Além da precarização da saúde pública, paralelamente, o capitalismo vem precarizando os planos de saúde também, deixando as pessoas desamparadas em prol da garantia dos lucros.
Daniela Benite, David Gomes e Tami Tahira | São Paulo
O dia 29 de fevereiro foi escolhido para ser o dia de sensibilização de doenças raras por ser um dia raro, que acontece apenas em anos bissextos. É necessário refletir: qual a perspectiva de acesso à saúde para pessoas com doenças raras?
O diagnóstico é essencial para iniciar o tratamento adequado e garantir qualidade de vida ou até sobrevivência, mas leva em média de 5 a 7 anos para pessoas com doenças raras no Brasil, de acordo com Mara Lúcia Schimitz, coordenadora do Ambulatório de Doenças Raras do Hospital Pequeno Príncipe. Isso significa mais de meia década de pesquisas, exames, idas a médicos de incontáveis especialidades e a prontos-socorros que não estão aptos a lidar com a situação. Até mesmo quem recorre a planos de saúde pode se deparar com a falta de cobertura para vários tipos de exame tendo que pagar valores altos.
Mas os problemas não acabam aí. Depois do diagnóstico, apesar de saber o nome da sua síndrome ou doença, boa parte dos médicos a desconhecem ou sequer está disposta a pesquisar. E todo esse cenário depende também de apoio familiar, acesso, possibilidade de ir aos médicos e conseguir fazer os exames.
A pessoa com doença rara além de sofrer com os sintomas da enfermidade, precisa virar pesquisadora, sua própria enfermeira, sua própria especialista e sua própria ativista. Precisa ensinar e exigir pesquisa, precisa constantemente se certificar que está recebendo o tratamento adequado.
Daniela Benite, moradora de São Paulo, relata: “Eu não consigo mais comer o que comia antes por erro médico, por tratamento inadequado de um médico que, mesmo depois do diagnóstico, se recusou a escutar e pesquisar. A falta de preparo, de cuidado e de acesso pode afetar profundamente nosso corpo”.
As dificuldades de acesso pelo SUS: a demora e o sucateamento da saúde pública
Mas, afinal, o que é considerado doença rara? São doenças que afetam no máximo 1 a cada 2.000 pessoas. Isso pode parecer estatisticamente pouco, mas existem mais de 6.000 tipos de doenças raras. Então, apesar de raras, juntas são muitas e resultam em aproximadamente 6% da população afetada por alguma delas (13 milhões de brasileiros).
Muitas das doenças raras afetam múltiplos sistemas do corpo ao mesmo tempo e têm como sintomas outras doenças. Uma doença rara do tecido conjuntivo pode por exemplo causar ao mesmo tempo doenças gástricas, cardiovasculares e musculoesqueléticas. Nesse caso, a pessoa afetada precisaria de um time coordenado de médicos de várias especialidades como um reumatologista, um ortopedista, um gastroenterologista e um cardiologista. Além de conseguir atendimento com todos estes médicos é necessário que conheçam a doença ou estejam dispostos a pesquisar e aprender com a pessoa com doença rara.
O SUS é imprescindível para a saúde pública, mas vem sendo cada vez mais sucateado. Dani continua: “Antes de qualquer crítica tenho que enfatizar que ainda existem unidades incríveis do SUS e centros de referência importantíssimos. Mas o Brasil tem 27 estados e só temos centros de referência para doenças raras em 12, sendo 17 centros no total. Muitos desses centros têm atendimento limitado a certos tipos de doenças raras e filas de espera gigantes, como o centro de referência HC de Porto Alegre com mais de 2500 pacientes na fila de espera”.
Além dos centros especializados existe também a Rede Nacional de Doenças Raras, que é composta por hospitais universitários, serviços de referência em doenças raras e serviços de referência em triagem neonatal com 41 instituições participantes em todo o Brasil.
A saúde como mercadoria também é precarizada em nome do lucro
Então seria a saúde privada a solução? Para quem tem alguns milhares de reais sobrando todo mês, talvez seja um pouco, mas obviamente não é uma solução coletiva. Como é a situação da pessoa com doença rara na saúde privada e o que vem acontecendo com os planos de saúde?
Primeiro: para quem tem acesso a saúde privada é mais provável que não precise esperar mais que algumas semanas pra sua consulta. O diagnóstico vem mais rápido, pode se estabelecer um time de médicos de múltiplas especialidades com mais facilidade; pode ter um tratamento mais rápido, com acompanhamento mais frequente. Mas o processo de receber o diagnóstico e acertar o tratamento não está livre do descaso e da negligência devido à alta troca de médicos. O pronto-socorro de um hospital particular pode e comete os mesmos erros que um público cometeria.
Por questões de urgência de tratamento e acompanhamento muitas pessoas com doenças raras dependem da saúde privada e, por consequência, de planos de saúde. Mas assim como vem acontecendo uma precarização da saúde pública, paralelamente, o capitalismo vem precarizando os planos de saúde também.
Em 10 anos os usuários de planos de saúde com coparticipação triplicaram. Além da mensalidade, esses planos cobram uma taxa ou porcentagem de alguns procedimentos feitos. São a norma nos Estados Unidos e, no fim do mês, você paga mensalidade + R$50 reais de uma consulta + 30% do valor da ida ao pronto socorro, por exemplo. Assim, as empresas passam a pagar menos pela saúde e dividem os custos com os clientes.
As empresas criam duas modalidades de planos, uma com e uma sem coparticipação, deixando a sem coparticipação mais cara e levando as pessoas a só conseguirem pagar a versão com coparticipação – em 2018, o percentual de usuários de planos com coparticipação ultrapassou pela primeira vez o de usuários que pagam apenas mensalidade.
Além desses novos problemas devemos lembrar dos clássicos: os planos de saúde podem simplesmente negar a cobertura dos procedimentos necessários. Sobre isso, Dani diz: “Existem casos em que até a contratação do plano é negada a certas pessoas com doenças preexistentes, eles negam te ter como cliente. Apesar de a recusa de um consumidor no plano de saúde ser inconstitucional, isso acontece. A própria negação de muitos procedimentos também é contra a lei, mas mesmo assim acontecem e o usuário também paga com tempo e saúde mental, batalhando os planos para conseguir exames, tratamentos, cirurgias”.
Defender a saúde pública para salvar vidas
Grandes imobiliárias transformam imóveis em bens caros construindo uma segregação de classe no território, trabalhadores da terra até os dos caixas de mercado vendem uma comida em toda sua cadeia de produção pela qual eles mesmos não conseguem pagar com seu salário. Com a saúde, não é diferente: reduzir o investimento público em saúde, desmantelando o SUS enquanto corporações multinacionais de saúde tem isenção de impostos e cenário favorável para terceirizarem médicos e venderem seus planos é uma grande contradição do capitalismo.
O exército de reserva de desempregados é tão grande que pessoas com doenças raras, pertencentes da classe trabalhadora que não conseguem vender sua força de trabalho com a mesma produtividade que o restante da classe, não são considerados nem nas políticas públicas de uma nação capitalista.
A luta por saúde é urgente, vital e não pode ser negligenciada por nenhum setor popular.
Saúde não é mercadoria, pois as vidas da nossa classe trabalhadora não estão à venda.