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domingo, 22 de dezembro de 2024

O racismo como ideologia de dominação e os 80 tiros em nós

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O fuzilamento de Evaldo dos Santos, músico, num bairro periférico do Rio de Janeiro enquanto passeava com sua família na tarde de um domingo, representa o avanço do estado fascista que já não se importa em manter a aparência de um estado democrático de direito.

Ato na paulista em homenagem a Evaldo, músico assassinado pelo exército com 80 tiros. Foto: Jorge Ferreira

Com indignação o povo assistiu o presidente da república, 6 dias após o assassinato, vir à público se manifestar sobre o caso, limitando-se a defender a instituição que disparou 80 tiros e ceifou não só a vida de Evaldo, mas também de Luciano Macedo, catador de recicláveis,  que tentou ajudar a família a sair do veículo no momento da ação criminosa. Segundo o presidente: “O exército não matou ninguém!” Entretanto, é equivocado pensar que essa barbárie é consequência exclusiva da chegada da extrema direita ao Poder, muito menos apenas de resquícios da ditadura militar. Na verdade o estado policialesco nunca deixou de estar presente nas periferias do Brasil.

No mundo, o 1% da população mais rica tem mais riqueza que os outros 99% somados. Os 6 homens mais ricos do mundo tem mais posses do que a metade mais pobre, mais de 3,5 bilhões de pessoas. Esse abismo social é também a realidade do Brasil, que tem uma das maiores desigualdades do mundo. Neese contexto, ao povo negro é reservado apenas os piores postos de trabalho, os piores salários e os barracos das grandes favelas. A imensa maioria da população negra é extremamente pobre e vive sob todas as formas de vulnerabilidade.

O desemprego é enorme e o varejo do tráfico termina sendo um desses postos de trabalho reservados especialmente para a juventude negra das periferias. Mesmo cumprindo uma tarefa desse negócio que gera enormes lucros para a burguesia, que utiliza seus bancospra lavar esse dinheiro, e por estar na ponta, mais visível e sustentando fuzis nas mãos, os jovens negros são vítimas de um discurso de criminalização e de uma política repressiva e genocida que assassina 66 mil pessoas por ano no Brasil, um verdadeiro índice de guerra civil. 78% desses jovens são assassinados por conta da sua cor da pele, por serem negros.

É que cada tempo histórico tem suas perguntas sobre o passado, pois cada conjuntura produz uma história para justificar o seu presente.” É assim que Marielle Franco começa a demonstrar em sua tese de mestrado a importância de compreendermos nosso passado recente  e o processo de implementação do neoliberalismo que o Brasil passou nas últimas décadas. Apesar do estudo da vereadora assassinada se concentrar na política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro através das Unidade de Polícia Pacificadora, traz também importantes esclarecimentos sobre as causas do genocídio de negros e negras no país todo.

É verdade que desde a formação do estado brasileiro há uma política de extermínio daqueles que foram escravizados,  e desde então diferentes  ideologias foram utilizadas para perpetuar o poder na mão de uma minoria enquanto o povo dispõe de uma vida miserável. Mas também é urgente compreender as engrenagens da fase atual do capitalismo para traçarmos estratégias para a sua destruição. Nesse sentido que Marielle desmascara o estado penal vigente nas periferias como estrutura central do neoliberalismo no Brasil.

Nessa fase da crise do capitalismo, onde a elite econômica tenta enfiar goela abaixo reformas para aumentar seus lucros, mesmo que às custas da retirada de direitos trabalhistas e sociais, é necessário uma escalada no estado penal para conter aqueles que se encontram “excluídos” dessa sociedade. É por isso que na medida que os governantes avançam na destruição de direitos sociais,  aumenta-se a repressão nas periferias, pois esses são os territórios tidos como inimigos do estado, que serve exclusivamente aos interesses da classe dominante.

A administração pública por sua vez, concentra  esforços em passar a impressão  que esse modelo de segurança pública, que invade casas, mata e tortura, se legitima em nome da proteção de toda sociedade. Essa é a tática da “guerra às drogas”, justificar o genocídio e o encarceramento em massa como necessário para manter a ordem.

