Conheça a história de Luiz da França e Silva, operário tipógrafo, potiguar e negro, militante ativo da causa abolicionista e considerado um dos pioneiros na divulgação de ideias socialistas no Brasil.
Felipe Annunziata
Historiador e professor formado pela UFRJ, militante do MLC
HERÓIS DO POVO BRASILEIRO – Associações mutuais, partidos políticos, jornais ou sociedades de resistência no campo organizativo. Abolicionismo, republicanismo, socialismo ou mesmo monarquismo no campo ideológico. Greves, manifestações e revoltas no campo da ação prática. Essas eram algumas características que estavam no ambiente de trabalhadores de diversas categorias do Rio de Janeiro da década de 1880. Dos padeiros aos estivadores, dos tipógrafos aos sapateiros, fossem brasileiros (negros ou brancos), ou estrangeiros. Para termos uma ideia, entre 1870 e 1906, apenas a categoria dos cocheiros e carroceiros cariocas organizou 22 greves por salário ou em defesa de direitos já conquistados.
No Censo de 1872, primeiro da nossa história, foram contabilizados cerca de dois mil escravizados nas linhas de produção das manufaturas. As primeiras fábricas e manufaturas brasileiras nunca foram espaços exclusivos dos imigrantes europeus, como é ensinado na escola. Na verdade, esses eram locais que tinham negros e brancos, escravizados e livres, brasileiros e estrangeiros. O trabalho assalariado concorria com o trabalho escravizado, compartilhando espaços, interesses e conflitos.
O trabalho escravizado é fundamental para compreendermos não apenas a nossa formação nacional, ou a formação das elites brasileiras, mas também a própria formação da classe operária brasileira. O patrão dos primeiros anos da Primeira República não era apenas herdeiro dos donos de escravizados, era ele também senhor de escravos. O operário fabril ou o trabalhador da manufatura não era apenas o imigrante europeu, mas também ex-escravizados e brasileiros pobres livres.
A narrativa tradicional dos livros de história em nossas escolas ainda apresenta a abolição e o movimento abolicionista apenas da perspectiva das elites políticas e econômicas da época. Sempre ouvimos a velha história da importância da princesa Isabel e de pessoas das elites na aprovação da Lei Áurea. É apagada a atuação do povo pobre no movimento abolicionista.
França e Silva, herói da luta operária e abolicionista
Um desses nomes “esquecidos” é o de Luiz da França e Silva (?-1894), operário tipógrafo, potiguar e negro, que se afirmou durante as décadas de 1880-90 como uma importante liderança de sua categoria. Foi também militante ativo da causa abolicionista e é considerado um dos pioneiros na divulgação de ideias socialistas em nosso país. Ele atuou como presidente do Partido Operário de 1890, uma das primeiras organizações políticas operárias de esquerda do Brasil.
França e Silva também procurou participar de diversas iniciativas para organizar sua categoria, como o Clube Abolicionista Gutemberg e o Centro Tipográfico Treze de Maio. Este último foi a primeira tentativa, talvez, de uma organização de caráter mais sindical da categoria dos tipógrafos no Rio de Janeiro.
Além disso, França e Silva sempre entendeu a imprensa como algo fundamental para a luta operária. Ele foi um dos proprietários da Revista Tipográfica, que circulou de 1888 até 1890, e editor do jornal Echo Popular. A revista era voltada para a categoria dos tipógrafos, trazendo debates sobre suas condições de trabalho e sobre a evolução técnica do setor.
França e Silva virou uma grande referência para milhares de operários no Rio e no país. Sua Revista Tipográfica circulou em vários estados e contava com correspondentes em Nova Iorque e Buenos Aires. Além disso, ele mantinha contato constante com operários da França, Alemanha, Áustria e Portugal. A liderança de França e Silva foi tamanha que, após sua morte, em 1894, se tornou tradição do 1º de Maio a visita ao seu túmulo com homenagens organizadas pelas entidades operárias da então capital brasileira.
