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quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

O centenário de Amílcar Cabral

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“Jurei a mim mesmo dar a minha vida, toda a minha energia, toda a minha coragem, toda a capacidade que posso ter, até ao dia em que morrer, ao serviço do meu povo da Guiné e Cabo Verde. Ao serviço da causa da humanidade, para a vida do homem se tornar melhor no mundo”. (Amílcar Cabral)

José Levino


“Um dos líderes mais lúcidos e brilhantes da África” (Fidel Castro)

Guiné-Bissau é um pequeno país caracterizado por grande diversidade de línguas, costumes e religiões, contando com integrantes de crenças africanas tradicionais, do islamismo e do cristianismo.  Os portugueses chegaram ao país em 1446 e começaram sua colonização em 1558. Próximo, está situado o arquipélago de Cabo Verde, um conjunto de 10 ilhas, onde os portugueses chegaram em 1460 e iniciaram sua colonização em 1462. Tornou-se um entreposto do tráfico de escravos e teve, a partir da ocupação portuguesa, uma relação próxima e tensa com Guiné-Bissau. Essa tensão se deve ao fato de que Portugal formou em Cabo Verde uma elite local a quem capacitava para exercer funções administrativas nas colônias da região.

A família Cabral

Juvenal Lopes Cabral pertencia a uma dessas famílias da elite caboverdiana. Foi ainda criança para Portugal, onde começou seus estudos e terminou-os em Santiago, principal cidade do Cabo Verde. Aos 22 anos, mudou-se para Guiné-Bissau, onde trabalhou como professor durante 21 anos. Foi aí, na cidade de Bafatá, que nasceu Amílcar, seu filho, fruto da união com Iva Pinhel Évora. Amílcar nasceu no dia 12 de setembro de 1924. Aos oito anos, sua família retorna para Cabo Verde, onde inicia seus estudos e vai terminá-los em Lisboa. A família Cabral se sentia portuguesa, mas Juvenal, que foi um estudioso e escritor renomado, tinha críticas à administração colonial no arquipélago.

Na capital portuguesa, Amílcar, além de estudar Agronomia, vai aprofundar essa visão crítica, a qual evoluirá para a necessidade da luta pela independência, não só de Cabo Verde e Guiné-Bissau, mas de todo o continente africano. E não apenas de independência formal, mas de construção de uma sociedade justa, sem exploração do homem pelo homem.

A Casa dos Estudantes do Império (CEI) foi criada para acolher os estudantes procedentes das colônias portuguesas na África, para facilitar o controle e promover o fortalecimento da visão colonialista entre eles. Facilitou também o desenvolvimento de uma visão anticolonial e anti-imperialista com a ajuda do Partido Comunista Português (PCP), que, apesar das condições duras da clandestinidade imposta pela ditadura salazarista, conseguiu colocar alguns militantes na entidade.

Além dos estudos teóricos, a CEI proporcionou conhecimento, troca de experiências e articulação entre estudantes de diversos países africanos, entre os quais líderes como Amílcar Cabral (Guiné-Bissau e Cabo Verde), Marcelino dos Santos (Moçambique) e Agostinho Neto (Angola).  Eles criaram, com apoio do PCP, o Centro de Estudos Africanos (CEA) com o objetivo, segundo um dos seus fundadores, Mário Pinto de Andrade (Angola), de “racionalizar os sentimentos de se pertencer a um mundo de opressão e despertar a consciência nacional através de uma análise dos fundamentos culturais do continente”.

No CEA, os estudantes africanos estudaram o marxismo-leninismo, as experiências socialistas da União Soviética e da Europa Oriental, compreenderam que a colonização era resultado do avanço do capitalismo e que a verdadeira libertação da África não seria apenas anticolonial, mas anticapitalista. Amílcar assimilava e digeria esse aprendizado, mas não se envolvia na política em Portugal. É tanto que um relatório da PIDE, a famosa polícia política salazarista, afirma sobre ele: “Moral e politicamente, nada se apurou em seu desabono”.

Os primeiros passos

Formado como engenheiro agrônomo, o Ministério da Ultramar nomeia Amílcar Cabral para o cargo de Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais na Guiné-Bissau. E, assim, ele volta para a África em 1952. Percorre todo o país, buscando prestar um serviço eficaz, ao mesmo tempo em que aprofunda o conhecimento da realidade e mantém contato com os camponeses, especialmente ao realizar o recenseamento agrícola, considerado, até hoje, como a melhor fonte de conhecimento global da agricultura guineense.

Seu primeiro passo para a ação foi a criação de uma Associação Esportiva e Cultural onde se desenvolviam reflexões e estudos em vista da conscientização política para a libertação de Guiné. Denunciado ao Ministério de Ultramar, é demitido das funções e proibido de permanecer na região, obrigado a retornar para Lisboa. Foi autorizado a visitar a família uma vez por ano. É numa dessas visitas que, em 19 de setembro do ano de 1956, funda, com um grupo de companheiros, o Partido Africano para a Independência (PAI) que, em 1959, se tornaria o Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde (PAIGC).

