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terça-feira, 10 de dezembro de 2024

MPF denuncia médico por farsa nas mortes de Manoel Lisboa e Emmanuel Bezerra

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Amaro Luiz, Manoel Aleixo, Emmanuel Bezerra e Manoel Lisboa

 

Por Rafael Freire, da Redação

O Ministério Público Federal de São Paulo, por meio do procurador Andrey Borges de Mendonça, denunciou novamente agentes do Estado que praticaram crimes no período da ditadura militar. Já tendo denunciado outros crimes desta natureza, como no caso do jornalista Vladimir Herzog, agora o MPF-SP ofereceu denúncia sobre os casos de Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos, dirigentes do Partido Comunista Revolucionário (PCR) assassinados em setembro de 1973.

Por ainda estar vivo, o ex-médico legista Harry Shibata é o único que consta formalmente na denúncia feita à Justiça Federal no último dia 31 de março. Shibata chegou a ter seu registro de médico cassado pelo CRM-SP por sua participação em diversos crimes, como falsificação de laudos necroscópicos e certidões de óbito.

O MPF traz à tona também a reveladora confissão de uma ex-agente do DOI-Codi/SP sobre o que ela chamou de “cirquinho”, acerca da versão oficial do regime militar sobre as mortes dos dois dirigentes do PCR.

A denúncia do procurador Andrey Borges de Mendonça lança luz sobre este crime hediondo num momento em que diversos agentes públicos, incluindo o presidente da República, alguns ministros e vários generais do Exército que integram o governo exaltam publicamente o Golpe de 1964, a ditadura militar, as torturas e os assassinatos praticados contra os militantes políticos de oposição àquele regime. O próprio presidente e seus filhos desrespeitam a Constituição sistematicamente, incitando grupos fascistas a uma “intervenção militar”, que é, na verdade, mais um golpe para liquidar as poucas conquistas que tivemos no terreno da democracia e do direito do povo brasileiro à memória, verdade e justiça.

Harry Shibata, médico legista da ditadura militar, é denunciado à Justiça Federal

Assim se inicia o documento do MPF:

“No dia 04 de setembro de 1973, na sede do Instituto Médico Legal (IML) em São Paulo, os médicos legistas Harry Shibata e Armando Canger Rodrigues (falecido), visando a assegurar a ocultação e a impunidade do crime de homicídio perpetrado pelos falecidos delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, agente policial Luiz Martins de Miranda Filho (“Luiz Miranda”), coronel Antônio Cúrcio Neto e por Gabriel Antônio Duarte Ribeiro, além de outros agentes da repressão não identificados, omitiram, em documentos públicos, declaração que deveria constar, com o fim de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante.”

Além de apontar o crime de omissão de documento público, o MPF também requer a perda de cargo público do ex-médico legista e “o reconhecimento das circunstâncias agravantes por motivo torpe; prática de crime para assegurar a ocultação e impunidade de outro crime; mediante recurso que tornou impossível a defesa dos ofendidos; com emprego de tortura e outros meios insidiosos e cruéis; com abuso de autoridade; com abuso de poder e violação de dever inerente a cargo e ofício; e os ofendidos estavam sob a imediata proteção da autoridade”.

E ainda: “Destaque-se que os delitos, conforme mencionado, foram cometidos em contexto de ataque sistemático e generalizado à população, em razão da ditadura militar brasileira, com pleno conhecimento desse ataque, o que os qualifica como crimes contra a humanidade – e, portanto, imprescritíveis e impassíveis de anistia”. Harry Shibata é conhecido como um dos médicos legistas oficiais da ditadura militar. Foi, inclusive, diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo entre 1976 e 1983.

Militantes denunciam sequestros, torturas e assassinatos de Manoel Lisboa e Emmanuel Bezerra

Manoel Lisboa, fundador do PCR

Pelo menos quatro militantes que também foram presos políticos à época constam como testemunhas na denúncia do Ministério Público: Maria do Carmo Tomás e José Nivaldo Júnior (que viram Manoel Lisboa sob condições de tortura nas dependências do DOI-Codi do IV Exército, em Recife); Maria Amélia Teles (que relatou circunstâncias da morte de Emmanuel Bezerra) e Edival Nunes da Silva Cajá (que relatou circunstâncias das mortes dos dois dirigentes do PCR). Todos são unânimes em apontar o delegado do Dops/SP Sérgio Paranhos Fleury como chefe da operação que prendeu Manoel Lisboa e que o manteve sob tortura, em Recife, até sua morte.

Já no caso de Emmanuel Bezerra, ele foi preso pela Operação Condor e entregue à equipe do DOI-Codi do II Exército em São Paulo, onde foi torturado até a morte e enterrado no cemitério de Campo Grande, como indigente, na mesma cova com Manoel Lisboa.

