Confira a matéria especial da edição impressa nº 285 sobre os crimes da Braskem em Maceió que está afetando milhares de pessoas.
A Braskem é uma grande empresa privada, que tem entre seus principais acionistas a holding Novonor, mais conhecida como Odebrecht, e a Petrobras. O objetivo dessa empresa é explorar o sal gema da cidade de Maceió para tornar mais ricos os seus acionistas. A ganancia dos donos da Braskem causou o maior crime ambiental do mundo em solo urbano e deixou 60 mil maceioenses desalojados, ou seja, sem casa, destruiu o rio onde pescadores trabalhavam, além de causar à morte de dezenas de pessoas. Estes crimes estão sendo cometidos há décadas, mas só ganhou maior repercussão em dezembro de 2023, quando uma das mais de 30 minas afundou. Reportagem especial publicada no nº 285 do Jornal A Verdade sobre mais um crime do capitalismo ao meio ambiente e ao ser humano.
Rafael Freire e Lenilda Luna | Maceió
BRASIL – O ponto de encontro da nossa equipe de reportagem era a Universidade Federal de Alagoas (UFAL), que fica logo na entrada de Maceió, capital do estado. Chovia no momento e isso fez com que mudássemos nossos planos iniciais. Enquanto descíamos pela Av. Fernandes Lima, em direção à parte baixa da cidade, parou de chover e recebemos a ligação do nosso entrevistado, retomando a ideia de visitarmos o bairro do Bebedouro.
A vida em Maceió parecia transcorrer normalmente. Uma avenida bastante movimentada, comércios abertos, pessoas amontoadas nos ônibus ou andando pelas calçadas com seus guarda-chuvas. Entramos pelo bairro do Farol e, sem aviso prévio para quem não conhece o local, ao dobrar a rua, chegamos à Ladeira do Calmon. Aqui começou nosso trajeto por dentro da “cidade fantasma”.
Ao final da grande ladeira, um prédio rosa, cumprido, bonito, antigo e imponente. Era o centenário Colégio Bom Conselho (construído em 1877), que funcionou por décadas como internato para moças e depois também como escola aberta. Ao fundo, a Lagoa do Mundaú, prateava nossa visão com o reflexo do sol.
De lado a lado, só as paredes das casas permaneciam de pé e a principal forma de vida ali existente é o mato, que sai pelas aberturas onde antes eram portas e janelas e que cresce margeando o meio-fio. E, por toda a extensão desse “corredor mal-assombrado”, destaca-se o amarelo das placas de sinalização com o recado: ROTA DE FUGA.
Entra rua e sai rua, e o cenário não muda. Casas destruídas, abandonadas, encobertas por tapumes de alumínio para esconder tamanha destruição. Na Praça Lucena Maranhão, a frente da Igreja Santo Antônio, uma construção de 110 anos, também está parcialmente coberta, só que pelos andaimes da reforma que nunca será concluída.
Neste momento, nossa colega de trabalho, a jornalista Lenilda Luna, relembra suas memórias de infância, vividas ali naquele bairro, e de tantas vezes que brincou naquela típica pracinha de bairro. E, apontando para uma casa de fachada antiga na esquina: “Ali morou Graciliano Ramos” – um dos maiores escritores brasileiros.
O lucro destruindo a vida
O crime socioambiental da empresa petroquímica Braskem, em Maceió, capital de Alagoas, é um dos maiores em solo urbano do mundo. Ganhou repercussão em 2018, quando moradores do bairro Pinheiro começaram a relatar rachaduras nas casas e ruas, além de outros problemas estruturais, logo depois de um tremor de terra, registrado no dia 03 de março daquele ano.
O Conselho Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-AL) convocou, cinco dias depois, uma reunião com especialistas, aberta ao público, onde a impressão que se teve foi a tentativa de rebater rapidamente qualquer vinculação do tremor com a exploração de sal-gema no subsolo da cidade.
