Casas com mais de 120 anos serviram de moradia para várias gerações. Metade das casas já estava no chão e o trabalho só não foi finalizado por um defeito no trator da empresa demolidora, quando a polícia foi chamada para interromper a ação.
Luiz Ribeiro | Diretor do SINTUSP
SÃO PAULO – Era manhã do dia 11 de outubro de 2022, e o cenário desse crime contra o patrimônio histórico ocorreu no Campus da USP de Ribeirão Preto – considerada a maior e mais relevante Universidade do país. Inclusive campus do atual reitor da USP, Carlos Carlotti. Difícil acreditar que uma barbaridade destas aconteça onde a construção do conhecimento, da diversidade de ideias e do debate democrático são tão valorizados.
A história como testemunha
Antes de ser Campus da USP Ribeirão, a área de quase 6 milhões de metros quadrados, na segunda metade do século 19, foi cercada para dar origem a Fazenda Monte Alegre, inicialmente dedicada a criação de gado com mão de obra predominantemente escrava.
Ainda antes do final do século 19, a área foi vendida para o alemão Francisco Schimidt que, com capital fornecido por financeiras de seu país, formou um impressionante império cafeeiro. E a moderna Monte Alegre era o centro de tudo isso.
Os escravos foram substituídos pelos imigrantes e para fixá-los foram erguidas colônias que levavam o nome de origem da região da maioria das famílias: Milanesa, Napolitana e Portuguesa, entre outras.
Com a derrocada do café nos anos 30 do século 20, o império dos Schimidt ruiu e nos anos 40, sob o governo de Getúlio Vargas, a fazenda foi “comprada” pelo Estado para a criação da Escola Prática de Agricultura.
O sonho fascista de desenvolvimento rural durou pouco. Com o fim do governo Vargas, a Escola perdeu força e o local foi cedido, pelo Estado, para criação da Faculdade de Medicina da USP, embrião do Campus atual.
As charmosas casinhas enfileiradas, das colônias, resistiram à passagem de todo o século 20 e às mudanças de “administradores”, porque eram habitadas por trabalhadores que cuidavam de sua manutenção. Simples assim.
Abrigaram várias gerações de famílias, cujos filhos, netos e bisnetos ainda hoje estão na USP, como as famílias como dos Neves, Mataruco, Mamedes, Castania, Rubens de Melo, Aguiar, Schiavone, Mazzotto, Protazino, Lopes, Castecrini, Ambrosio, Oliveira e Orlandin do saudoso André (Raposão), que foi um dos moradores na Napolitana, diretor do SINTUSP que faleceu durante a pandemia de Covid.
No final dos anos 90, do século passado, as regras de ocupação das casas e a falta de apoio da Universidade para manutenção, fez com que parte das casas do Campus ficassem sem ocupação e a Colônia Napolitana, quase que inteira, foi abandonada ficando à mercê da degradação pelo tempo. Detalhe pequeno: a rua onde fica a colônia é asfaltada, tem luz, água e esgoto.
Surgiram então, na década passada, alguns administradores da USP com o equivocado discurso de que “era melhor preservar apenas uma parte das casas e derrubar o restante” por causa do custo de manutenção. A ideia é tão absurda como se alguém chegasse em Ouro Preto, cidade histórica de Minas Gerais e dissesse: tem muita igrejinha aqui, todas muito parecidas, vamos derrubar algumas para poder investir na preservação das principais!”.
Baseados nessa lógica obtusa, os administradores do Campus chegaram a pedir ao Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico – órgão subordinado à Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo) autorização para a demolição da Colônia Napolitana. E em tempos de governos tucanos, obtiveram a aprovação parcial, condicionada, como manda a lei, à aprovação também do órgão local – o Conppac – Conselho do Patrimônio Cultural de Ribeirão Preto.
Parece um mero detalhe, mas não é. O pedido ao Conppac nunca foi feito pela USP, o que torna a demolição totalmente ilegal. E quem afirma isso é nada menos que o próprio presidente do Conppac, o advogado Lucas Gabriel Pereira.
Fio da meada
Retomando a cronologia dos acontecimentos, em março 2017, um ano após ter surgido a estranha ideia da demolição da Colônia Napolitana, pressionada pelos representantes dos trabalhadores, entre outros, a USP pediu à professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da própria USP Ribeirão, Silvia Maria do Espírito Santo, especialista em bens culturais, que elaborasse um laudo sobre a Colônia.
