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sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

O desmonte da indústria brasileira e a falta de medicamentos

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Reportagem anexada na edição 223 do jornal impresso, página 05.

Paulo Rodrigues


Foto: Amanda Perobelli/Reuters

BRASIL – Desde a primeira metade deste ano, uma série de medicamentos sumiu das prateleiras das farmácias e dos estoques do SUS. Pacientes em tratamento contra a hepatite C – a única das hepatites virais que tem cura em 95% dos casos –, por exemplo, estão enfrentando enorme dificuldade para acessar os remédios necessários.

Em maio, denúncia veiculada no Jornal Nacional mostrava que, dos 134 medicamentos entregues pelo Ministério da Saúde aos estados, 25 estavam em falta ou com entregas insuficientes, e 18 tinham estoques baixos. No mesmo mês, no Recife, o movimento “Pela Manutenção da Vida” mobilizou centenas de pessoas em frente à Farmácia de Pernambuco (SUS), na Praça Oswaldo Cruz, contra a falta de diversos medicamentos, inclusive para pacientes pós-transplantados (Diário de Pernambuco). 

No primeiro semestre, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recolheu lotes de cerca de 200 tipos de medicamentos da família das “sartanas”, para hipertensão, para detectar impurezas nos seus princípios ativos, que são importados da China ou da Índia (Estadão, 09/05/19). Há notícias do desabastecimento desses medicamentos desde então, prejudicando milhões de hipertensos em todo o Brasil.

Pode-se dizer que o Brasil vive atualmente uma situação de grave vulnerabilidade sanitária, decorrente da dependência tecnológica no setor farmacêutico e da dependência da importação tanto de insumos farmacêuticos ativos (IFAs), principalmente da China e da Índia, quanto de medicamentos acabados prontos dos grandes laboratórios estadunidenses e europeus.

Como foi possível que o abastecimento de medicamentos no país tenha chegado a esta situação? Como o Brasil se tornou vulnerável do ponto de vista sanitário? A resposta a estas perguntas nos obriga a conhecer de forma rápida as políticas industriais farmacêuticas desenvolvidas desde que as políticas econômicas neoliberais foram impostas ao Brasil nos anos 1990, no auge da chamada crise da dívida externa. 

Desmonte da Indústria Nacional

É importante saber, em primeiro lugar, que, entre 1930 e 1990, o Brasil teve uma política econômica principalmente protecionista em relação ao desenvolvimento industrial, que promoveu a substituição de importações de produtos industriais, que passaram a ser feitos no país, além de ter capacitado tecnologicamente o parque fabril brasileiro, inclusive a indústria farmacêutica nacional.

Um marco importante dessa política foi a criação da Companhia Nacional de Álcalis (CNA), em 1944, em Arraial do Cabo (RJ). Segundo a farmacêutica Catalina Kiss, a CNA “foi planejada para produzir matérias-primas básicas – carbonato de sódio, barrilha e hidróxido de sódio, soda cáustica, conhecidos como álcalis sódicos –, itens essenciais para impulsionar a indústria de transformação”. Tais matérias-primas são fundamentais para a indústria química como um todo e particularmente para a produção de medicamentos.

Em 1952, o governo de Getúlio Vargas criou a Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil (Cacex), importante instrumento de proteção tarifária para a indústria brasileira, que tornou difícil a importação de insumos farmacêuticos ativos (IFAs) para a produção de medicamentos. Isso forçou a produção no Brasil desses insumos, reduzindo a dependência do país à importação desses produtos, uma vez que a produção nacional abastecia a maior parte das necessidades da indústria.

Mesmo durante a ditadura militar (1964 a 1985), foram tomadas medidas para proteger a indústria farmacêutica nacional. O governo militar deixou de reconhecer patentes para medicamentos em 1969, o que permitiu que o país pudesse reproduzir diversos medicamentos sem pagar pelos extorsivos custos das patentes aos laboratórios estrangeiros. 

Todas essas medidas que protegiam a produção interna de medicamentos e a manipulação dos preços pelos laboratórios nacionais e estrangeiros foram desmontadas pela política neoliberal. Em 1990, Fernando Collor de Mello extinguiu a Cacex e, com ela, a proteção à produção interna dos insumos farmacêuticos ativos. Desde então, o déficit com a importação desses produtos não parou de aumentar. Entre 1995 e 2014, o déficit aumentou 488,3%, chegando a US$ 2,58 bilhões em 2014. Uma das medidas mais criminosas dos governos neoliberais foi o reconhecimento de forma radical e precoce do acordo internacional de patentes (TRIPS, na sigla em inglês), aprovado em 1995.

Collor enviou um projeto de lei de urgência que encaminhava a proposta estadunidense para o Acordo TRIPS, que continha itens muito mais duros do que os que foram aprovados em 1995. O projeto foi aprovado em janeiro 1996, durante o governo FHC, que o aprovou na íntegra, sem cortes, e desde então o Brasil passou a ter uma das piores e mais servis legislações de patentes do mundo, a Lei nº 9.279/1996.

Essa Lei abriu mão, por exemplo, do prazo que o acordo TRIPS permitia que os países continuassem sem reconhecer patentes até o final de 2005. Enquanto o Brasil adotou com nove anos de antecedência o reconhecimento de patentes, a China e a Índia, cujas políticas industriais eram semelhantes à brasileira até então, aproveitaram o prazo até o último dia, desenvolvendo o que hoje são as maiores indústrias químicas e farmacêuticas do mundo. Enquanto isso, a indústria farmacêutica brasileira deixou praticamente de produzir insumos farmacêuticos ativos – hoje menos de 5% das necessidades é atendida pela produção interna – e só produz medicamentos de baixo conteúdo tecnológico e baixo valor agregado.

As principais políticas farmacêuticas seguidas pelo Brasil no período de dominação neoliberal foram o enfrentamento dos interesses dos laboratórios internacionais em relação aos antirretrovirais (medicamentos para Aids) e o desenvolvimento da produção interna de medicamentos genéricos nos anos 1990, além da política de Parceria de Desenvolvimento Produtivo (PDPs) no governo Lula.

A mais vitoriosa delas foi a queda de braço com os laboratórios multinacionais em relação aos antirretrovirais garantida pela capacitação do laboratório público de Farmanguinhos para fazer engenharia reversa, depois de muita pressão dos movimentos sociais brasileiros. A produção interna de genéricos cresceu muito desde os anos 1990, beneficiando principalmente a burguesia interna do setor farmacêutico e menos a população.

Já a política das PDPs dos governos petistas permitiram a absorção da capacidade tecnológica para a produção de alguns medicamentos cujas patentes de propriedade de laboratórios multinacionais já estavam para cair, enquanto asseguravam o acesso monopolístico deles ao mercado brasileiro durante o processo de transferência de tecnologia. Nenhuma dessas duas políticas, porém, gerou capacitação tecnológica importante nem redução significativa da dependência de importações.

O resultado desses quase 30 anos de neoliberalismo em relação aos medicamentos é uma crescente dependência brasileira de importações e da tecnologia estrangeira, além de enorme vulnerabilidade sanitária, que vem prejudicando a população, o setor público – que tem de comprar medicamentos para os usuários do SUS – e o risco de o país se ver praticamente sem medicamentos caso haja um agravamento da crise econômica e política internacional.

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