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domingo, 22 de dezembro de 2024

Os Currais retrata campos de concentração durante a seca de 1932

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A 29ª edição do Festival de Cinema Internacional, ocorrida em Fortaleza, exibiu 48 filmes, entre curtas e longas-metragens, e teve um público total de oito mil pessoas. O documentário cearense Os Currais, de Sabina Colares e David Aguiar, foi premiado na categoria de Melhor Longa-Metragem.

Claudiane Lopes


Foto: Reprodução/Os Currais

O filme denuncia as condições desumanas dos famintos da seca que iam até a capital do Ceará em busca de trabalho e de comida. Para afastá-los da cidade, o governo aprisionava homens, mulheres, idosos e crianças em diversos campos, onde recebiam restos de comida e ficavam até a morte para depois serem enterrados em valas comuns. Para falar mais sobre o filme, o jornal A Verdade entrevistou os diretores David Aguiar e Sabina Colares.

A Verdade: Como vocês chegaram ao tema dos campos de concentração?

David Aguiar – Apesar de ser fortalezense, sempre tive uma profunda ligação com o Sertão. Meu pai era do interior do Ceará. Nas noites de conversas ao redor da fogueira, os mais antigos narravam coisas do Sertão. O flagelo da seca sempre aparecia, as mortes pela fome e doença, e isso foi algo que me marcou muito. Em Fortaleza, por sua vez, isso nunca era falado. Certa vez, em uma viagem com o cantador e repentista Geraldo Amâncio – por sinal, o último parceiro de cantoria de Patativa do Assaré –, passamos pelo Município de Senador Pompeu, Sertão central cearense, e ele me contou como milhares de flagelados da seca de 1932 morreram num campo de concentração. Isso aguçou profundamente meu interesse sobre o assunto e foi quando percebi como o tema era recorrente em cordéis e cantorias. Mas foi no meio universitário que realmente tive acesso a essa história, que praticamente era um tabu fora dos círculos acadêmicos, sobretudo em Fortaleza. É importante lembrar que muitos bairros periféricos desta capital surgiram ou tiveram uma explosão demográfica a partir dos fluxos migratórios e dos campos de concentração, tanto em 1877-1880, período no qual Fortaleza, com uma população estimada à época em torno de 27 mil habitantes, recebeu mais de 100 mil flagelados semimortos – e que, num único dia, morreram 1.024 flagelados da seca, episódio hoje conhecido como a Noite das Mil Mortes –, como nas concentrações de 1915 e 1932. E no caso deste último, o campo de concentração do Pirambu deu origem ao bairro que na época era considerado algo totalmente fora dos limites de Fortaleza. É aí que começamos a entender o mapa da miséria e violência que se perpetua na capital cearense.

Sobre a fase de produção, como foi refazer esse caminho dos flagelados da seca?

Sabina Colares –Achamos que, antes de tudo, foi sentir e pensar como o povo cearense é marcado pelos movimentos migratórios e os problemas gerados. Isso significa conviver com uma realidade muito dura e sofrida do sertanejo, que, durante séculos, migra e abandona sua terra, é submetido aos mais diversos modos de abuso, violência e exploração econômica e, por isso mesmo, sempre cultiva suas raízes e ancestralidades, uma memória de dores, mas também de lutas. Durante todo o período de pesquisa e produção, fomos afetados no encontro com as personagens, com esse sentimento profundo de resistir na memória, que sempre nos manteve numa espécie de tempo em suspensão: foi algo que aconteceu no passado mas que continua acontecendo sob novas formas; são amores e lutos deixados para trás, mas que podem se repetir a qualquer momento, como se o tempo fosse cíclico e sempre retornasse. Daí termos a obrigação de perceber que os poderes que agem sobre esse povo são projetos culturais, políticos e econômicos que se perpetuam sob novos disfarces. A manutenção e renovação das oligarquias representadas por “famílias tradicionais” nas cidades, sobretudo do interior, que se apresentam como soluções de velhos problemas, implementando velhas práticas de produção das desigualdades sociais com uma roupagem de um suposto “novo progresso”, ou a criminalização da pobreza ainda vista como “um caso de polícia” e o preconceito social de grande parte da sociedade cearense e brasileira, ou ainda o inchaço de nossas periferias com tudo que isso significa, enfim, só para citarmos alguns exemplos mais evidentes. 

