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terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Derrubar monumentos à escravidão e à exploração é direito humano dos povos

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GENOCIDAS – No centro do Rio, Duque de Caxias é homenageado com um enorme memorial. El foi responsável pelos maiores massacres cometidos pelo exército no século XIX. (Foto: Reprodução)
Felipe Annunziata*

RIO DE JANEIRO – Junto com os protestos antirracistas no mundo surgiu uma onda de revolta contra a história contada até os dias de hoje. Estátuas de traficantes de escravizados, generais e personalidades que defendiam o racismo e a escravidão foram derrubadas por todo os Estados Unidos e Europa.

Isso tem aumentado o debate no meio de historiadores e da imprensa sobre ser positivo ou não uma reação desse tipo. Muitos dizem que isso é uma destruição do nosso patrimônio histórico e do nosso passado. Por outro lado, nos movimentos aqui do Brasil começa a se questionar a existência de homenagens em praça pública a figuras como os bandeirantes ou Duque de Caxias.

Mas o que significam esses monumentos? Podemos considerá-los como patrimônio histórico e com isso intocáveis? Destruir as estátuas de assassinos e traficantes de escravizados pode ser considerado como um ataque a própria história e memória de nosso país?

Estátuas, monumentos, praças, nomes de rua e escolas são escolhas políticas que pretendem contar uma determinada história. A historiografia em si é uma narrativa política da própria história e como tal temos que observá-la politicamente e não apenas no campo acadêmico. Desde a antiguidade a humanidade criou imagens físicas para retratar seu passado ou contar o seu presente. Fossem obeliscos ou estátuas para lembrar vitórias militares, ou mesmo as grandes pirâmides para glorificar os faraós mortos no Antigo Egito para ficarmos em alguns exemplos.

No nosso país nos dias de hoje isso não é diferente. Em São Paulo, por exemplo, se fez inúmeros monumentos em homenagem aos bandeirantes como uma forma de contar uma história onde eles seriam desbravadores, aventureiros e visionários e que esse espírito segue até os dias de hoje no povo paulista.

Na realidade os bandeirantes eram conquistadores portugueses que invadiam o interior do Brasil no período colonial em busca de riquezas e para escravizar, torturar e matar milhares de indígenas ou perseguir negros escravizados que fugiam da opressão. Eles foram fundamentais, por exemplo, para a derrubada do Quilombo de Palmares e a execução de Zumbi.

No Rio de Janeiro, vemos estátuas a Duque de Caxias ou Estácio de Sá, líderes militares e políticos que marcaram a história do país. O objetivo na criação desses monumentos é mostrar uma narrativa que consiste em convencer primeiro que o Rio de Janeiro foi central na formação do Brasil e segundo quem foram os protagonistas desse processo.

Mas, ao contrário disso, Caxias e Estácio de Sá foram responsáveis por grandes massacres na nossa história. Duque de Caxias ganhou este título no Império pela sua eficiência em derrotar a Balaiada, uma revolta popular ocorrida no Maranhão entre 1838 e 1841. Ele é lembrado como patrono do Exército pela sua atuação na Guerra do Paraguai (1865-1870), conflito no qual tropas brasileiras dizimaram 70% da população masculina do país vizinho. Estácio de Sá é lembrado como aquele que fundou o Rio de Janeiro e derrotou a invasão francesa em 1554, mas também foi responsável pela consolidação do poder colonial na região e a expulsão e escravização de várias etnias indígenas.

E isso se repete por todo país. Nomes de ditadores, senhores de escravizados, bandeirantes se espalham por várias cidades. Essas homenagens na forma principalmente de monumentos se normalizou chamar também de “patrimônio histórico”. Mas o que significa ser patrimônio histórico?

O Que é Patrimônio Histórico?

Quando se começou no mundo a discutir a necessidade de se preservar elementos que retratassem nosso passado, muitos pensavam que apenas documentos escritos, estruturas arquitetônicas e alguns tipos de arte como a pintura e escultura pudessem refletir o passado. A isso se convencionou a chamar de patrimônio histórico.

Mas, principalmente na segunda metade do século XX essa visão se transformou radicalmente. A música, o folclore, as tradições orais (que se baseiam na fala) entre outras manifestações humanas passaram a também ser incluídas nesse conceito de patrimônio histórico. Antes, essas manifestações podiam em alguns casos até ser consideradas patrimônio artístico ou cultural, mas na ciência histórica eram relegadas a segundo plano ou não tratadas.

