Por Arthur Ventura da Silva
“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial
A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente”
No ano de 1997 um dos principais grupos de rap do Brasil, o Racionais Mc’s, apresentava na música “Capítulo 4, Versículo 3” uma fala com as mais duras e cruéis estatísticas do presente, retratando um problema estrutural de abrupta desigualdade social e racial existentes até os dias de hoje, forjadas de um passado ainda não superado pelo povo preto em nosso país.
De fato, este passado assombra todos os dias trabalhadores e trabalhadoras, jovens, crianças, adolescentes pretos e pretas nas favelas, nas “quebradas” onde vivem em sua maioria. Onde sua expectativa de vida em relação a população branca é inferior, onde o Estado burguês se manifesta de forma negligente e de forma extremamente violenta com o povo pobre e preto do Brasil, sendo exemplo claro disso o assassinato quase que diário de crianças e de pais de família, como o caso de Evaldo dos Santos Rosa alvejado com 80 tiros em seu automóvel pelo Exército ou o caso de João Pedro de 14 anos assassinado covardemente pela Polícia Federal.
Quando olhamos este passado de forma breve com o desenvolvimento histórico-dialético da nossa realidade, temos a primeira constatação como norte: a formação do capitalismo e portanto das classes dominantes atuais no sistema-mundo, foi assentada na mais brutal discriminação, segregação, exploração e escravização do povo preto no mundo. Karl Marx em sua clássica obra, o “Manifesto do Partido Comunista” de 1848, lança algumas perspectivas para entendermos primeiramente a dinâmica de mundialização e desenvolvimento do capitalismo no mundo:
“A descoberta da América, a circum-navegação da África ofereceram à burguesia ascendente um novo terreno. O mercado indiano e chinês, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias e, em geral a intensificação dos meios de troca e das mercadorias deram ao comércio, à navegação e à indústria um impulso até então desconhecido, favorecendo na sociedade feudal em desintegração a expansão rápida do elemento revolucionário.
O modo de funcionamento feudal e corporativo da indústria já não satisfazia o crescimento das demandas consecutivas à abertura de novos mercados. A manufatura substitui-o. Os mestres de corporação foram desalojados pela classe média industrial; a divisão do trabalho em corporações diversas desapareceu em benefício da divisão do trabalho dentro de cada oficina.
Mas os mercados não paravam de crescer e as demandas, de aumentar. Logo a manufatura revelou-se insuficiente. Então, o vapor e o maquinismo revolucionaram a produção industrial. A manufatura deu lugar à grande indústria moderna; a classe média industrial, aos milionários da indústria, chefes de verdadeiros exércitos industriais, os burgueses modernos.
A grande indústria criou o mercado mundial, preparado pela descoberta da América. O mercado mundial expandiu prodigiosamente o comercio, a navegação e as comunicações. Por sua vez, esse desenvolvimento repercutiu sobre a extensão da indústria, e à medida que indústria, comércio, navegação e ferrovia se desenvolviam, a burguesia crescia, multiplicava seus capitais e relegava para o segundo plano as classes tributárias da Idade Média.
Portanto, vemos que a burguesia moderna é produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de profundas transformações no modo de produção e nos meios de comunicação.”
“Da ponte pra cá”, temos a colonização da América assentada na subordinação e subjugação dos povos indígenas e da escravização do povo preto advindo do continente africano. O ser humano foi transformado em mercadoria negociável. Sendo transportado nos porões dos navios negreiros para o Brasil, o tráfico negreiro foi responsável por transferir altos lucros para os traficantes e para os reis absolutistas na forma de impostos. No Brasil, a força de trabalho escrava foi responsável por dinamizar a vida econômica da colônia, foi responsável por garantir a extração de matéria prima para as metrópoles enriquecendo a burguesia europeia que se desenvolvia, que desenvolvia seus modos de produção e as forças produtivas em detrimento do atraso técnico de produtividade e de toda a brutalidade humana que o escravismo gerava, sendo recompensado pela produção em larga escala da monocultura latifundiária como Nelson Werneck Sodré coloca. O escravo preto passa a ser visto como “multidão” e não como indivíduo.[1]
Não por acaso que o Brasil em quase quatro séculos de escravismo, foi responsável por receber cerca de 5 milhões de indivíduos pretos advindos da África para trabalharem na exportação de produtos primários. A gigantesca “empresa” colonial brasileira tinha a sua lógica de funcionamento própria: trabalhar para interesses exógenos, alheios ao seu desenvolvimento interno com um projeto racionalizado pelos agentes da colonização do até então capitalismo mercantilista[2] sustentado pelo trabalho escravo de homens, mulheres e crianças pretas.
A formação histórica colonial brasileira foi um peso carregado mesmo após a independência política do Brasil de 1822. A crise do antigo sistema colonial brasileiro abre caminhos para a penetração da dominação não mais exclusivista de Portugal, mas de outros países como a Inglaterra e sua burguesia, que pressiona o fim da escravidão não pela bondade, mas pela necessidade de expandir suas mercadorias agora industriais para um país que tinha como base a mão de obra escrava, minando cada vez mais o Brasil da utilização deste modo de produção. A estrutura produtiva brasileira permanecia em grande funcionamento, sendo rentável a aristocracia cafeeira brasileira o mantimento do escravismo para o barateamento do custo de produção do café na concorrência de preços no mercado externo e para o mantimento da força de trabalho[3]. Isso até 1888 quando a lei Áurea é assinada e no ano seguinte o Império escravocrata de Dom Pedro II ruir.
