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sábado, 23 de novembro de 2024

Carta | “ETEC Jaraguá: a história de uma ocupação”

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ETEC OCUPADA – O ano de 2016 foi uma reviravolta na história do movimento estudantil brasileiro. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)
“Uma história desta ocupação ainda estava para ser escrita. Tamanhas mobilizações e vitórias marcaram profundamente todos que passaram por esse processo.”
Gabriel Borges
Movimento Correnteza

SÃO PAULO (SP) – O ano de 2016 foi um marco da história do movimento estudantil brasileiro, sobretudo o secundarista: o governo Alckmin em São Paulo e sua política nefasta para a educação pública foram alvos de uma série de levantes nas escolas básicas e técnicas que, tanto nas salas de aula como nas ruas, ergueram a voz para dar um basta em tamanha precarização. A Ocupação das ETECs foi um dos principais movimentos daquele período e ajudou a formar centenas de militantes do movimento estudantil, como este que vos escreve. Ocultado e distorcido pela grande mídia, apagado da memória oficial das próprias escolas, muito da história sobre esses levantes acabou ficando só nos registros dos próprios estudantes que tiveram suas vidas marcadas por tais lutas.

Hoje um militante do movimento estudantil universitário, voltei meus pensamentos para o começo da minha trajetória de lutas nesse período e decidi contar um pouco da história heroica da Ocupação da ETEC Jaraguá (única escola técnica deste bairro periférico, nos fundões da zona noroeste paulistana) que tanto me inspira e tem gigantesco potencial de inspirar a muitos mais!

“Não Fecha Minha Escola”: Um Precedente Grandioso

AULA NA RUA – Estudantes realizam ousadas manifestações em defesa da educação ao trancar ruas. (Foto: Reprodução/Marlene Bergamo)

Antes de falar em 2016, é impossível não falar do final de 2015. Quando o governo Alckmin anunciou o fechamento de inúmeras escolas estaduais e turmas em outras tantas, os estudantes mostraram sua revolta em uma primeira grande onda de manifestações. A maioria das escolas alvos do governo tucano foram as localizadas nas periferias, onde está o maior déficit de ensino e os piores dados de lotação por sala de aula, ameaçando milhares de jovens pobres de perder o direito de estudar.

As mobilizações envolveram não só os estudantes secundaristas, mas também aqueles e aquelas do chamado Ensino Fundamental II, principalmente das 7ª e 8ª séries. As escolas listadas pelo governo foram paralisadas pelos estudantes e se tornaram verdadeiras escolas de luta: foram oficinas de produção de cartazes e instrumentos de percussão para sair às ruas e denunciar o governo Alckmin em semáforos, calçadas de mercado e nas portas das escolas.

Me lembro que a primeira vez que participei de uma manifestação foi nesse período, quando a escola estadual Elísio Teixeira Leite III, na Parada de Taipas-Jaraguá, foi ameaçada. Adolescentes entre 12 e 15 anos pararam as ruas em torno do Hospital Geral de Taipas, o principal da região, para se manifestar e receber o apoio massivo dos adultos que por lá passavam. O resultado foi duplamente vitorioso: primeiro, porque o governo voltou atrás, apesar de ter perseguido jovens e ter usado a polícia para agredir os estudantes; segundo, por servir de exemplo para novos levantes que viriam no período seguinte.

A Luta Contra o Ladrão de Merendas na ETEC Jaraguá

MOBILIZAÇÃO – Manifestações de estudantes contra Geraldo Alckmin tomam o Estado. (Foto: Reprodução)

Alguns meses depois, já em 2016, o movimento estudantil secundarista paralisou novamente em virtude de novos escândalos envolvendo o governo Alckmin: o desvio de verba pública da merenda escolar nas ETECs e outras escolas estaduais.

Apesar de ser esta a pauta mais lembrada, outros ataques dos tucanos não ficaram esquecidos nas manifestações, como novos cortes de verbas na área da educação ao mesmo tempo que o governo seguia gastando milhões em publicidade e perdoando dívidas de milionários.