Para tanto, o estado exerce papel crucial na manutenção do projeto de dominação. Se nos bairros ditos “nobres”, o estado se faz presente nas ruas bem asfaltadas, nos parques bem arborizados, e em todo conjunto de políticas que promovem o acesso à cidade, nas periferias esse mesmo estado se faz presente exclusivamente através das forças militares, seja pela polícia, pelo exército, ou mesmo por grupos milicianos.

Essa guerra aos pobres, transvestida de pacificação,  não se justifica apenas com o sadismo de uma elite branca, mas sim por interesses econômicos. O estado, representante da burguesia, não contente com as reformas neoliberais, também está comprometido com o lucro dos megatraficantes, dos milicianos, da indústria armamentista, da especulação imobiliária, etc.

Justamente por incomodar aqueles que lucram com o extermínio da população negra e escancarar a as engrenagens desse sistema que Marielle Franco foi brutalmente assassinada.

Um ano depois de sua morte, os 80 tiros disparados pelo exército no carro de Evaldo e sua família nos traz à tona a urgência de apontar as raízes desse projeto genocida. Trata-se do modus operandi de um estado neoliberal, que manteve as mesmas práticas inclusive nos governos ditos progressistas,  período em que o encarceramento mais do que dobrou. Se no Brasil o capitalismo é forjado no extermínio da população da periferia, que na sua maioria são negros e negras, o fim desse extermínio também depende da superação desse sistema perverso.

O RACISMO COMO IDEOLOGIA DE DOMINAÇÃO

Segundo Clóvis Moura, “o racismo não é uma conclusão tirada dos dados da ciência, de acordo com pesquisas de laboratório que comprovem a superioridade de um grupo étnico sobre outro. O racismo é uma ideologia deliberadamente montada para justificar a dominação de um grupo sobre outro. É, portanto, uuma ideologia de dominação.

Acontece que após a abolição da escravidão no Brasil, a elite do país determinada a manter seu projeto de domínio, costurou outras roupagens para sustentar o novo regime econômico. Nesse momento ganha destaque a  concepção eugênica que correspondia a uma política de embranquecimento da população e a uma teorização sobre características de personalidade inerentes às raças.

Dentre elas, se destaca o papel do direito penal na formação do imaginário popular do negro como figura naturalmente criminosa. Ainda no período da primeira república, o código penal tipificava como crime o que ficou conhecido como lei da vadiagem. Num contexto de séculos de escravidão, foi como prender as pessoas simplesmente por elas serem negras. Essa política foi aprimorada ao longos das décadas, mas sem nunca perder o viés ideológico de dominação sobre os corpos marginalizados.

A Liga de Higiene Mental, por exemplo, braço do nazismo e do arianismo no Brasil, se destacou como defensora “científica” dessa tese e defendia, entre outras bandeiras, salários eugênicos (quanto mais clara a cor da pele, maior deveria ser o salário), recompensa para famílias que procriassem seres “superiores”, punição para os “inferiores”.

O higienismo social presente na segregação territorial até os dias de hoje, é oriundo das políticas da burguesia desde a formação da nação brasileira. A verdade é que esse país foi constituído sob uma ideologia burguesa e racista, que nega ao povo sua própria história, como estratégia política para perpetuar uma estrutura excludente.

Sendo assim, torna-se uma ingenuidade combater o racismo apenas através do viés acadêmico ou estritamente científico, muito embora não possamos de maneira nenhuma, negar o combate também nesse terreno.  Mas a verdade é que a boa e velha luta de classes ainda é a forma mais eficiente de enfrentar o racismo no Brasil. Como afirma Clóvis Moura, “a questão racial é essencialmente política e não apenas científica.”

Para superarmos o sistema político existente, o capitalismo, será necessário travarmos as lutas pelos interesses imediatos da classe trabalhadora, composta na sua maioria por mulheres e negros. Mas isso não bastará. Será necessário, e esse é o nosso desafio, apresentar outro modelo de sociedade que seja capaz de substituir a engrenagem capitalista.

Um sistema político e social que dê conta de distribuir toda a riqueza socialmente produzida, pondo fim à propriedade privada dos meios de produção e a todas as desigualdades sociais existentes na atualidade. Esse sistema, essa sociedade, tem nome e chama-se Socialismo.

Jorge Ferreira e Queops Damasceno, São Paulo

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