Onde hoje vivem 200 famílias da comunidade Souza Ramos, o prefeito de São Paulo Ricardo Nunes quer construir dois túneis sem licitação. Com apoio do MLB, moradores resistem contra o despejo irregular e em defesa de seus direitos
Felipe Gomes | São Paulo (SP)
Nas últimas semanas, os moradores da comunidade Souza Ramos, na Zona Sul de São Paulo, vêm enfrentando uma dura luta contra um projeto higienista tocado pela prefeitura de Ricardo Nunes (MDB). Trata-se da construção de dois túneis na rua Sena Madureira, próxima da comunidade, conectando a rua à avenida Ricardo Jafet. Essas obras fazem parte de um projeto que foi esboçado ainda em 2011 mas que, por ter sido julgado ilegal naquela época, havia ficado apenas no papel. Recentemente, a obra foi reiniciada sem licitação, e está previsto que os túneis passem por uma área que é reconhecida como Zona Especial de Proteção Ambiental (ZEPAM).
Iniciadas no dia 16 de outubro, as obras na região vêm tornando insustentável a vida dos moradores da pequena comunidade, que já existe na região há 70 anos. O barulho ensurdecedor do maquinário pesado veio do dia para a noite, acompanhado das infiltrações de água e lama e das rachaduras que têm tomado conta dos imóveis.
Desde então, as famílias relatam que não dormem, devido à poeira, ao barulho e ao medo de que suas casas venham a desabar. “Tem pessoas doentes no local por conta dessa obra maldita. Isso não pode continuar”, denuncia Dona Mara, moradora da comunidade.
Cotidiano de sofrimento
Para além das péssimas condições de vida impostas pela obra da prefeitura, os moradores da comunidade Souza Ramos estão sofrendo ameaça de despejo. De uma hora para outra, 200 famílias correm o risco de terem suas casas destruídas, indo parar na rua. A prefeitura conduz o processo sem ouvir o que os moradores têm a dizer. Ao jornal A Verdade, eles fazem suas denúncias.
“Eu abri a minha janela e vi uma movimentação das minhas vizinhas conversando. Eu corri lá e fui conversar com elas. Elas falaram ‘estão arrancando as árvores, dizem que vão arrancar as nossas garagens’. Eu fiquei desesperada. Chamei minha outra filha e fomos correndo para a rua de trás, que dá para ver melhor o terreno”, conta Ana Beatriz, moradora do Souza Ramos.
Ela revela que os funcionários da Prefeitura mentiram quando perguntados sobre o porquê do corte das árvores, respondendo que estavam “apenas fazendo uma limpeza no terreno”. “No mesmo dia eles já começaram a cortar as árvores grandes. Tem árvores aí de 60 anos, e eu moro aqui há 29 anos. Meus filhos todos eu criei aqui, tudo nosso é aqui. Eles simplesmente chegaram cortando tudo e dizendo que nós vamos ter que sair daqui do nada”, ela questiona.
Por sua vez, a moradora Alexsandra fala do risco de dano à sua moradia: “Eles começaram a fazer escavações. Aqui atrás da minha casa se formou um grande barranco, porque anteriormente essa terra era segurada pelas raízes das árvores. Com a retirada dessas árvores, está na iminência muito grande de ter o deslizamento de terra. Fora o buraco que eles estão fazendo muito próximo à minha casa. E com a chuva a gente não consegue dormir direito, preocupados com o que pode acontecer.”
O mesmo cenário de tensão aparece no depoimento de outra moradora, Dona Madalena, ao jornal A Verdade: “O psicológico da gente não aguenta, porque você não dorme, não consegue dormir. Essa noite mesmo, eu acordei com os nervos todos tremendo. Sabe quando você acorda e o assunto que vem é aquele? Meu deus, o que será que vai ser da gente? Tudo o que eu consegui nos 35 anos que eu moro em São Paulo está aqui. E de uma hora para a outra aparece alguém com uma obra na frente da sua casa, querendo derrubar tudo, tomar a única coisa que você tem que é a moradia. É um absurdo.”
Apesar de todo o transtorno que está causando, a prefeitura de São Paulo segue sem abrir diálogo real com a comunidade, prometendo apenas um auxílio aluguel de R$400,00 ou um apartamento em outra região da cidade. Dona Mara rebate: “A gente não quer sair do nosso lugar. A gente não quer dinheiro. A gente quer ficar, é um direito nosso.”