A professora pediu a participação do renomado arquiteto Marcos Tognon, da UNICAMP e entregaram à Prefeitura do Campus um documento no qual afirmaram – com ênfase – a importância da preservação das casas.
Segundo Silvia, nunca ouve novo contato posterior ou resposta sobre o parecer. Mas agora, sabe-se que um processo administrativo tramitou até que os burocratas, guiados pelos dirigentes, conseguissem supostos argumentos de que a demolição era a solução.
Importante lembrar que outros prédios remanescentes da centenária Fazenda Monte Alegre e que estão sob tutela da USP, como a “Tulha” – onde era armazenado o precioso café – e a “Casa do Administrador” – onde morou o filho do dono da fazenda (usado no passado pela USP como Restaurante dos docentes) – estão preciosamente conservados.
Já as “colônias” dos trabalhadores, têm situações distintas. Algumas casas são bem conservadas, outras mais ou menos mantidas e um grupo significativo foi abandonado à ação do tempo e “tombarão” mais cedo ou mais tarde. Ou, pior ainda, serão demolidas com argumentos esdrúxulos com no caso da Napolitana.
Pulo do gato
Avançando agora para o dia 5 de outubro de 2022, Reunião do Conselho Gestor do Campus da USP de Ribeirão Preto, a Vice-Prefeita do Campus, Eliana Franco Neme (FDRP) entre um e outro informe administrativo e de obras, afirmou que, com a colaboração da Faculdade de Odontologia (FORP), unidade da Prefeita, Léa Assed Bezerra da Silva, tinha realizada uma licitação e que, pelo valor aproximado de 93 mil reais, uma empresa foi contratada para a demolição das casas da Colônia Napolitana, a partir do dia 17 de outubro.
O representante dos trabalhadores no Conselho Gestor, Luís Ribeiro, também diretor do SINTUSP, pediu para registrar o protesto pela falta de solução na preservação do bem cultural. Foi acompanhado pelo Presidente do Conselho Gestor, diretor da Faculdade de Direito (FDRP), Nuno Manuel Morgadinho dos Santos Coelho. E nada mais. Nos dias seguintes, o representante dos trabalhadores entrou em contato com a professora Silvia da FFCLRP e com Pereira, do Conppac.
Da professora Silvia, Ribeiro recebeu a informação sobre o laudo de 2017, e de Lucas, presidente do Conselho, a afirmativa de que o assunto seria pauta na reunião do conselho agendada para o dia 10/10/2022.
Ainda no dia 7/10, Ribeiro enviou, na qualidade de membro do Conselho Gestor, pedido para que lhe fosse liberado acesso a todos os documentos envolvidos no processo. Até o momento, apesar do grave desenrolar dos fatos, não houve resposta sobre o acesso aos documentos. Será que vão esperar 100 anos?
Derrubada foi antecipada e pode configurar crime
Como se já não bastassem todas as desconfianças dos procedimentos burocráticos que levaram a Prefeitura – PUSP-RP (através da FORP) a contratar uma empresa para demolir um patrimônio histórico dos trabalhadores, há ainda uma forte suspeita de que o procedimento foi antecipado para evitar a possível interrupção ou anulação do processo.
Embora a vice-prefeita tenha anunciado que a demolição aconteceria a partir do dia 17 de outubro, a derrubada começou com uma semana de antecedência. O representante dos trabalhadores afirma que é fundamental esclarecer de quem partiu a ordem para antecipar e qual foi a real motivação para isso. Houve uma interferência que determinou a sequência dos fatos e isso precisa ser rigorosamente esclarecido. Pode ser um crime premeditado.
A situação se complica ainda mais com a constatação de que no dia 10/10, às 13h18, o Conppac enviou e-mail à Prefeitura do Campus da USP Ribeirão informando sobre a abertura de processo de tombamento de diversos imóveis do Campus, entre eles a Colônia Napolitana. Isso já seria o suficiente para que a demolição fosse imediatamente interrompida. E nada aconteceu, configurando-se crime contra o Patrimônio Histórico.
Demolição, polícia e o que fazer agora?