Mesmo na pauta das merendas, a questão não era só devolver o dinheiro roubado das escolas que já a ofereciam, mas o próprio direito à merenda. Na ETEC Jaraguá, uma escola periférica cuja totalidade dos estudantes eram e são de baixa-renda, sequer havia almoço! Os estudantes que cursavam o ensino integral (das 7h às 15h) eram obrigados ou a trazer comida de casa e perder o intervalo na fila para usar o micro-ondas ou a tentar passar o dia inteiro apenas com a merenda seca (bolinhos e frutas, não raras vezes entregues à escola vencidos ou estragados). A forma de escapar dessa situação era tendo que gastar de 10 a 15 reais na cantina da escola, o que saía extremamente caro na soma dos dias. Que escola pública gratuita é essa que Alckmin oferecia em que, pra não passar fome, o estudante pobre tinha que tirar dinheiro do próprio bolso?

Contra isso saímos às ruas nas primeiras manifestações gerais dos estudantes da ETEC na Avenida Paulista e na frente do Centro Paula Souza, instituição responsável pela administração das ETECs e FATECs, cuja superintendência geral é cargo de confiança direta do governador. Com o acúmulo de reivindicações e a crescente brutalidade da polícia, a luta evoluiu para uma ocupação.

RESPOSTA À VIOLÊNCIA – Ocupações de ETECs passam a ser a resposta dos estudantes diante injustiças. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)

No dia 28/04, após uma manifestação com grande repressão da polícia contra a juventude, os estudantes pularam os portões do Centro Paula Souza e ocuparam o prédio. A resposta da Superintendência e da polícia não foi ouvir nossas reivindicações, mas o gás de pimenta, o cassetete e a bala de borracha. Durante aquela noite, muito fria por sinal, recebemos denúncias dos colegas que passaram a noite na ocupação do prédio que o ar-condicionado da sala onde ficaram foi ligado no meio da madrugada, pegando-os desprovidos de cobertas e agasalhos. Tal brutalidade, que remete inclusive a formas de tortura em presídios, provocou ainda mais revolta e, nos dias seguintes, as primeiras ETECs anunciaram a ocupação de seus próprios prédios.

A ETEC Jaraguá foi uma das primeiras a anunciar ocupação. Ao contrário de escolas próximas, onde o processo de ocupação foi violento e levou a conflitos, na nossa ETEC houve um primeiro momento de quase consenso. Em assembleia realizada no dia 3 de maio, os turnos da manhã e da tarde votaram por quase unanimidade pela ocupação da escola, e mesmo com uma grande quantidade de votos contrários no turno noturno (onde estavam em grande parte estudantes adultos) a vontade da grande maioria se concretizou e a ETEC Jaraguá declarou a Ocupação.

Uma vez trancados os portões da escola por dentro e os estudantes ocupados, o clima de tensão começou a aumentar. Em uma das noites seguintes, professores de direita e o próprio diretor da escola encorajaram os estudantes mais velhos da noite a, em nome de seu “direito de estudar”, abrirem os portões à força. Chegou a ser insinuada a derrubada do portão inteiro usando um carro, mesmo com alunos menores de idade dispostos a segurarem a entrada. Quando elementos mais hostis ameaçaram agredir os ocupantes, o que se viu da parte da diretoria foi convalescência, pra não dizer estímulo. Apesar disso, a escola se manteve ocupada.

Por outro lado, a solidariedade também foi enorme. Professores, funcionários da escola e terceirizadas, além de moradores próximos, doaram colchões, cobertas, alimentos e água para nós (a mando do diretor, a água havia sido cortada).

COLETIVO – Estudantes encontram em sua união uma forma de enfrentar a repressão e os problemas nas ETECs. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)

De manhãzinha, os portões eram abertos para os estudantes que não podiam dormir na escola poderem participar também das atividades culturais e de aprendizado. De fato, a escola nunca esteve tão viva: foram organizados pelo Grêmio Estudantil recém-fundado oficinas de arte, esporte, clubes de leitura, jogos de mesa etc. Ex-alunos que estavam então na faculdade foram convidados a vir voluntariamente oferecer monitoria nas disciplinas para os estudantes com dificuldades.

Um dos pontos levantados pela diretoria contra a ocupação é que, com a dispensa das funcionárias da limpeza, a escola ficaria suja e mal cuidada. Mas os estudantes deram o exemplo e deixaram a escola impecável com mutirões de limpeza organizados diariamente para limpar desde banheiros e corredores até a calçada da escola. Mesmo o almoço e a janta foram geridos por uma equipe destacada para garantir comida pra todos. E ninguém ficou de barriga vazia.