Manoel Lisboa foi sequestrado no dia 16 de agosto de 1973, na praça Ian Fleming, no bairro do Rosarinho, em Recife, enquanto dava assistência política a Fortunata, então operária da Fábrica Torre e militante do PCR. José Nivaldo Júnior, que colaborava com as ações do PCR contra a ditadura militar e também estava preso no DOI-Codi, na Praça 13 de Maio, no Centro de Recife, relata as condições de Manoel após vários dias de tortura:

“Foi uma cena brutal. Digo com lágrimas nos olhos. Aquilo não é possível, uma coisa terrível, um ser humano deformado da cabeça aos pés. Ele estava tentando se arrastar, absolutamente retalhado. Pés absolutamente descarnados, mãos absolutamente descarnadas, rosto absolutamente deformado, ventre aberto. Deu para ver perfeitamente de relance. O algoz fez questão que eu visse. Tirou o meu capuz para eu ver, única e exclusivamente.”

E segue o documento do MPF: “Da mesma forma, a testemunha Maria do Carmo Tomás presenciou Manoel sendo torturado no DOI-Codi de Recife, praticamente todos os dias em que esteve preso. Ela viu o corpo de Manoel cheio de hematomas e queimaduras, decorrentes da tortura, bem como presenciou ele sendo torturado no pau-de-arara”.

O MPF cita ainda um importante documento das forças de repressão para elucidar os casos de Manoel e Emmanuel: “A prisão de Manoel Lisboa, em Recife, e a solicitação aos órgãos de Segurança Nacional para sua transferência para São Paulo são confirmadas pelo ofício nº 144-B – E2, de 28 de setembro de 1973 –, da 2ª Seção do IV Exército – assinado pelo Comandante do IV Exército, General Walter Menezes Paes. Este documento faz menção à prisão de diversos integrantes do PCR – não há menção a Emmanuel – e os apresenta, para as providências julgadas necessárias, ‘com exceção de Manoel Lisboa de Moura, que foi requisitado por Órgão de Segurança Nacional, sediado em São Paulo”.

Em seus depoimentos, Edival Nunes da Silva Cajá e Maria do Carmo Tomás creditam que Manoel não teria sobrevivido às torturas e teria morrido em Recife, e que seu corpo foi transferido para São Paulo para despistar os familiares, amigos e militantes da sua organização, dificultar a apuração da responsabilidade dos seus assassinos e para tornar verossímil a farsa da “morte em tiroteio” no Largo da Vila Moema, em São Paulo.

Segue o relato do MPF: “Por sua vez, em agosto de 1973, Emmanuel foi ao exterior. Passou pela Argentina, por volta de 18 de agosto de 1973, tendo se encontrado nesse país com Ricardo Zarattini para discutir questões do PCR. Esse encontro foi antes do golpe no Chile – ocorrido em 11 de setembro de 1973. Emmanuel tinha previsão para retornar ao Brasil para um encontro com Manoel, em Recife, no dia 15 de setembro de 1973. No entanto, em local que só os dois sabiam, foi preso pela Operação Condor e levado diretamente para o DOI-Codi do II Exército, em São Paulo”.

“Da mesma forma, a descrição das vestes de Emmanuel feita pelos médicos-legistas, no laudo de exame de corpo delito, demonstra que ele não teria vindo do Nordeste para São Paulo, e sim de um lugar de clima frio: ‘no momento do exame trajava camisa de tergal xadrez, cueca de algodão branco, calça de veludo preto, blusão de lã amarelo, meias de algodão azul, sapatos de couro preto’.”

Em seu depoimento ao MPF, Cajá afirma: “Emmanuel não foi preso em Pernambuco. Ele saiu daqui após uma reunião da qual eu participei, portanto, sei que ele voltaria no dia 15 de setembro, que tinha ponto com Manoel em Recife. Tenho segurança em afirmar que Emmanuel não foi trazido ao Recife, pois, de um total de aproximadamente 40 pessoas presas, entre militantes, simpatizantes e familiares, absolutamente ninguém o viu ou foi acareado no DOI-Codi nem no Dops de Recife”.

Segue o MPF: “Isto é confirmado pelo depoimento de Maria Amélia Teles, para a Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva, que acompanhou a exumação do corpo das vítimas: ‘Então, nós fomos lá ao cemitério com a turma da Unicamp para fazer a exumação das ossadas. E o Emmanuel tinha uma blusa pesada, de peruano, chileno. Quer dizer, ele veio de outro país. Ele não estava aqui. E um país que fazia muito frio”.