Destruição ambiental e corrupção
Como se não bastasse a catástrofe que seria o deslocamento forçado de mais de 200 famílias de uma comunidade que existe há 70 anos, as obras da prefeitura apresentam uma série de irregularidades que resultarão em um verdadeiro desastre ambiental. O projeto prevê o corte de mais de 172 árvores – sendo 78 nativas e, algumas delas, centenárias – e o desaparecimento de mais de 94 espécies exóticas da área de proteção ambiental.
Na área das construções passa também o Córrego Embuaçu, córrego que já foi reconhecido pela prefeitura como “importante recurso hídrico da região”. Carolina Ramos, representante do movimento “Salvem a Sena Madureira” relatou em entrevista para o jornal A Verdade: “Eles estão tamponando a nascente, isso é crime ambiental.”
Como se não fosse o bastante, o histórico da obra do túnel da Sena Madureira não cheira nada bem. Em 2018, Dario Queiroz Galvão Filho, presidente da empresa Galvão Engenharia, declarou ter pago a Gilberto Kassab 1 milhão de reais em propina para que sua empresa ganhasse a licitação da obra e o contrato. Kassab, que nega a acusação, era prefeito da cidade de São Paulo em 2011, ano em que a obra foi contratada. Apesar desse fato, a gestão Ricardo Nunes tomou a questionada decisão de retomar as obras do túnel com a Galvão Engenharia.
Segundo a Prefeitura, entregar o trabalho à mesma empreiteira de antes sai mais barato do que realizar uma nova licitação. O que faltou justificar foi o valor atualizado da obra: R$540 milhões, valor 140% superior ao original, que continua exposto no canteiro de obras.
“Progresso” ou higienismo?
Os protestos contra a construção do túnel vêm ganhando espaço na mídia e a atenção dos moradores da região e do restante da cidade. Denúncias e mais denúncias têm sido feitas escancarando os crimes ambientais que estão sendo cometidos pela gestão fascista de Ricardo Nunes.
No entanto, um aspecto essencial não pode ser deixado de lado na luta contra a construção do túnel: o projeto higienista que está sendo tocado pela prefeitura de São Paulo se trata, na verdade, de uma tentativa de limpeza social. O que esse governo dos ricos deseja fazer é retirar forçosamente a população pobre da região. Pessoas que lá moram, trabalham e estudam há décadas, e que fazem parte da história do bairro tanto quanto qualquer outro morador e que zelam e preservam a fauna e flora da Rua Sena Madureira desde o estabelecimento da comunidade.
Algumas perguntas que precisam ser feitas para que se chegue ao centro da questão são: quem ganha quando o povo perde sua casa? Quem ganha quando a cidade de São Paulo perde uma área de preservação? O que estamos observando é, mais uma vez, o movimento do grande capital, que pouco se importa com a história que cada família construiu na comunidade ou com o impacto que a remoção de cada árvore pode causar. Tudo é mercadoria: o espaço, as árvores, as casas e, no limite, as famílias vitimadas também. E toda mercadoria, na visão do grande capital, é feita para ser vendida.
As obras do túnel da Rua Sena Madureira têm como objetivo final forçar a saída dos trabalhadores da comunidade Souza Ramos do bairro da Vila Mariana, fazendo o preço dos terrenos da região subirem. Com isso, quem ganha mais uma vez é a especulação imobiliária, suas grandes empreiteiras e seus grandes bancos.
É possível vencer
Nas últimas semanas, o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) se fez presente na comunidade Souza Ramos, prestando solidariedade aos moradores, e se propondo a ajudá-los a organizar sua luta pela permanência, respeito e dignidade das famílias. A mensagem do MLB para os moradores é clara: impor uma derrota ao grande capital nesse embate não é apenas necessário, mas plenamente possível. Em sua história de lutas, a classe trabalhadora do mundo inteiro já deu provas e mais provas de que, com organização, é possível vencer.
No último domingo (10/11), um ato foi realizado na entrada da rua Sena Madureira denunciando o absurdo que a prefeitura de Ricardo Nunes está fazendo. Muitas forças se somaram na manifestação. É preciso continuar a mobilização permanente em defesa das famílias da comunidade Souza Ramos e do meio ambiente. Souza Ramos fica!
Parabéns pela matéria! Obrigada pelo apoio!