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quinta-feira, 2 de maio de 2024

Preta Tia Simoa e o silenciamento de heroínas negras na História do Brasil

A História Afro-brasileira foi secundarizada nos livros e currículos escolares, limitando-se a conteúdos sobre escravidão e datas comemorativas. Isto é resultado do viés racista e patriarcal na historiografia burguesa, que protagoniza majoritariamente homens brancos europeus. É crucial trazer à tona as histórias das mulheres negras que foram essenciais nas lutas populares, destacando seus sujeitos, realizações e memórias para além da escravização. Conheça a história de Preta Tia Simoa

Cleidiane Morais* e Andressa Oliveira** | Fortaleza


HEROÍNAS DO POVO – Os relatos sobre a imprescindível participação das mulheres na história da luta do povo são raros e insuficientes. Uma dessas mulheres é destaque na luta do povo cearense. Ela era conhecida como Preta Tia Simoa, uma mulher negra liberta que desempenhou um papel crucial no evento conhecido na história do Ceará como a “Greve dos Jangadeiros”.

Ao lado de seu marido José Luiz Napoleão, Preta Simoa liderou uma significativa mobilização em janeiro de 1881, com o objetivo de impedir o embarque de escravos no porto de Fortaleza. Seu nome oficial (se é que teve algum registro) e seu local de nascimento permanecem desconhecidos.

Durante os preparativos da greve, Preta Tia Simoa convocou os moradores dos arredores do Porto do Mucuripe, organizou reuniões nos morros e angariou apoio para os grevistas. A área circundante era habitada principalmente por pescadores e jangadeiros, muitos deles pardos e negros libertos ou alforriados. Além de se dedicarem à pesca, os jangadeiros do porto também eram responsáveis por carregar mercadorias da praia para os navios. As vilas ao redor, de então e agora, eram áreas de intensa atividade comercial, principalmente relacionada à pesca. Os trabalhadores enfrentavam discriminação, abusos do governo, tributos e violência contra os libertos que eram coagidos a transportar escravos para a província.

Ao participar desse movimento, Preta Simoa também despertou a consciência daqueles que já estavam livres, reconhecendo a necessidade de lutar pela liberdade de todos. Sem essa mobilização popular em massa, as greves de 1881 não teriam sido bem-sucedidas.

O movimento resistiu bravamente às severas repressões policiais. O 15º Batalhão do Exército recusou-se a intervir devido à determinação e coragem dos grevistas. A mobilização se refletiu nas eleições, resultando na eleição de um governador defensor da abolição, Sátiro Dias. A luta só cessou após a promulgação da lei, resultando em mais de 30 mil pessoas libertadas no Ceará.

Preta Simoa desempenhou um papel essencial na comunidade durante o movimento, apesar das dificuldades impostas pelo patriarcado. Teve que se libertar das amarras da prisão doméstica e do preconceito para lutar. No entanto, ela não se deixou intimidar. Infelizmente, não há registros sobre sua data de morte ou onde a líder negra da greve dos jangadeiros foi enterrada. Preta Tia Simoa é uma das várias figuras que sofreram com o silenciamento da história do povo negro. 

Opressão do povo negro: um passado que não passa

O povo negro tem resistido e lutado ao longo da história pela liberdade, direitos e cidadania. A luta não se limitou ao fim da escravidão. Desde então, e mesmo antes desse marco, a batalha é diária para redefinir a sua trajetória histórica. Buscam alterações na compreensão da história do Brasil, que historicamente foi contada por narrativas eurocêntricas, envolvendo o apagamento cultural africano e afro-brasileiro.

O Brasil foi a região das Américas que mais recebeu africanos escravizados nos quatro séculos do tráfico transatlântico. A cultura negra brasileira esteve excluída, durante muito tempo, da memória histórica nacional, em detrimento de um ideário que parecia escrever um Brasil nascente unicamente de Portugal e de sua expansão marítima. Uma história que ao invés de começar “por dentro”, iniciou “por fora”.

De lá pra cá, trabalhadores são submetidos a longas jornadas e péssimas condições de trabalho. Os capangas do colonialismo estão à solta, reafirmando escrupulosamente a herança do cativeiro que continua a marcar na pele, não mais com o ferro ou com o chicote, mas com os mais diversos meios e violências de toda ordem. 

A herança do cativeiro ainda ressoa e persiste em fincar suas bases no cotidiano de uma população que ao longo da história foi e continua sofrendo opressões de todo tipo.  A demarcação da cor da pele no interior da lógica capitalista, colonialista, patriarcal e racista continua excluindo milhões de jovens que têm, muitas vezes, seus estudos interrompidos pela necessidade de trabalhar para garantir o sustento de sua família. Os bancos das universidades e os melhores postos de trabalho passam ao largo no horizonte de expectativas de inúmeros jovens negros e negras.

