Na madrugada de sexta-feira (24), em um ato histórico de resistência e afirmação cultural, cerca de 200 pessoas ocuparam o Território Kewá Matamba. A ação marca a retomada do mesmo espaço de onde quilombolas foram expulsos violentamente a mando da Prefeitura de Belo Horizonte em 2012, na gestão Marcio Lacerda, em uma ação carregada de preconceito racial e intolerância religiosa
Redação MG
LUTA POPULAR – Mãe Efigênia, conhecida como Mametu Muiandê, recebeu de Pai Benedito a missão de criar um espaço de acolhimento, onde quem chegasse pudesse ter água, comida e cama para dormir. Na década de 1970 fundou na cidade de Belo Horizonte o Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango, que com o passar dos anos se tornou esse espaço de acolhida ao povo mineiro. Segundo Mãe Efigênia “Manzo quer dizer casa. Ngunzo quer dizer força, axé. E Kaiango é o nome de uma qualidade de Matamba, Iansã em bantu, porque somos uma casa de cultura bantu. Somos a casa da força de Iansã.”
No ano de 2012, o então prefeito Marcio Lacerda ordenou o despejo violento do quilombo, que já estava consolidado no local e havia construído um vínculo com a comunidade no local, que tinha no espaço um local de acolhimento, como pedido por Pai Benedito. Segundo Mametu Muiandê: “O dia do despejo foi muito triste, eles disseram pra gente que se a gente não saísse íamos ficar todos presos lá. Na época a gente não tinha a força que tem hoje e foi uma correria, muita gente saindo com seus filhos e sem ter pra onde ir. O que mais me doeu foi que com isso fecharam a nossa escola, onde a gente atendia 112 crianças e adolescentes lá da comunidade, na época a gente mesmo é quem fazia tudo, muitas vezes servia pão dormido e suco mas era um espaço onde a gente trabalhava com os jovens de lá.”
Com a expulsão do território as pessoas que moravam no local tiveram que ir para o abrigo Granja de Freitas e Mametu Muiandê se viu sem um espaço para dar continuidade às suas tradições e seus cultos. De modo provisório, levou os pertences para a cidade Santa Luzia, onde alguns meses depois o candomblé foi reconstruído. 12 anos após o despejo, o Kilombo Manzo, com o apoio do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) e da Teia dos Povos, retoma um espaço que é seu por direito.
Para Makota Cassia Kidoialê, liderança do quilombo “A retomada Kewá Matamba significa para nós uma retomada ancestral. É uma retomada da nossa identidade, do nosso pertencimento ao território, da nossa territorialidade. Desde a nossa infância a gente foi criado sem cerca, sem muro, sem asfalto, como se fosse tudo um território só. Aí veio a urbanização e ela acabou numa forma organizada nos desorganizando, dificultando assim o nosso acesso ao que nos sustenta. Aqui nessa terra a gente busca remédio, aqui a gente dialoga com a nossa ancestralidade. Nós somos de tradição de matriz africana e para a gente não existe manter as nossas tradições no distanciamento da água, das folhas, dos animais, da nossa cultura e da nossa tradição. A nossa existência é assim, nós somos quilombolas e quilombo precisa de terra para poder se sentir vivo, se sentir firme e se sentir identificado. O que me identifica é a natureza.”
No capitalismo, os interesses da burguesia estão à frente de tudo. Mesmo com leis que deveriam garantir a preservação da cultura e tradições quilombolas no país 98% dos quilombos estão ameaçados, tudo isso para atender os interesses econômicos da mineração e do agronegócio.