LIMPEZA – Juventude se une para organizar, limpar e recriar a escola que desejavam. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)
DISCIPLINA CONSCIÊNTE – Mesmo sem funcionários da limpeza e diretoria, estudantes conseguem manter escolas funcionando normalmente, com atividades adicionais e calendário. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)

O primeiro final de semana levantou um problema: era dia 8/05, dia das mães. Como os estudantes ocupados iriam passar com suas mães se estavam na escola? Se eles não podiam sair, elas poderiam vir! Juntando doações de estudantes e apoiadores, a escola foi aberta ao domingo para um almoço de dia das mães, algo que jamais tinha sido feito antes. Com participação massiva dos estudantes e suas mães, foi mais um sucesso da Ocupação.

Ao término da segunda semana, com o governo apresentando sinais claros de recuo, já recorrendo a reintegrações de posse nos prédios, as escolas foram se desocupando. A ETEC Jaraguá, uma vez reentregue, recebeu elogios do próprio diretor, que foi obrigado a assumir que nunca havia visto a escola tão viva e organizada até então.

As ocupações foram uma vitória e nos meses seguintes a cantina foi reformada, construindo uma cozinha e reorganizando as mesas para receber a merenda que enfim havíamos conseguido conquistar. Os estudantes passaram a receber café da manhã, café da tarde e o ensino integral teve direito a almoço com cardápio variado, contando até com nutricionista acompanhando a produção das refeições. Os estudantes da ETEC viram o fruto de suas lutas em uma vitória heroica!

Apesar do reconhecimento da diretoria, as semanas seguintes foram de perseguição aberta às principais lideranças da ocupação e funcionários que nos apoiaram. Pais foram chamados e um processo de demissão foi aberto contra um professor que nos ajudou com doações. Um estagiário de laboratório foi mandado embora da escola como clara perseguição às suas posições em defesa dos estudantes na Ocupação. Engajados na luta, ao término de um intervalo, os estudantes organizados pelo Grêmio atrasaram o retorno à aula fazendo um pequeno ato na porta da diretoria, ao som da célebre canção “Cálice”, contra as perseguições e as ameaças de demissão.

O clima de tensão continuou, mas os estudantes seguiram firmes. Nas eleições para direção do ano seguinte, cuja votação envolve professores, funcionários e estudantes, o diretor que incentivou a perseguição e a agressão aos ocupantes foi veementemente rejeitado.

O Legado da Ocupação da ETEC Jaraguá

O processo de lutas de abril e maio de 2016 na ETEC Jaraguá ficou gravado no Grêmio, rebatizado em 2017 como Grêmio Estudantil 3 de Maio, data de início da ocupação.

A escola passaria ainda em 2017 por uma nova mobilização massiva contra ataques, dessa vez aos professores, quando o governo tucano cortou salários e direitos. A campanha “O Professor é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo” paralisou as aulas após o intervalo para promover o debate acerca da educação e dos direitos dos professores. Eram assembleias com todos os estudantes nos turnos da manhã e da tarde em defesa do direito dos professores.

COMIDA PARA TODOS – Estudantes organizam comissões de limpeza e cozinha, garantindo atendimento a todos. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)
DOAÇÕES E SOLIDARIEDADE – Estudantes contaram com grandes doações e ações de solidariedade de moradores locais. (Foto: Gabriel Borges/Jornal A Verdade)

Um professor bolsonarista, velho conhecido dos estudantes como abusivo, transfóbico, homofóbico e racista dentro de sala de aula, arquitetou planos de boicote destas mobilizações no turno da noite, perseguindo os estudantes e os próprios colegas que estavam à frente do movimento. Com um abaixo-assinado organizado por centenas de alunos – muitos destes foram, inclusive, vítimas das perseguições e comentários infelizes dele – foi aberto um processo na comissão de direitos humanos do Centro Paula Souza contra sua conduta e nós conseguimos mais uma vitória: a cassação do dito professor.

Uma história desta ocupação ainda estava para ser escrita. Tamanhas mobilizações e vitórias marcaram profundamente todos que passaram por esse processo, inclusive este que aqui escreve. Se hoje estou atuando no movimento estudantil universitário, defendendo a linha do Movimento Correnteza no meu curso, é porque vi esperança na luta quando combatemos a fome e a perseguição política da nossa escola e garantimos a merenda e o almoço pros estudantes.

O legado da Ocupação da ETEC Jaraguá e do 3 de maio é imortal! Viva a luta dos estudantes secundaristas ontem e hoje! Ocupamos o presente para não deixarem invadir nosso futuro!

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