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sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Quebraram as correntes, mas deixaram a porta encostada

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“Também vejo a chibata cantar nesse mesmo povo que vive o passado no presente, quando a guarda pega sua mercadoria, quando a PM sobe com truculência à favela e destrói tudo por onde passa.”

Lili dos Anjos 


RIO DE JANEIRO Ouvimos gritos e achamos que eles são passageiros; nos acostumamos a pensar que não temos algo a ver com eles, pois não são nossos ou de “ninguém meu”; nos acostumamos a gritar sem ser ouvidos, a reclamar bem baixinho ao pé do ouvido. Foi nos ensinado a esquecer o passado e construir um agora, a ouvir a frase “Eu vejo um futuro repetir o passado” e achar que foi só uma estrofe de música bem-sucedida, que se ignora a história.

Que História? A Minha, a Sua, a Nossa

Pintor: Jean-Baptiste Debret

A escravidão não passou logo, a luta não foi fácil mas ela aconteceu e quando penso nas aquarelas de Debret e me vejo no meio do carnaval, no meio do bloco, e olho para a quantidade de ambulante a minha volta e sua cor, não posso deixar de pensar nos escravos de ganho das aquarelas, que iam para as ruas querendo alcançar sua liberdade, e se vejo esse lado, também vejo a chibata cantar nesse mesmo povo que vive o passado no presente, quando a guarda pega sua mercadoria, quando a PM sobe com truculência à favela e destrói tudo por onde passa. Nesse ponto, nos ensinaram a virar o rosto, trancar a porta, não ouvir o outro, a ter medo de abrir os olhos.

Ilustração: Amanda Miranda/The Intercept Brasil

Foram tantas vezes que nos ensinaram a esquecer tudo e fingir tudo que acreditamos que era verdade.

Nos anos de chumbo, chamaram vários vizinhos e amigos de escola ou de parentes seus de terroristas, assassinos sanguinários, nos repetem isso mais uma vez e pode olhar seu relógio e vê que a data está correta, todas as notícias são de agora. Muitos ainda não se assustaram com isso, acreditaram que era verdade tudo ou quase tudo. Querem nos proibir de pensar, de descordar e falar que o problema de tudo é a minha existência, a sua existência. O problema sempre foram eles, o monstro que acreditávamos não existir.

Ao contrário do que aprendemos eles são belos, não existe uma cara feia, mas o fedor deles podemos sentir de longe, em meio a tanto perfume caro. Aqui o sublime não acontece, o terror não se torna belo, o terror é apenas terror e sempre quer nos sufocar.

As mais belas músicas que me contam como resistir o monstro pega, os filmes de quem ajudou a me salvar o monstro engaveta, faz tudo com uma facilidade como quem bebe água, afinal por quantas vezes nãos o fez ele em 1968? 1970? Muitas, e aprendeu a não se negar a fazer. Olhares tortos o monstro consegue desviar, das nossas balas por vezes ele cai e quando amassamos eles tentamos por num buraco, vem uma mão e o sobre com areia, deixa a cabeça para fora, dando a oportunidade dele se levantar.

Não deixaram jogar concreto no buraco, nos chamam de vitimistas, revanchistas, diminuem toda dor que são capazes de causar. Tiram sua história, sua capacidade de pensar, faz você acreditar que deve ser apenas um pobre infeliz com a barriga a roncar já que não pode trabalhar e nem descansar.

Foram várias voltas curtas através da roda da história mas que já devem ter feito você a olhar pro lado ou olhar o celular e procurar o politico que acreditou ser um meme ou que apenas queria o novo e de uma forma diferente. A cara é nova mas a cabeça é atrasada, é escravista, é fascista e só quer seu sangue sugar.

Nosso monstro da fase da vida, que por não destruirmos na ditadura, por não ser punido, foi nutrido e na sua figura mais apodrecida tem como meta de vida nos tirar a vida. Nos tirar a arte, nos tirar a música, a vontade de pensar.

Por mais que fomos ensinados a não gritar, a achar que ele não exista. Pegaremos o monstro histórico que pode se assemelhar aos da Odisseia e o destruiremos por completo, não cederemos ao canto das sereias, não gritaremos nossos nomes ao final, mas todos eles saberão que a grande viagem terminou. Porquê nós somos filhos e filhas daqueles que romperam as correntes da senzala, que derrubaram os porões e não deixaram ditar o que é a nossa liberdade.

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