Para Leonardo Péricles, presidente nacional da Unidade Popular, a retomada é uma luta exemplar do nosso povo. Confira a íntegra de sua fala na ação: “Essa luta tem uma significação presente e ancestral de extrema importância. Primeiro que os quilombos são a base das lutas de resistência no nosso país, desde a invasão portuguesa e o sequestro dos nossos irmãos e irmãs de África para cá. Segundo que os quilombos no momento atual vivem uma ameaça permanente da mineração – e no caso desse aqui é o exemplo concreto – e também do agronegócio. Saiu uma matéria recente em um jornal de grande circulação no país, que 98% dos quilombos estão ameaçados por esses dois setores que tanto degradam e destroem. Terceira questão, pelo exemplo. Os quilombos hoje no país, sofrendo tamanha ameaça, vem começando uma reação muito importante. E essa luta aqui, ela reforça e fortalece ainda mais a reação do movimento quilombola no nosso país. E a última questão é que essa luta vem em um momento extremamente importante, em que vivemos mudanças climáticas profundas, fruto do sistema capitalista. Essa retomada traz o debate da preservação da Serra do Curral, que vem sendo ameaçada pela mineração, especialmente após o apoio do Governador Romeu Zema que permitiu de forma criminosa a mineração no espaço, a serra é uma caixa d’água natural para a região metropolitana de Belo Horizonte. A retomada Kewá Matamba não se resume só aos quilombolas, mas é uma luta de toda a população frente às ameaças que estão dadas principalmente pelo agronegócio e a mineração. Viva a luta dos quilombolas e nós da Unidade Popular e do Movimento de Luta dos Bairros, Vilas e Favelas, estamos de forma ativa e presente nessa luta.”
A retomada Kewá Matamba mostra a todos nós o caminho, afinal, só a luta coletiva é capaz de combater as injustiças desse sistema que tenta o tempo todo nos massacrar e ignora nossas culturas e tradições. A burguesia nos quer cabisbaixos e desacreditados e utilizam do estado para terem seus interesses atendidos, mas mesmo com todo esse aparato, 12 anos após o despejo, o povo kilombola retoma o que é seu.
Leia na íntegra a carta da Retomada Kewá Matamba:
“Saudações kilombolas!
Com a licença de Pai Benedito, com as bênçãos de nossas mais velhas e mais velhos, em respeito às crianças e a nossa juventude, com a força das águas, matas, terras e ares; aos povos das Gerais:
É com a força dos búfalos, enfrentando e enfeitando a tempestade de ventos, que hoje, 24 de maio de 2024, o Kilombo Manzo Ngunzo Kaiango firma o seu ponto e demarca o Território Kewá Matamba, espaço ancestral e sagrado aos pés da Serra do Curral, na zona leste da cidade de Belo Horizonte, em aliança e com apoio ativo do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas – MLB e dos núcleos e elos da Teia dos Povos.
Reafirmamos aqui, nossa conexão sagrada com esse território, que cuida e nos dá condição de nos mantermos fortes e unidos. Sem a terra, o território, a mata, as águas e as plantas, o quilombo e o terreiro não tem como existir. Buscamos construir nossa autonomia quilombola para além do Estado, continuando nossas tradições sagradas de plantio, educação e conexão com a natureza, protegendo nossa forma de ser e viver. O Kilombu é espaço de resistência religiosa e cultural, referência de patrimônio afro descendente, e local de formação e vivência.
Retomamos esse território para construir nossa Escola das Ngoma, um espaço em que floresça uma pedagogia dos tambores (ngoma), que acolha e fortaleça o envolvimento de nossa juventude com o território e nossas práticas, em uma “educação não para ter, mas para poder ser”.
Continuaremos a missão dada por Pai Benedito, que na década de 70 orientou nossa Mãe Efigênia, matriarca liderança máxima da comunidade, para que construísse um lugar de acolhimento onde quem chegasse pudesse ter água, comida e cama para dormir. Mãe Efigênia, conhecida como Mametu Muiandê, é bisneta de escravizadas que se aquilombaram no Quilombo Engenho Novo, em Ouro Preto, região que é símbolo do vínculo entre a mineração e o processo escravizador dos povos africanos no Brasil. A história de Mãe Efigênia nos mostra a continuidade histórica da resistência quilombola frente à mineração e às opressões sofridas.