Falou-se na hipótese da movimentação de terra em função do acúmulo de água na superfície por conta das fortes chuvas no período e também de falhas geológicas naturais no subsolo da região. Ou seja, a culpa era da natureza. Uma das vozes dissonantes foi a do engenheiro Abel Galindo, professor aposentado da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
Ele foi um dos primeiros a afirmar a necessidade de investigar a relação dos tremores com as mais de 30 minas na região. A Braskem se apressou a contratar uma empresa para fazer um estudo, mas as representações da sociedade exigiram uma avaliação autônoma, sem a intervenção da mineradora.
O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) foi convocado para realizar estudos. Mais de um ano depois, no dia 08 de maio de 2019, foi divulgado o laudo comprovando que a principal causa para o surgimento das rachaduras no bairro do Pinheiro – que depois se estendeu para os bairros do Mutange, Bebedouro, Farol e Bom Parto –, era a atividade da Braskem para extração de sal-gema, um tipo de cloreto de sódio utilizado na fabricação de soda cáustica e PVC.
A petroquímica opera na região há mais de 50 anos, implantada numa área de restinga e estuário lagunar que deveria ser uma área de proteção ambiental. Mas, na década de 1970, durante a Ditadura Militar, as pessoas que protestavam contra a instalação da empresa neste local foram perseguidas e vigiadas. Em Alagoas, possui ainda uma unidade no Município de Marechal Deodoro, a cerca de 30 km da capital.
A extração de sal-gema é um processo que envolve a injeção de água em profundidade para dissolver o sal, depois bombeado para a superfície. No caso da Braskem, essa água era injetada em uma camada de sal-gema que está localizada sob os bairros afetados. Ao longo dos anos, foram injetadas grandes quantidades de água na camada de sal-gema, o que fez com que ela se tornasse instável. Isso levou ao afundamento do solo da cidade.
Um estudo publicado pela Universidade de Houston, em 1992, por dois engenheiros, um deles Paulo Cabral, que foi funcionário da Salgema (primeiro nome desta unidade de produção da empresa), já alertava para os riscos desse procedimento em área urbana e indicava procedimentos para o preenchimento da cavidade, além da necessidade de manter o limite de diâmetro das minas e distanciamento entre elas. Diante disso, parece evidente que, há anos, a empresa tinha ciência sobre os problemas que poderiam ser causados e não tomou providências para evitá-los.
Em 2019, a Braskem encerrou a extração de sal-gema na região por determinação do Ministério Público Federal. Mas os danos já estavam causados. Mais de 60 mil famílias tiveram que deixar suas casas e a área afetada se tornou uma “cidade fantasma”. A Braskem foi responsabilizada pelo crime ambiental e condenada a pagar indenizações às famílias atingidas. No entanto, a empresa ainda não cumpriu todas as obrigações assumidas, como denunciam os moradores deslocados e outros que continuam isolados na região desolada.
O crime socioambiental da Braskem em Maceió teve consequências devastadoras para a população local. Além dos danos físicos às casas e ruas, o caso também causou danos psicológicos e sociais às famílias atingidas. As famílias que tiveram que deixar suas casas foram obrigadas a se mudar para outros bairros, muitas vezes distantes de seus empregos e de seus familiares. Isso causou um grande impacto na vida dessas pessoas, somando mais de dez casos de suicídio.
Além disso, o caso também causou um impacto negativo na economia da região. Os bairros afetados eram importantes polos comerciais e turísticos. As vítimas se organizaram e criaram o Movimento Unificado das Vítimas da BrasKem (MUVB) para reivindicar indenizações justas, realocação das famílias que continuam nas áreas de risco, transparência nas ações de reparação dos danos e, principalmente, responsabilização criminal da Braskem.
O crime socioambiental da Braskem em Maceió é uma comprovação de como a exploração predatória dos recursos naturais pode causar grandes danos à população e à natureza. É um alerta claro de que uma atividade estratégica e impactante como a mineração não pode ficar nas mãos de empresas privadas, nacionais ou internacionais, que visam apenas ao lucro para o punhado de acionistas, mesmo que isso custe a vida das pessoas.
