O feminicídio em Juárez e o pacto de silêncio

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Juárez e o pacto de silêncio

Ciudad de Juárez é uma cidade mexicana próxima na fronteira com os Estados Unidos. Conhecida por ser um conglomerado de parques industriais é, também, notória por conter a sede de um dos maiores cartéis de drogas do México. Porém, acima de tudo, Juárez é conhecida pelos brutais assassinatos contra mulheres. Desde 1993, quando se começou a contar as mortes, estima-se que mais de 1.100 mulheres perderam suas vidas, e este número é apenas das desaparecidas: não podemos esquecer que grande parte dos crimes contra a mulher não são reportados, logo, não entram para as estatísticas.

A violência contra mulher é sistêmica, nunca um ato isolado. São complexas questões estruturais que datam desde o surgimento dos primeiros espectros da sociedade capitalista-patriarcal.

Pequeno panorama histórico

Nas sociedades antigas, os núcleos familiares eram constituídos, principalmente, pelas mulheres e crianças, podendo ou não existir a figura masculina/paterna. Nessa configuração, as mulheres possuíam mais autonomia e um papel ativo no que tange a coleta e o preparo dos alimentos. E essa é a verdadeira liberdade: não depender de outro para a sobrevivência. Porém, ao surgir aquilo que conhecemos como civilização, como aponta Engels em seu A Origem da Família, da propriedade privada e do Estado, a mulher teve seu status social destruído: com o surgimento da agricultura, surgiu a produção excedente e a necessidade de se negociar essa mercadoria. Junto com essa noção de excedente, surgiu a noção de propriedade privada, acumulação de bens e negociação de mercadoria: o primeiro espectro do capitalismo.

Um dos principais pontos aqui é, justamente, o da propriedade privada: com seu surgimento, foi estabelecido, de vez, os papeis do homem e da mulher. O homem assumia o controle da produção, tornando-a seu domínio. Para a manutenção desse sistema e para que ele fosse passado às próximas gerações, a mulher precisaria ter um forte laço com o homem. É aqui que começa a dominação e o controle sobre nossa sexualidade: o homem precisava garantir que a prole carregasse seus genes. Esse é o primeiro espectro do patriarcado: seu surgimento foi por necessidades socioeconômicas vinculadas aos homens. Nossa sexualidade passou a ser controlada e nossos corpos passaram a pertencer aos homens e às suas necessidade, sendo deles por direito.

O pacto de silêncio – a violência contra a mulher

O poder, sabemos, tem duas faces: da dominação e da subordinação, e as mulheres conhecem muito bem a segunda, já que nossa socialização se dá através dela. É isso que a supremacia masculina significa: esse acesso ao corpo da mulher. Os homens “estão permanentemente autorizados a realizar seu projeto de dominação/exploração das mulheres, mesmo que, para isso, precisem utilizar-se da força física” (SAFFIOTI, 2002, p. 203). A culpa é inerente ao gênero mulher, como disse a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, e faz parte da nossa criação enquanto indivíduos. Para a manutenção do status quo, foi importante que as mulheres aprendessem que, qualquer que seja a violência sofrida, elas têm uma parcela dessa culpa.

Assim, surgiu uma cultura do silêncio, de crimes não reportados, de vítimas silenciadas quando tentam reportar. E, por ser privilegiada por isso, a sociedade patriarcal compactua com esse silêncio e o faz um importante fator da manutenção desse sistema que se escora em instituições artificiais. Analisá-las e denunciá-las é colocá-lo em risco.

Em Juárez, os casos de feminicídio têm um tom execução – os assassinatos são o rito de passagem de homens ao ingressarem no mundo do cartel, como forma de dar recado para grupos inimigos. Faltam políticas públicas, e, claro, falta atenção às mulheres que são maioria dentro das fábricas. A maior fonte de emprego de Juárez são as maquiladoras – empresas situadas na zona de comércio livre que empregam mão de obra barata e exportam materiais para produção estrangeira. A jornada de trabalho é intensa e, a volta para casa, sempre arriscada: o perfil das vítimas são as jovens trabalhadoras de origem humilde.

Juárez não é um caso isolado, pelo contrário. É uma amostra da macroestrutura operando na microestrutura. Perguntaram-me por que me preocupar com uma cidade tão distante geograficamente. Minha resposta é que, sendo a violência sistêmica, ela é parte da nossa estrutura, das nossas vidas e das ruas da nossa cidade também. Nada disso está longe: temos uma Juárez em cada esquina.

Camila Souza, estudante de letras da PUCRS e do Movimento de Mulheres Olga Benário