A nova e crescente elite industrial brasileira advinda da migração de capitais dos barões do café e principalmente estes aristocratas, não se acostumam com o homem preto liberto. Quando alforriado, este continua subordinado ao seu senhor pelo trabalho servil no campo, na transição não totalmente completa do trabalho assalariado até os dias de hoje com a sobrevivência destas diferentes formas de subordinação.[4] Nas cidades, a alternativa que a elite encontrou, permeada pelo darwinismo social e pelo “fardo do homem branco” do começo do século XX, foi importar mão de obra da Europa para as indústrias, colocando a população preta alforriada na extrema marginalização. As reformas urbanas ofereceram aos homens e mulheres pretos e pretas, as favelas, os barracos de madeirite com o processo higienista de expulsão do povo preto dos cortiços das regiões centrais.
A industrialização na medida em que não resolve os problemas internos da condição de vida do nosso povo por estar intimamente ligada “desenvolvimento do subdesenvolvimento”[5] advindo do padrão de formação colonial brasileiro, agrava e intensifica ainda mais o processo de marginalização do povo preto no Brasil. A década de 50 é marcada pela expansão das favelas no país, sendo este processo ainda mais intensificado nas décadas posteriores, com o êxodo rural advindo da mecanização no campo e da concentração fundiária.
O tráfico de drogas se prolifera nos anos 80 e junto a isso o crescimento da militarização nos morros. A política de combate ao tráfico de drogas colocada no Brasil hoje, nada mais é do que a expressão da opressão e da política de genocídio que sempre foi regra em nosso país. Se na República Velha a questão social era um caso de polícia como tratada pelo presidente Washington Luiz, no Brasil subdesenvolvido do século XXI não é diferente. O encarceramento em massa é outra característica da guerra as drogas que é responsável hoje pela explosão do número de presos no Brasil de 800 mil pessoas em sua maioria pretas, tendo nosso país, uma das maiores populações carcerárias do mundo.[6] A renda do povo preto no Brasil segundo o IBGE ainda é 75% menor do que a de pessoas brancas,[7] sendo a população preta responsável por ocupar inevitavelmente os piores postos de trabalho, o que figura na realidade um benefício lucrativo para as elites brancas brasileiras também forjadas historicamente e advindas das aristocracias, com a superexploração de mais-valia.
Portanto, como segunda constatação, o capitalismo brasileiro e suas classes dominantes continuam, com base no preconceito, no racismo, na discriminação, no ódio e no genocídio, a escravizar nosso povo pobre preto, mas agora sobre a forma da escravidão moderna assalariada, sobre a forma da escravidão colocada pela superexploração do trabalho, pelo barateamento e marginalização da vida do homem preto no Brasil.
Caio Prado Júnior reflete ainda que não foi superado o “sentido da colonização” em nossa época, imprimido por forças externas no desenvolvimento histórico brasileiro.[8] O “sentido da colonização” se manifesta nos dias de hoje com uma economia dependente, totalmente alheia aos interesses do povo, subordinada ao imperialismo, onde sua lógica de funcionamento é servir a burguesia nacional e a grande burguesia estrangeira, sendo o caminho da libertação do povo trabalhador a luta pela revolução e a construção do socialismo.
A luta antirracista no Brasil portanto, diante do movimento contraditório da realidade histórica, diante de seu passado, deve de forma inevitável e consequente, lutar pelo fim do capitalismo para a libertação do povo preto. O movimento real, inerente e dialético da história só aponta um caminho, o caminho da rebelião do povo preto contra o capitalismo, pelo socialismo. Essa luta deve seguir os caminhos dos povos irmãos trabalhadores soviéticos que foram de forma brilhante, esteio na defesa da igualdade de raça na União Soviética. Deve seguir os passos dos irmãos trabalhadores Marxistas-Leninistas do Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos.
Apenas no sistema socialista o povo preto pode se libertar, viver longe do racismo. Somente abolindo a propriedade privada dos meios de produção alcançaremos de fato a igualdade racial, pois a essência do racismo é a exploração do homem pelo homem, condição máster de existência do sistema capitalista.
[1] SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. Editora Brasiliense, 1967. p. 75.
[2] NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial, Editora 34. p. 83.
[3] JUNIOR, Caio Prado. História Econômica do Brasil. Editora Brasiliense, 1945. p: 174.
[4] SODRÉ, Nelson Werneck. Desenvolvimento Brasileiro e a luta pela Cultura Nacional. Editora Ottoni. p. 39
[5] Nome do texto de André Gunder Frank.
[6] https://averdade.org.br/2019/09/800-mil-pessoas-estao-presas-no-brasil/
[7] https://www.almapreta.com/editorias/realidade/renda-do-trabalhador-negro-e-75-menor-que-a-do-branco.
[8] JUNIOR, Caio Prado. Formação do Brasil Contemporâneo. Editora Companhia das Letras, 1942. p. 26