Na revista, França e Silva se esforça em deixar registrado o papel da categoria tipográfica na luta abolicionista. Logo após a Abolição, em 13 de maio de 1888, ele ajuda a convocar os operários para uma manifestação. No dia 20 de maio, comemorando a abolição, a imprensa carioca havia saído numa passeata com mais de 5 mil pessoas, dentre elas 800 tipógrafos, mais da metade dos operários das oficinas gráficas do Rio. É nessa conjuntura que em poucos dias é fundado o Centro Tipográfico Treze de Maio, que tinha como proposta defender os interesses dos trabalhadores tipógrafos. Estes viam a abolição como parte de sua luta, se sentiam parte do processo de fim do cativeiro e, mais do que isso, parte fundamental do movimento abolicionista. Para eles, a libertação dos escravizados significava também o avanço dos direitos e da posição dos operários na sociedade brasileira.
A Lei Áurea era vista de forma positiva por França e Silva. Estava claro que aquele fato abria uma janela de oportunidades para a reorganização dos operários. Eles percebiam o movimento de trabalhadores como a continuidade direta do movimento abolicionista. Agora que o fim da escravidão colocou todos os trabalhadores num mesmo patamar, chegou o momento de se buscar a emancipação do trabalhador assalariado, do operário, na sociedade brasileira.
A luta dos operários na época da abolição da escravidão
Nessa época, várias iniciativas das corporações tipográficas vão tomando forma. Na véspera da abolição, em 12 de maio, França e Silva noticia que 400 operárias e operários de uma fábrica de ligas e chinelas se organizavam para entrar em greve. O motivo: o patrão queria descontar das operárias parte do salário.
Em julho de 1888, os operários da Imprensa Nacional enviam uma representação ao parlamento exigindo “que se garanta o futuro dos mestres, contra-mestres e operários que invalidarem por moléstia, acidente ou velhice e contarem mais de 30 anos de efetivo exercício nas oficinas do estabelecimento”. Era a luta em defesa do direito de se aposentar.
Em setembro, operários da oficina do jornal Província, em Recife, fizeram uma greve contra atrasos salariais. Semanas depois, operários da oficina do jornal Diário de Notícias, no Rio, se mobilizaram contra um patrão que queria reduzir seus salários.
Mais organizações operárias vão surgindo no entusiasmo com a abolição em vários pontos do país. É criado o Monte-Pio de Pernambuco, associação de tipógrafos de Recife. O Centro Tipográfico é fundado em São Paulo. Entidades semelhantes também são criadas em Belém e Juiz de Fora.
É bem verdade que a Lei Áurea é mais conhecida pelas suas omissões do que pelo que ela determina. Também é correto afirmar que sua aprovação veio sem qualquer compensação para a população negra saída do cativeiro. Mas França e Silva reivindica um processo de protagonismo aos operários tipógrafos. Ele mostra para nós, mais de 130 anos depois, que mesmo incompleta, a abolição não foi uma bondade dos ricos e da monarquia, mas uma conquista de séculos de luta dos escravizados, com apoio dos operários e do povo pobre.
Luiz da França e Silva não era apenas uma liderança operária, mas uma liderança operária negra. Este elemento é também fundamental ao compormos um juízo de valor sobre a importância do movimento abolicionista e do movimento operário no pós-abolição.
Um operário negro, não escravizado, debatia a pauta da escravidão em conjunto com a pauta dos trabalhadores livres, fazendo inclusive propaganda no sentido de aproximá-las. Um operário negro, dirigindo um jornal de uma categoria como a dos tipógrafos, coloca em discussão o pressuposto do negro ou do operário nacional herdeiro do atraso imposto pela opressão escravista sem qualquer possibilidade de ação política na sociedade.
França e Silva é, sem dúvida, um dos grandes personagens do movimento abolicionista no Rio de Janeiro. Embora sua participação ainda seja subestimada por nossa historiografia, seu nome merece ser lembrado como importante herói do povo brasileiro.