Na década de 70, encontrou no bairro Santa Efigênia uma nascente, um bambuzal e uma grande vegetação, riqueza que dialoga e mantém as práticas do Terreiro. Guiada por seu preto velho, ali construiu seu barraco. Dedicou um quartinho para sua Umbanda e assim, deu vida à Senzala de Pai Benedito, espaço onde iria cuidar de muita gente e também do território que habitava.
Firmada nesta terra, Mãe Efigênia criou sete filhos e mais de vinte filhos dos outros, além das várias pessoas que acolheu e cuidou ao passarem pela Senzala. A Serra do Curral, a Mata da Baleia, o córrego do Cardoso e as várias águas que ali corriam, foram a base para nos relacionar diretamente com nossa ancestralidade. É onde nasce toda força que nos alimenta e nutre a seiva de nossa fé. Não podemos fazer nada sem as nossas folhas, sem água não temos vida e nem ancestralidade, temos o compromisso e a missão de proteger toda essa abundância sagrada de nosso território, e vamos continuar fazendo isso em nossa retomada.
Querem forçar o quilombo a ser cidade, e ao longo das décadas, a expansão urbana e a mineração foram tomando o território e os caminhos que sempre fizemos para sustentar nossos modos de vida e nossa espiritualidade. Em 2012, fomos violentamente expulsos de nossas casas pela Defesa Civil e pela Companhia Urbanizadora e de Habitação de BH (URBEL). Essa ação feita pelo Estado, carregada de preconceito racial e intolerância religiosa, marcou uma ruptura e um enfraquecimento dos laços comunitários do Manzo. Transferidos para um abrigo público, fomos impedidos de realizar as práticas religiosas e de dar continuidade aos nossos projetos. O terreiro de Candomblé teve que se mudar para Santa Luzia, junto de Mãe Efigênia, e isso contribuiu mais ainda para um distanciamento da comunidade de nossa religião de matriz africana.
Ao retornar, encontramos nosso terreiro destruído e nosso território desmatado. Eles tiraram de nós o que nos sustenta, o que nos mantém. Mataram as plantas que sabem que são parte da nossa identidade cultural e religiosa, que têm com a nossa gente uma relação ancestral. Se a estratégia imposta é romper o nosso vínculo com a natureza, insistimos em retomar nossas tradições e nossa presença nesse território!
Em nossa missão de cuidar e curar do território que nos envolve, lutamos e vencemos a suspensão das atividades de mineração na Serra do Curral em 2022, que ignorava nossa existência e violava o nosso direito de consulta prévia, livre e informada, além de ameaçar os nossos modos de vida e o território natural que nos sustenta. Em nossa retomada, seremos guardiões dessa grandiosa serra, que protege e nutre toda a cidade.
Em abril de 2023, na Pré-Jornada de Agroecologia de Minas Gerais, realizada no Manzo pela Teia dos Povos, demos o primeiro passo para a retomada de nosso território, reunindo diversos povos, territórios, movimentos e apoiadoras, cultivando uma potente aliança entre povos, territórios, movimentos e apoiadoras. Re-plantamos uma muda de Jatobá, plantas sagradas e outras que nos ajudam a recuperar o solo degradado. Durante esse ano, realizamos diversos mutirões, que firmam nossa presença, a relação espiritual com o território e o compromisso com sua proteção.
A Retomada Kewá Matamba é uma afirmação de que vamos continuar realizando nossos rituais, colhendo nossas ervas, plantando nossas roças de quilombo e construindo nossa educação das Ngoma. Vamos sustentar nossas autonomias e garantir nossos modos de vida no território. Que nossos tambores alcancem e ecoem com os que ousam construir e encantar o mundo novo!
Que nossa Mãe Matamba ilumine todos nós, que vamos caminhando pelos nossos territórios.Que ilumine todos nós, nesta grande caminhada!
Que Ógùn abençoe, Nkosi abençoe, abra os caminhos de luz e prosperidade, e que leve todos até o topo da montanha.
Asé Ngunzo, nosso terreiro é comandado por mulheres negras e estamos aqui para gritar. Ninguém vai derrubar os nossos territórios!”