O documento conclui: “Emmanuel certamente faleceu no DOI-Codi/SP. Ele foi barbaramente torturado. Teve seu pênis, testículos, dedos e umbigo arrancados. Além disso, foi submetido ao chamado ‘colar da morte’, lesão que pode ser vista na foto do IML”. E: “No final do suplício, as duas vítimas [Manoel e Emmanuel] foram alvejadas por diversos disparos de arma de fogo para o fim de ‘justificar’ suposto ‘tiroteio’ (e o atestado de óbito), que faria parte da versão oficial do Exército sobre os fatos”.

Ex-agente do DOI-Codi revela farsa do Exército

Emmanuel Bezerra

Segundo o Relatório do Inquérito Policial assinado pelo delegado Edsel Magnoti, em 03 de dezembro de 1973, as mortes dos dois revolucionários se deram da seguinte forma: “No dia 4 de setembro do corrente ano, policiais da Segurança Interna em diligência para prisão de agentes subversivos se depararam [no Largo da Moema] com Emmanuel Bezerra dos Santos e Manoel Lisboa de Moura, pertencentes ao Partido Comunista Revolucionário – PCR, ocasião em que deram voz de prisão, mas houve reação dos subversivos, os quais resistiram fazendo disparos contra os policiais e, após tiroteio entre os subversivos e os policiais, Emmanuel Bezerra dos Santos e Manoel Lisboa de Moura receberam ferimentos que causaram suas mortes quando tentavam socorrê-los”.

Esta versão mentirosa foi amplamente divulgada pela grande imprensa, já que os maiores veículos de comunicação do país apoiaram o Golpe de 1964 e permaneceram colaborando com o regime por anos. Também a ditadura instalou a censura contra aqueles que tentassem fazer alguma denúncia.

No entanto, a tenente da Polícia Militar de São Paulo Beatriz Martins, que trabalhava no DOI-Codi/SP e usava o codinome de “Tenente Neuza”, confirmou recentemente ao procurador Andrey Borges de Mendonça toda a farsa que foi montada para justificar a versão mentirosa do Exército. Segundo ela, sequer as vítimas foram levadas ao Largo da Moema.

No caso das mortes de Manoel e Emmanuel, o DOI-Codi simulou a farsa com a presença, dentre outros, do agente Luiz Carlos Sinício, que trabalhou no DOI-Codi, e de Roberto Artoni (Pedro Aldeia), utilizando tiros de festim. Relata a tenente: “Tinha muita gente que era presa e o jornal, você sabe que tinha censura, era complicado. Então falavam que o cara tinha morrido no tiroteio. Levavam uma pessoa parecida, balas de festim e ‘matavam’ um dos nossos lá. Mas o cara [o preso] ainda estava vivo. Aí ia ver se ele entregava alguma coisa, mas dificilmente entregava. Eles tentavam interrogar, mas o cara não queria falar nada e aí viajava [era assassinado]. Eu lembro um dia do Sinício. Coitado, ele não sabia de nada. Chegaram lá e deram uns tiros de festim num colega dele. Ele não sabia do cirquinho que iam fazer e, pra ele, foi real. O Aldeia que deu os tiros. ‘Por que o Aldeia está matando ele?’. Fizeram o cirquinho e o jornal depois publicou que eles [Manoel e Emmanuel] tinham sido mortos num tiroteio”.

Ditadura cometeu crimes imprescritíveis

Como se pode ver no depoimento da tenente Beatriz Martins, o Exército mentiu para encobrir o crime de assassinato, sob torturas, de Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos. Mentiu e continua mentindo para tentar garantir a impunidade dos seus oficiais e demais agentes da repressão, que torturaram mais de 20 mil brasileiros democratas, revolucionários, patriotas e internacionalistas.

O movimento de direitos humanos do Brasil já sabia desta prática e sempre denunciou as torturas, estupros, assassinatos e ocultações de cadáveres. Os agentes da ditadura militar praticaram, portanto, crimes imprescritíveis, que podem e devem ser julgados para que se efetive o direito à memória, verdade e justiça.

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1 COMENTÁRIO

  1. É possível imaginar as cenas de suplício desses companheiros, mas só possível pelos filmes de terror que assistimos e que nos faziam tremer na possibilidade de passarmos próximo daquilo. São dois heróis que precisamos, assim como tantos outros patriotas, sempre lembrar seus nomes e suas dores. Estamos próximos disso mais uma vez ! As serpentes que sobreviveram aquele período chocaram e muitas já serpenteiam por aí, inclusive, e principalmente, nas altas instituições do Estado brasileiro. Cuidado! Pois mais uma vez eles tentam fechar o sinal para a democracia, fechar o sinal pra nós!

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