Essa ampliação não foi apenas devido a uma evolução da historiografia no sentido de buscar outras fontes de preservação e reflexão do nosso passado. A mudança no conceito de patrimônio histórico foi principalmente uma decisão política. Isto por que ao considerar, no caso do Brasil, apenas o documento escrito ou prédios e monumentos como registro da história se excluía quase completamente da nossa visão do passado os povos indígenas, bem como os negros escravizados, pois esses não tinham acesso à escrita e passaram também por séculos de apagamento de suas tradições.

A inclusão dessas manifestações do nosso povo no campo do patrimônio histórico possibilitou que possamos construir uma outra visão do nosso passado. Novas portas se abriram. Hoje, há historiadores que estudam a história dos povos indígenas e quilombolas, além do que foi possível buscar construir uma memória histórica que levasse em conta principalmente a perspectiva dos explorados que construíram o Brasil. Desse jeito, fica claro que o próprio conceito de patrimônio histórico não é algo estático no tempo, ele se transforma e o faz de acordo com as mudanças na própria sociedade.

AÇÕES PRELIMINARES – Em 2016, o monumento aos bandeirantes em São Paulo foi alvo de protestos. (Foto: Reprodução/Agência Brasil)

Em Defesa do Patrimônio Histórico do Povo

Se chegássemos hoje na Alemanha e víssemos uma estátua de Hitler não se estranharia completamente? Ou chegássemos na Itália e víssemos um monumento à Mussolini? Por que então é aceitável termos nas vias e entradas das nossas cidades monumentos homenageando a escravidão e seus porta-vozes? Por que é considerado normal chegar numa grande cidade da América Latina, África ou Ásia e ver aqueles que saquearam, assassinaram e escravizaram glorificados?

Uma das primeiras medidas tomadas na Alemanha após o nazismo foi destruir qualquer monumento que apresentasse positivamente o nazismo. Ao mesmo tempo os alemães preservaram instalações de campos de concentração e extermínio para que eles não se esquecessem do seu passado e assim não repetir ou mesmo chegar perto do que foi o nazismo.

No Brasil fizemos o contrário. Ao mesmo tempo que os governos espalharam estátuas de bandeirantes, escravistas e ditadores pelo país, fizeram todo o esforço de esconder, destruir e apagar qualquer vestígio físico que nos lembrasse da dor e da luta daqueles que foram explorados e escravizados no passado.

Seja o Cais do Valongo, no Rio, por onde entraram 2 milhões de escravizados e que foi soterrado pelos governos republicanos. Sejam as sedes do antigo DOPS (polícia política da ditadura militar) que estão entregues às polícias e forças armadas para fazerem o que quiserem em vez de ser centros de memória dos perseguidos e presos políticos da Ditadura Militar. Até os nomes daqueles que foram escravizados foram apagados, como quando Rui Barbosa, quando ministro do primeiro governo republicano, em 1890, mandou destruir todos os registros dos escravizados existentes nos arquivos do governo.

Assim, derrubar os monumentos em homenagem àqueles que exploraram e mataram milhões no nosso passado pode ser considerado um atentado a nossa memória e história? Será que precisamos de uma estátua enorme de Duque Caxias em cima de um cavalo no meio do centro do Rio de Janeiro para lembrar de quem ele foi? Será que é necessário estátuas de bandeirantes espalhadas em todo país para lembrarmos que eles existiram?

O que não pode ocorrer é o apagamento completo da memória desses personagens. Inclusive é necessário lembrar dos algozes do povo, pois não apenas os escravizados e explorados tem raça, classe e cor.

AINDA POUCAS – Monumento a Zumbi dos Palmares, inaugurado em 1986 no centro do Rio, é uma das poucas homenagens a heróis do povo que existem na antiga capital do país. (Foto: Reprodução)

O patrimônio histórico serve para nos contar nossa história, nos lembrar do passado e daqueles que enfrentaram a exploração e opressão e refletir em cima disso. Assim como tudo, a história tem lado e seus instrumentos também. A burguesia fica horrorizada ao ver as estátuas dos seus herois sendo vandalizadas, mas não se horrorizou quando mataram, escravizaram e apagaram os vestígios desses criminosos.
Essa seletividade não tem apenas viés de classe, mas também o racismo como norte. Se fala da importância de preservar esses monumentos porque na verdade as elites se orgulham de seu passado colonial e racista. Como hoje expressar abertamente esses valores pode ser considerado politicamente incorreto, eles se escondem no guarda-chuva do “patrimônio histórico” para preservar sua versão do passado e defender a manutenção desses monumentos.

Por isso, do lado de cá devemos falar alto e defender que derrubar monumentos à escravidão e à exploração é um direito humano dos povos. Nossos antepassados já sofreram e foram assassinados na mão desses que hoje estão petrificados, não precisamos que a sua glorificação continue a matar também nossa memória.


*Graduando em história na UFRJ

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