“Até hoje, a empresa não assumiu publicamente este crime”
Foi na pracinha de Bebedouro que encontramos com Jackson Douglas, 43 anos, autônomo, que nos levaria ao coração do bairro, área vizinha à mineradora Braskem. Já na Travessa Belo Alves, conhecida como Rua do Cemitério, ele nos conta: “Todos os dias, eu venho aqui e paro na porta da casa dos meus pais. Olho, me revolto e vou resolver minha vida e brigar contra a Braskem. Só vou parar quando a Justiça abarcar todos os afetados”.
E continua: “São três gerações da minha família aqui, somando mais de 50 pessoas. Isso tudo aqui era sítio, com casas de taipa e a gente sobrevivia como dava, até melhorar um pouco de vida. Aqui no bairro todo mundo se conhecia e se ajudava. A vida em comunidade se acabou. Geralmente, quando nos chega a notícia sobre um antigo vizinho, é comunicando o falecimento. E muitos morrem do coração, de depressão, de câncer”.
Segundo Jackson, os problemas causados Braskem são antigos e sempre foram maquiados, mas, à época, não havia as informações que existem hoje. “Eu era menino quando a gente ia jogar bolo dentro da mina e aqui nessa rua já tinha casas que rachavam. Teve casa aqui que passou por mais de 20 reformas. Até que, em 2018, houve o primeiro grande abalo e ficou provado que tudo era culpa da Braskem”.
E finaliza: “Até hoje, a empresa não assumiu publicamente este crime. Por isso, indenização real nunca houve. A Braskem colocou pânico em toda a população, nos forçou a sair das residências e a aceitar os valores que ela mesmo estipulou para cada imóvel, que, em muitos casos, não chegavam à metade do valor de mercado. Isso no meio de uma pandemia e de uma crise. Ou seja, a empresa lucrou em cima do nosso desespero também”.
Além dos cinco bairros diretamente afetados, as demais localidades do entorno também vêm sofrendo sérias consequências, em especial os Flexais. No Flexal de Baixo, que fica às margens da laguna Mundaú, a comunidade de pescadores se sente abandonada, sem qualquer informação sobre seu futuro.
“Ninguém aparece aqui pra dizer nada, nem a Prefeitura nem a Braskem, que quer tomar a lagoa só pra ela. Depois do afundamento da mina, os peixes maiores sumiram, pois ficam só na área que está interditada. O mangue afundou e ficou só água. Ele era o berçário da vida, dos peixes, dos caranguejos, dos mariscos. Tudo se acabou e ficou muito mais difícil pra gente”, desabafa Leandro Alves, 41 anos, pescador e morador do local.
Acordo beneficia a empresa
Em janeiro de 2020, foi celebrado um acordo de reparação e compensação de danos aos moradores e à cidade, que envolveu a Braskem e o Ministério Público Federal (MPF). O acordo prevê ações nas áreas desocupadas, ações de mobilidade urbana e medidas de compensação social.
Este acordo, no entanto, foi bastante criticado pelos atingidos, principalmente porque a empresa teve todas as ferramentas para negociar as indenizações no valor que considerava justo e ainda ficou com a propriedade dos imóveis desocupados. “A Braskem comprou parte da cidade. Esse acordo foi favorável à empresa”, critica Neirevane Nunes, ex-moradora de Bebedouro e liderança do Movimento Unificado das Vítimas da Braskem (MUVB).
Neirevane morou em Bebedouro desde a infância. O avô dela, que era maquinista de trem, já tinha se estabelecido na região na década de 1960. O bairro era um ponto de cultura de Maceió, onde aconteciam festas populares e apresentações de grupos de folguedos. Além disso, os familiares moravam todos próximos e tinham uma convivência comunitária com a vizinhança. “Perdemos nossas raízes e nossas referências. A Braskem nos tirou nosso território, nossa história, nossa vida”, lamenta.