A luta do povo negro persiste para que seus saberes, culturas e formas de existência não sejam marginalizados e subjugados pela narrativa dominante, que muitas vezes representa a história através da perspectiva do branco cristão, heterossexual, considerado “civilizado”.

A tripla opressão da mulher negra: raça, classe e gênero

Conforme os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, a maioria da população brasileira é composta por indivíduos de ascendência negra, representando 56% do total. Segundo essa pesquisa, as mulheres negras constituem o grupo populacional mais expressivo, totalizando 60,6 milhões e representando mais de 28% da população total.

De acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), no ano de 2022, as mulheres negras receberam 46,3% do rendimento recebido pelos homens brancos. No que diz respeito aos ocupados em empregos desprotegidos, como aqueles sem carteira assinada, o índice para as mulheres negras atingiu 47,5%.

Nas atividades econômicas, as mulheres negras predominam em setores como serviços domésticos, comércio, educação, saúde humana e serviços sociais. No caso dos serviços domésticos, a participação das mulheres negras é quase o dobro em comparação com as mulheres brancas, representando 16,4% em relação a 8,8%.

Segundo a PNAD do mesmo ano, das aproximadamente 5 milhões de mulheres negras desempregadas no Brasil, a quantidade real de profissionais negras aguardando oportunidades de trabalho se aproxima de 12 milhões de pessoas.

Por meio desses dados, observa-se que as mulheres negras são os sujeitos mais oprimidos e explorados na sociedade atual, sofrendo diversas violências em seus cotidianos. Os indicadores econômicos, sociais e políticos constituem indícios das péssimas condições em que essas mulheres vivem. Elas ocupam os postos mais baixos de trabalho e têm as piores remunerações. Vivendo na informalidade, são as mais atingidas pelos reveses dos momentos de crise.

É evidente que as classes ricas, que exploram trabalhadoras e trabalhadores, são as que mais se beneficiam com o racismo, o machismo e a superexploração sofrida pelas mulheres negras no sistema capitalista. Torna-se claro que uma análise do passado é essencial para compreender o cenário atual, pois essas dinâmicas estão intrinsecamente ligadas ao sistema escravista que prevaleceu em nosso país por quase quatro séculos. Esse sistema em que vivemos se fundamenta nessa opressão, resultando na exploração e violência mais acentuadas contra as mulheres, em particular as mulheres negras e indígenas.

Casa de Referência Preta Simoa, organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benario. Foto: JAV/CE

O trabalho de mulheres no resgate da memória de nossas heroínas e na luta pela dignidade de todas as trabalhadoras

Registros da plenária realizada na Casa da Mulher Trabalhadora Preta Simoa com o tema “HEROÍNAS NEGRAS: Entre a história e a memória de Aqualtune, Preta Tia Simoa e Rainha Njinga.”

O Movimento de Mulheres Olga Benario constrói espaços que homenageiam as heroínas do povo, como a Casa da Mulher Trabalhadora Preta Simoa, situada em Fortaleza, no Ceará. É recorrente relatos de militantes e visitantes que, quando conheceram a Casa, escutaram pela primeira vez o nome e a história de Preta Tia Simoa. Sua história hoje segue inspirando nossa luta diária pela vida das mulheres e a emancipação da classe trabalhadora explorada. Entre as homenageadas estão também nomes como Helenira Preta, Laudelina de Campos Melo, Carolina Maria de Jesus, Preta Zeferina, Antonieta de Barros e Cleone Santos, mulheres negras que também travaram lutas importantes no nosso país.

Além do trabalho de acolhimento de mulheres em situação de violência, essas casas também são espaços de formações e debates de temas urgentes para estudantes, trabalhadoras e trabalhadores dos mais diversos ramos. É debatido temas urgentes como as inúmeras formas de violência e opressão sofridas pelas mulheres e, em especial, pelas mulheres negras. Assim, o Movimento de Mulheres Olga Benario tem agido de forma consequente contra o racismo e o sistema patriarcal-capitalista. Seguiremos na luta pela memória de nossas heroínas e pela vida de todas nós! Preta Tia Simoa vive e luta hoje e sempre!

 

*Historiadora e Coordenadora do Mov. de Mulheres Olga Benario CE

**Comunicadora e Coordenadora do Mov. de Mulheres Olga Benario CE

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