da União da Juventude Rebelião (UJR) e do Movimento Correnteza. É coordenador-geral do Centro Acadêmico da Escola de Belas Artes da UFBA (CAUEBA) com a gestão Manuel Querino.