Apesar do sofrimento provocado por tantas mudanças bruscas, foi na organização coletiva que Neirevane encontrou forças para seguir em frente. “Eu participei das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), da Igreja Católica, desde bem jovem. Cresci no meio popular com essa perspectiva de transformação da realidade. Foi com essa experiência de ação popular que eu me integrei aos coletivos das vítimas da Braskem, reunindo as lideranças dos cinco bairros afetados. Foi nessa perspectiva de acreditar na organização popular que me filiei à Unidade Popular. Me identifico com o trabalho de base no meio popular buscando uma mudança efetiva. O que vai fazer virar este jogo é a mobilização popular”, finaliza Neirevane.
Silêncio comprado
Agora, cabe perguntar: Como foi possível chegar a essa situação tão grave? Como governantes, órgãos de fiscalização e órgãos de gestão ambiental permitiram essa destruição?
Duas estratégias predominam: repressão e cooptação. Primeiro, é preciso entender que a instalação de uma indústria química numa área de restinga, em uma faixa de terra entre o mar e a laguna Mundaú, que é um berço de reprodução de várias espécies marinhas, só foi possível na conjuntura repressiva da Ditadura Militar.
Na década de 1970, o Brasil vivia o chamado “milagre econômico”. Enquanto perseguia, torturava e matava lideranças populares e sindicais, o governo dos generais implantava indústrias pelo país, garantindo lucros bilionários aos capitalistas com a superexploração de trabalhadores e trabalhadoras, que sequer tinham o direito de organizar sindicatos autônomos para reivindicar direitos.
Foi nesse contexto que, depois de muitas disputas pelo controle da exploração de sal-gema, foi constituída, em 1975, a Salgema Indústrias Químicas S/A, com controle acionário majoritários estatal, através do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDE) e a Petroquisa (Petrobras Química S/A). O historiador Ediberto Ticianeli resume essa trama no artigo “Descoberta de sal-gema em Alagoas foi por acaso”, publicado em 2015 no blog História de Alagoas.
Quem tentou se levantar contra foi perseguido e silenciado. O professor José Geraldo Marques, biólogo que ocupou o primeiro cargo de secretário de controle de poluição ambiental, na década de 1980, foi uma dessas vozes a protestar contra o local em que a empresa foi instalada. Ele pediu demissão do cargo e narrou em várias entrevistas que, por conta do seu posicionamento, não teve mais condições de desenvolver suas atividades profissionais em Alagoas e foi morar na Bahia.
Ainda sob a ditadura, foram realizadas mobilizações coordenadas pelo Movimento Pela Vida e por entidades estudantis a partir de 1983. Em 1985, os estudantes de jornalismo Érico Abreu e Mário Lima realizaram uma reportagem que foi uma das poucas citações sobre as cavernas subterrâneas para extração de sal-gema em região habitada, trazendo riscos de afundamento dos bairros.
Durante a década de 1990, após a privatização da empresa, a atenção da sociedade foi desviada para o risco de vazamento de cloro. Foi instalada uma reserva ambiental, chamada de Cinturão Verde, que servia como uma indicação de que o ar não estava contaminado nos arredores da indústria.
A Braskem, buscando construir uma imagem positiva na sociedade, desenvolveu um programa de doações e patrocínios de ações educativas e ambientais, além de um tradicional prêmio de jornalismo. Também financiou diretamente campanhas eleitorais de vários partidos, inclusive PT e PCdoB. A denúncia foi feita pela Agência Tatu, em reportagem publicada em dezembro de 2023. Consultando dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os jornalistas indicaram que, entre 2004 e 2014, a petroquímica doou quase R$ 3 milhões a uma lista eclética de políticos alagoanos.
Desta forma, a Braskem foi silenciando sucessivas gestões públicas e criando a imagem de “empresa necessária ao desenvolvimento local”, num dos estados menores e mais pobres estados do Brasil, que é Alagoas.
Sendo assim, a saída estratégica para o momento é a estatização da empresa por parte da Petrobras, que atualmente detém 38% de suas ações, assegurando ao país soberania nos setores estratégicos de mineração e petroquímica, colocando em primeiro lugar a vida das pessoas e a natureza.