A população trans, principalmente no Brasil, é muito afetada pela privação da saúde mental. O capitalismo utiliza da patologização da vida como ferramenta de dominação. E a consequência disso é a alta taxa dos mais variados diagnósticos preocupantes do nosso povo. O caminho é a organização popular na luta por saúde pública, gratuita e de qualidade.
Por Yumi Sato Makiyama, Campo Bom (RS)
SAÚDE – “A rua é mundo cão. É faca, navalha. É a cara da morte a todo momento. Vacilou, um passo em falso, um erro, no ponto. Uma falha um retalho, remato sangrento. Na rua não tem paz pra mim ou pra mana. A polícia, o cliente, o tráfico, o ocó. Eu vivo numa selva urbana, insana. É a cidade inteira que quer me matar! Você não duraria nem ao menos 10 minutos, se estivesse em minha pele pelas ruas da cidade.” (Musical Brenda Lee e o Palácio das Princesas).
Começamos o texto através de um trecho da peça de teatro musical do Núcleo Experimental, companhia teatral de São Paulo. O musical conta a história de Brenda Lee, uma militante conhecida como “anjo da guarda das travestis”. Sua trajetória de luta ficou marcada pela criação do Palácio das Princesas, casa de apoio para pessoas que foram expulsas dos seus lares e/ou soropositivos. Tal trecho reflete a conjuntura da população, principalmente travesti e demais identidades transfemininas, que são vítimas do descaso do Estado e da violência transfóbica. Outras identidades, como transmasculinos e pessoas não-binárias, também são afetados pela transfobia que sempre esteve vigente mesmo sob circunstâncias mais “democráticas” no regime da burguesia. Setores da comunidade médica, fundamentalistas religiosos, setores reacionários do feminismo radical e associações políticas conservadoras são exemplos de grupos que representam efetiva ameaça a indivíduos trans.
Não é novidade que a vulnerabilidade em que se encontra a população trans as impede de ter acessos básicos a educação e ao trabalho. Situação que piora sem o apoio dos familiares, fazendo com que a única alternativa para se manter seja a prostituição, e trabalhos precarizados, como o telemarketing (Bento Xavier e Felipe Fly). Como consequência, a falta de acesso a direitos fundamentais como moradia e saúde levam a perda de dignidade e da humanidade, além de que, não existem perspectivas de inclusão nos espaços. Toda essa condição é resultado da necessidade do modo de produção capitalista em manter grupos na marginalidade, assim ampliando seu exército de reserva e, consequentemente, aumentando a exploração sobre a classe trabalhadora. Dado que, a opressão sofrida por pessoas LGBTIA+ está firmemente pautada na necessidade de manter a hegemonia da ideologia cissexista e reacionária da classe dominante, a burguesia. Sendo assim, pessoas trans são excluídas e tem sua existência ameaçada por uma ideologia que associa normalidade ao padrão da família burguesa. Além de que, os recortes de classe e raça tornam ainda mais excludentes os padrões de “normalidade social” (Programa da UP).
Saúde mental
Nesse cenário, sabemos que a saúde mental não é um problema individual. O fato de observarmos cada vez mais pessoas, sobretudo trans, com problemas de saúde mental escancara o problema estrutural do modo de produção capitalista em que vivemos (Reinilson Câmara). O capitalismo não só adoece, como mata. Com isto, ressaltamos que o termo transexualidade só deixou de ser classificado como doença pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em junho de 2018. Até hoje, lutamos para que haja a despatologização da transgeneridade, ou seja, lutamos para que as pessoas trans deixem de serem vistas como doentes. Entretanto, apesar de ter deixado de ser considerada um transtorno mental, ainda consta na Classificação Internacional de Doenças (CID) no tópico de “condições relacionadas à saúde sexual” (Bruna Benevides). Importante saber que a identidade trans não é causada por qualquer condição psiquiátrica, porém é nítido que esta população está refém de maiores adoecimentos mentais (depressão, ansiedade, suicídio…) por conta da transfobia.
Segundo a Secretaria Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC), estima-se que adolescentes trans são expulses da casa da família aos 13 anos de idade e que aproximadamente 80% das pessoas trans assassinadas em 2019 eram negras, praticamente 60% tinham entre 15 e 29 anos de idade, 67% eram profissionais do sexo e 64% foram executadas nas ruas. Não só, o suicídio é uma das causas mais comuns das mortes de travestis, mulheres e homens trans do Brasil pelo que se tem registro (devido à falta de dados o número é insignificante perto da realidade). De acordo com a Rede TransBrasil, a maioria dos casos ocorre entre jovens de 15 a 29 anos, sobre tudo entre pessoas do espectro feminino. E um recente relatório chamado “Transexualidades e Saúde Pública no Brasil”, do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e do Departamento de Antropologia e Arqueologia, revelou que 85,7% dos homens trans já pensaram em suicídio ou tentaram cometer o ato, dentre as principais motivações está o assédio, a perseguição, a rejeição e a violência transfóbica.
Essa realidade não é apenas uma questão trans e, sim, um problema cis com caráter de classe, que necessita ser tratado com urgência. Nossa pauta se insere no conjunto da luta do povo explorado contra a classe dos exploradores. Continuemos a lutar pelos direitos da população trans, tanto dentro das nossas organizações, como para a sociedade num todo. Estejamos dispostos a superar vocabulários, pensamentos e práticas impostos pela lógica que, dia após dia, acha que nossas vidas são negociáveis. Devemos lutar pelo socialismo, pois essa é a única sociedade que terá as condições materiais para existirmos e nos desenvolvermos. Sabemos que o socialismo é o espelho da nossa classe trabalhadora, sendo assim, só poderá ser, através da emancipação do povo trabalhador e do poder da nossa classe.
*Militante da UJR