Tomaz Pompeu Sobrinho já falava que os campos de concentração e as secas de 1915 e 1932 foram devastadoras para a grande maioria da população cearense e nordestina, mas “para alguns fora um grande inverno verdejante”. Também é importante ressaltar que documentos do Dnocs atestam que existiram pequenos campos de concentração na Paraíba, e que muitos retirantes paraibanos foram concentrados no Campo do Buriti, no Município de Crato, na região do Cariri, por exemplo, e eram levados para a construção do açude Piranhas, na Paraíba, ou em outras obras no Estado do Ceará. Percebemos que seria importante trabalhar com artistas da Paraíba, como é o caso de Everaldo Pontes e Zezita Matos, que compõem a parte ficcional deste filme. Apesar de haver uma pequena incursão pela ficção, é preciso esclarecer que a personagem Dira, interpretada por Zezita Matos, por exemplo, foi totalmente baseada em fragmentos de memórias e testemunhos de uma sobrevivente do campo de concentração do Pirambu, hoje falecida. 

Vocês dedicaram quatro anos de investigação para a realização do filme. O que os motivou nesse tempo? 

David Aguiar – O documentarista tem uma necessidade natural de contar histórias. O encontro com a realidade do outro sempre se torna um combustível, desenvolve uma empatia muito forte com as pessoas de quem tomamos emprestadas suas histórias e memórias. Mas achamos que a história dos campos de concentração tem algo a mais. Primeiro, pelo nosso envolvimento direto com temas do Sertão. Temos uma ligação íntima com o Sertão, suas tragédias e poesias. Mas a cada encontro, seja com os personagens em Fortaleza ou no Sertão, ou até com os documentos históricos e materiais de arquivo, descobríamos um pouco de nós mesmos, pois algo dessa história nos pertence hoje. E isso nos motivava a mostrar que não estamos falando de pessoas distantes no tempo ou no espaço, mas estamos construindo e constituindo uma narrativa do aqui e agora. Mas, provavelmente, a necessidade que as personagens deste filme apresentavam em falar e expor o que lembravam, viveram e sentiam nos contaminou de forma única, e isso foi uma experiência muito marcante e motivadora. Se não precisássemos continuar por nós mesmos, precisávamos continuar por estas pessoas. 

Qual a importância do filme para ir na contramão desse “apagamento histórico” deste episódio?

Sabina Colares – A história dos campos de concentração no Ceará, assim como tantas outras tragédias, genocídios e crimes perpetrados pelo Estado brasileiro, costuma ser tabu na nossa sociedade. Passamos por um processo eleitoral recente e vivemos um momento histórico de negacionismos: o atual presidente da República, por exemplo, nega a escravidão negra e indígena no Brasil, assim como nega os crimes bárbaros que a ditadura civil-militar realizou durante 21 anos, para citarmos apenas dois exemplos da tentativa de narrar um Brasil fictício. E tal postura se estende por grande parcela da sociedade brasileira, principalmente a elite econômica e a chamada classe média, talvez como modo de negar, também, suas culpas em tais episódios grotescos. Portanto, podemos dizer que o apagamento histórico é regra em temas dessa magnitude. Num cenário como esse, é imprescindível que a arte marque posição e se contraponha a esses movimentos tão retrógrados. Seria fácil escrever uma sinopse do Currais e mostrar que falamos do presente e não do passado. E sabemos que isso pode incomodar. Uma grande parcela da sociedade brasileira simplesmente nega tais acontecimentos, ou se acomoda em colocar tais eventos num passado morto que nada tem a ver com o nosso tempo atual. Mas as vítimas desses crimes resistem em suas memórias e afetos, e a arte não pode negligenciar tal fato.

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