A norma linguística que nos é ensinada na escola como única norma viável é, também, instrumento de controle e de padronização burguês. Por trás do “medo de falar errado” existe uma estratégia que busca o silenciamento das massas.
Yasmin Barros
Rio de Janeiro
OPINIÃO – A democracia liberal burguesa tem muitas estratégias para permear suas ideologias em nosso cotidiano e a consumamos desavisadamente. Discursos e produtos culturais tornam-se propaganda silenciosa, construindo um imaginário que opera para o favorecimento das classes sociais dominantes, sem se apresentar enquanto tal. Assim, todas as instituições vão, pouco a pouco, contribuindo para a manutenção do famoso status quo, incutindo cada vez mais cedo a ordem do sistema como “natural”. Crianças ainda nos primeiros anos de vida começam a ser socializadas a partir de ideais neoliberais, sendo educadas com foco no “empreendedorismo” e no “mercado de trabalho”, em suas escolas “bilíngues” e “meritocráticas”. A escola torna-se o espaço por excelência de disseminação da agenda neoliberal, denúncia que está aprofundada no livro A Reforma Empresarial da Educação: nova direita, velhas ideias, de Luiz Carlos de Freitas.
Não é somente no dito que as ideias neoliberais vão sendo apresentadas e propagandeadas; é também no não dito. É no incentivo à perseguição de metas desde cedo, na educação pautada em “recompensas” e em “merecimentos”, na separação de estudantes em “turmas especiais” para aqueles que tiram as melhores notas, no fomento de projetos das escolas públicas capitaneados por instituições privadas, como a Fundação Roberto Marinho e o Instituto Ayrton Senna. E é também naquilo que desde cedo somos ensinados a valorizar: o padrão da burguesia. Nisto estão incluídos seus gêneros musicais, seus filmes, seus livros e, também, sua língua. É sobre esta última que quero me debruçar com especial atenção.
Somos ensinados, desde que aprendemos a falar, que existe uma fala “certa”. Em sua defesa se levantam todos os comentários debochados com os quais convivemos em harmonia: “não assassina o português”, “meus ouvidos sangram quando falam errado”, “fala que nem gente” e muitas outras. Nos acostumamos com comentários como esses nas salas de aula, na televisão e, muitas vezes, entre as pessoas com as quais convivemos, sejam familiares ou colegas.
Em 1999, Marcos Bagno apontou essas falas como manifestações daquilo que passou a ser chamado de “preconceito linguístico”, isto é, a descriminação que toma por base a forma de falar. São alvos frequentes deste preconceito as falas que denotam menor prestígio social, a saber: as falas das periferias metropolitanas e as de quase todos os estados fora do eixo Rio-São Paulo. Basicamente, a detenção do poder econômico e político possibilita a esses setores privilegiados também o poder de escolher como se deve, ou não, falar.
Esta forma “correta” de falar é apresentada a estudantes de norte a sul do país como uma ferramenta que possibilitaria a ascensão social. “Você não vai chegar em uma entrevista de emprego falando de qualquer maneira, vai?”. E assim naturaliza-se a perseguição contra formas de falar, que são também formas de existir (linguística e socialmente). Porque a língua não é apenas uma disciplina que nos é ensinada na escola; ela é história e ancestralidade, ela é afeto e herança familiar. O apagamento de falares, com a desculpa de serem “desviantes da norma”, atenta diretamente contra a existência daqueles que com eles se identificam, que através deles se expressam, e que, ao sentirem que não são socialmente aceitos, calam-se.
Por trás do “medo de falar errado” que é desde cedo incutido, com especial força, nos filhos e filhas da classe trabalhadora, moradoras das periferias das grandes cidades ou dos interiores do país, existe uma estratégia que busca o silenciamento das massas. Dá-se o direito de falar a quem sabe falar “a língua certa”: aqueles que tiveram acesso às melhores escolas e a um vasto arsenal de livros; aqueles que se viram representados pela fala branca e elitizada dos telejornais e novelas, e, principalmente, aqueles a quem nunca foi negado o direito de se expressar.
Assim, a norma linguística que nos é ensinada na escola como única norma viável é, também, instrumento de controle e de padronização burguês.
Texto maravilhoso! Linguagem permeia até luta de classes, interessante trazer essa abordagem pouco abordada na militância.