Chegamos agora à fatídica manhã do dia 11 de outubro, quando a professora Silvia, com lágrima nos olhos e o consternado Pereira, presidente do Conppac, chegaram à Colônia Napolitana constatando que metade das casas já haviam sido demolidas.
A historiadora não conseguiu conter as lágrimas quando chegou na Colônia Napolitana, um dos conjuntos de casas construídas no final do século 19 para abrigar famílias vindas, principalmente da Europa, para substituir a mão de obra escrava na lavoura de café de um dos maiores latifundiários da época. Tão rico e eficiente na exploração da mão de obra que ostentou o título de Rei do Café.
Mas como? Não era para começar no dia 17? Quem determinou a antecipação? Por qual motivo? Sob qual argumento?
As perguntas não obtiveram repostas dos responsáveis pela construtora que chegaram a ser ríspidos e ameaçadores. Não restou alternativa a não ser chamar a polícia para pedir a paralisação das obras.
Um engenheiro da Prefeitura do Campus apareceu, mais tarde, para tentar convencer de que “tinham autorização do Condephat e que isso bastava”. E aí veio a constatação nos documentos, finalmente desvelados, de que o procedimento não foi completo e não tinha a autorização do órgão municipal de conservação.
Pereira, do Conppac, lembra que desde 2013 os imóveis em questão estão listados como de interesse histórico e isso já bastaria como obrigação para que a USP consultasse o órgão sobre qualquer alteração. Então, está constatada a falha de conduta no processo da USP. Tv e imprensa impressa estiveram presentes e um monte de incertezas enrolam ainda mais esse novelo.
Agora as dúvidas são grandes: A Prefeitura do Campus, que atropelou todos os procedimentos, inverteu narrativas e antecipou a demolição de forma ainda não justificável, vai respeitar a interdição?
Rádio peão anuncia nova demolição
Uma das “informações” da Rádio Peão é de que, depois da Napolitana, o próximo alvo das demolições é a Velha Milanesa, diminuindo ainda mais a representação arquitetônica dos trabalhadores na história do Campus. Um verdadeiro “apagamento” da história dos que ajudaram a construir a história da Universidade.
É como quisessem esquecer que os trabalhadores existiram.
Um “milagre” pode ajudar a salvar o patrimônio na USP
Em meio a todo o processo de ameaça ao patrimônio cultural das “Colônias” dos trabalhadores do Campus da USP de Ribeirão Preto, o sindicalista e representante dos trabalhadores no CG, Luís Ribeiro, adiciona um “complicador apimentado” a esta história.
Ele lembra que, em outubro de 2017, o jornal A Cidade publicou reportagem dando conta de que o padre Don Inácio Del Monte, nascido na Fazenda Monte Alegre, estava com processo de canonização encaminhado ao Vaticano (Igreja Católica).
A família de Inácio, segundo a reportagem da época, veio da Itália. Então é de se supor que moraram em uma das colónias, onde ele teria nascido. Napolitana ou Milanesa, 50% de probabilidade. Na casa grande, com certeza ele não nasceu. “Imaginem então, se a USP mandou derrubar a casa onde nasceu o possível santo católico?” ironizou Ribeiro, completando que será um “milagre” a USP rever sua sanha demolidora.
Museu do Café, onde entra nessa história?
A “Casa Grande” da Fazenda Monte Alegre, é hoje o Museu Municipal “Plinio de Palma Travassos”. Quem administra – com muita deficiência, diga-se de passagem – é a prefeitura municipal. O local está fechado à visitação há mais de mais de seis anos.
Os “museus da USP” como são conhecidos, já foram um intenso polo de cultura, com centenas e até milhares de visitantes aos finais de semana. Infelizmente há mais de uma década o complexo perdeu seu brilho por falta de manutenção mínima e pelo descaso das seguidas administrações municipais.
Vários gestores da USP já fizeram propostas de que a USP assumisse esse importante patrimônio cultural, mas o capricho político, tanto da USP como do município, parece predominar e emperrar essa iniciativa.
A comunidade de São Paulo não pode permitir que uma instituição como a USP atente contra a história do nosso Estado e do nosso povo. Devemos lutar para preservar a memória do povo brasileiro e que a universidade seja o primeiro espaço a garantir essa preservação.