No período de 1956 a 1959, trabalhou em Angola, contratado por grandes empresas para fazer estudos sobre o solo angolano. Este serviço lhe proporcionou maior conhecimento sobre a realidade angolana e a aproximação com os movimentos de libertação locais, tendo participado do encontro de fundação do Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA).

Em Angola constatou a forte exploração dos trabalhadores, realidade que ele classificou como “nova forma de escravatura”. Percorreu outros países africanos e esse conhecimento direto da exploração colonial lhe motivou a integrar-se definitivamente à luta de libertação de Guiné-Bissau, Cabo Verde e todo o continente africano. Concluiu que a estratégia de libertação precisa se fundamentar na história e na realidade de cada país. Escreveu: “Só poderemos transformar verdadeiramente a nossa própria realidade com base no seu conhecimento concreto e nos nossos esforços e sacrifícios próprios. Por maior que seja a similitude dos casos em presença e a identificação dos nossos inimigos, a libertação nacional e a revolução social não são mercadorias de exportação”. Amílcar Cabral foi capaz de compreender e aplicar o método dialético marxista à realidade concreta da África colonizada.

Da ação sindical à luta armada

O PAIGC começou sua agitação nacionalista por meio do Movimento Sindical Urbano, caminho que se mostrou inviável com o massacre dos trabalhadores portuários em greve no Porto de Pindijiquiti, no dia 03 de agosto de 1959.  A Conferência do PAIGC, realizada em Dacar, capital do Senegal, em 1960, conclui pela impossibilidade de conquistar a independência por vias legais e definiu a estratégia da luta armada a partir do campo.

Logo após a conferência, tem início a preparação dos militantes para esse fim e a busca de apoios internacionais, especialmente na ONU e nos países socialistas. Em 1961, o Partido anuncia “a passagem da fase da luta política para a luta insurrecional contra as forças coloniais”. Informa que ações de sabotagem econômica têm sido um sucesso, pois “estão levando insegurança aos colonizadores e paralisando a exploração do nosso povo”. Amílcar Cabral consegue falar na ONU, onde explica que a luta não é contra Portugal, e sim a favor da libertação do povo guineense e caboverdiano.

Depois de um período de recomposição, a luta armada é retomada com toda força em 1963, estendendo-se a todo o território nacional. O PAIGC dispunha de mais homens que armas. Mesmo assim, pesadas derrotas foram sendo infligidas às forças coloniais portugueses, a ponto de Guiné-Bissau ter sido denominada de “Vietnam dos Portugueses”.

Foram 11 anos de guerra, vitoriosa, com a independência proclamada unilateralmente pelo PAIGC em 24 de setembro de 1973 e reconhecida por Portugal no ano seguinte, depois da Revolução dos Cravos.

Não pôde comemorar

Amílcar Cabral não pôde comemorar a vitória, que tanto deveu à sua capacidade como liderança e estrategista. Infelizmente, não caiu em combate ao inimigo, mas foi covardemente assassinado por um grupo de traidores do próprio partido, em 20 de janeiro de 1973. Seu sucessor na direção do PAIGC e primeiro presidente da República, depois da Independência, foi seu irmão Luís Cabral.

Na fase da luta, a unidade se manteve após a morte de Amílcar. Entretanto, com a Independência, a proposta de unidade nacional de Guiné-Bissau e Cabo Verde se esvaiu. Certamente, o fato de Luís Cabral ser caboverdiano foi combustível para o golpe de Estado em 1980, promovido pelo Movimento Reajustador, liderado por João Bernardo Vieira (Nino), então primeiro-ministro. Os caboverdianos se desligaram do PAIGC e fundaram o Partido para a Independência de Cabo Verde (PAICV). O arquipélago teve sua independência reconhecida em julho de 1975.

Ambos – Guiné-Bissau e Cabo Verde – vivem em situação de crise e pobreza, integrados ao sistema capitalista na condição de países dependentes. Portanto, a verdadeira independência preconizada pelo herói do povo, Amílcar Cabral, não se concretizou.

O coronel reformado Júlio Monteiro tinha 24 anos quando foi escolhido para hastear a bandeira no dia 05 de julho de 1975. Entrevistado recentemente, disse ao repórter que tem a percepção que “os ideais de Amílcar Cabral morreram com ele”.

Discordo, coronel. Ideais justos não morrem. São como sementes lançadas ao solo, que só esperam o momento propício para renascer, crescer, dar flores e frutos.

Amílcar Cabral vive! Até a vitória sempre!

Matéria publicada na edição impressa nº 303 do jornal A Verdade

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