O Rap é dedo na ferida e a voz do povo da periferia

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PRIMÓRDIOS – Racionais MC’s nos anos 1990. (Foto: Reprodução/Racionais)
Amanda Alves

SÃO PAULO – Durante a década de 1970, começa a surgir nas ruas dos guetos nova-iorquinos, um movimento organizado por jovens influenciados pela cultura de festas com grandes sistemas de som (sound systems), que ocorriam desde a década de 1960 na Jamaica. Um dos percussores do movimento foi o imigrante jamaicano conhecido como Dj Kool Herc, que junto com outros imigrantes latinos e os negros do país, que sofriam com o racismo do sistema capitalista, consequência do passado escravocrata nos Estado Unidos, passaram a produzir o que ficaria conhecido como cultura hip-hop e tomaria proporções mundiais nas próximas décadas

Junto com os outros três elementos da cultura hip-hop (break, dj e grafite), o rap surge como um gênero musical, que misturava a improvisação que os dançarinos de break faziam, com o som que era tocado pelos DJ’s. Assim nasceu o que ficou conhecido hoje como RAP. 

Os rappers, também conhecidos como MC’s (mestres de cerimônia) contavam sobre o cotidiano dos guetos e das periferias dos EUA, expressando os problemas do bairro e sua indignação, servindo como forma de resistência. Muitas músicas da época ressaltaram nomes de lideranças negras revolucionárias como Malcom X e Panteras Negras.

Nesse mesmo período, no Brasil estava surgindo o movimento chamado black music. Os bailes de música black tinham preços populares e contavam com grande presença da juventude negra. Nos bailes tocavam ritmos como o soul e o funk e nomes como Tim Maia marcaram esse momento, sendo importantes inspirações para o que seria mais tarde  rap no país. 

Mas foi a partir dos anos 1980 que a cultura hip-hop chegou de vez ao Brasil. Através do break, a cultura se consolidou nas ruas da região central da cidade de São Paulo. Os jovens que praticavam a dança eram de origem pobre, moradores das favelas de São Paulo e se deslocavam para o centro da cidade, onde aconteciam os eventos em ruas e praças. A partir daí começaram a se desenvolver também os outros elementos do hip-hop em locais conhecidos da cidade como a Estação de Metrô São Bento e a Rua 24 de Maio.

O MC Thaíde e o DJ Hum são considerados como pioneiros do rap no Brasil e antes de serem MC’s já participavam da Back Spin Crew, grupo mais antigo da dança break no país. Durante as décadas de 1980, 1990 e no início dos anos 2000, o estilo musical cresceu muito e surgiram grupos importantíssimos para a história do rap nacional como Doctors MC’s, Personalidade Negra, DMN, Racionais MC’s, 509-E, GOG, Facção Central e diversos outros, abordando, temas do seu cotidiano periférico, assim como nos EUA, contando sobre o que viviam em seus bairros e no dia-a-dia das favelas brasileiras. No estilo conhecido como o rap consciente, as letras cumpriam um papel de levar debates políticos para a juventude. Outra influência ao rap no Brasil foi o repente, estilo de rima feita na hora nascido na região nordeste, bem parecido com o as rimas improvisadas que os jovens faziam nos EUA.

NAS FAVELAS – Integrantes do grupo Facção Central, na cidade de São Paulo no ano de 1989. (Foto: Reprodução/Facção Central)

A sigla RAP, que pode ser traduzida como “Ritmo e Poesia”, também era denominado por alguns artistas como “Revolução Através das Palavras”, que expressa o que era o rap para aqueles que iniciaram o movimento no Brasil. Em uma de suas letras, o Racionais MC’s na música Capítulo 4 Versículo 3 diz: “Minha palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”, evidenciando o caráter combativo do estilo musical, que pode servir como meio de expressar o que se vive nas periferias do país. A realidade dura da juventude na favela transforma-se em indignação e o grito preso na garganta vira rima, som e batida. Sua mensagem pôde chegar a inúmeras favelas espalhadas pelo Brasil através da música.

Apesar da grande diversidade que existe em nosso país e nas periferias espalhadas por todo seu território, todas elas têm histórias semelhantes, como expressou o rapper GOG em sua música Brasília Periferia, quando disse que: “Periferia é Periferia em qualquer lugar”.  E a realidade retratada pelas músicas de artistas de diferentes regiões confirmou esta tese. O descaso governamental, a realidade da juventude que não consegue estudar por ser obrigada a trabalhar, a violência do Estado Burguês, a falta de condição de moradia e saneamento e a realidade do racismo sofrido pelos jovens da periferia são temas recorrentes nas letras de rap, não importando de qual região seja o MC. Reivindicações por educação, moradia, emprego e saúde, entre outras, também são feitas através das músicas. 

Com o tempo, o gênero foi se tornando um incômodo àqueles que detêm o poder, já que choca por falar abertamente de temas presentes na organização social brasileira, poucas vezes representados de maneira tão direta. O sofrimento, as mortes e a violência policial contra o povo da periferia, são algumas faces da realidade periférica denunciadas de maneira crua, pela visão de quem os viveu, nas letras de rap.

Além das denúncias sociais, as músicas também debatem a importância da solidariedade, humildade, paz e união da favela, além de ressaltar sempre o orgulho de ser periférico e adepto à cultura hip-hop. Nas letras, há muitas vezes uma percepção do funcionamento da sociedade capitalista e uma postura radical no seu enfrentamento, com discursos que apontam para as raízes do problema.

SABOTAGE – Família RZO e o Sabotage, anos 2000. (Foto: Reprodução/Família RZO)

Embora alguns rappers de hoje tenham mudado essa percepção, não pode se negar o papel histórico do rap em tentar formas de construir uma comunicação popular dentro da periferia e a utilização dela para protestar e propagandear as ideias do povo. Uma dessas formas foram rádios piratas e comunitárias nos bairros pobres, que de acordo com Fórum Democracia na Comunicação, são cerca de 6.000 no país e têm uma grande ligação com o movimento hip-hop, principalmente na cidade de São Paulo.

Desde o início da sua história, o rap e a cultura hip-hop foram  formas de resistência contra as opressões e daí surgiram letras potentes como as de “Canão foi tão Bom” do Sabotage, que diz: “estude Marx, seja um Mártir, às vezes um Luther King, um Sabotage”, “Fogo no Pavio” do GOG, “Mil faces de um Homem Leal (Marighella)” do Racionais MC’s, entre tantas outras, através das quais o rap demonstra seu caráter revolucionário.

Além de ser uma música popular, o rap bota o dedo na ferida, denuncia o sofrimento do nosso povo e bate de frente com o sistema capitalista. Como dizia Sabotage, “O Rap é Compromisso” e não podemos esquecer o compromisso que o rap tem em denunciar esse sistema falho e atrasado, que mata tantos dos nossos todos os dias. Precisamos organizar o povo pobre na periferia para tomar o poder do país e mudar essa realidade cruel, nossa tarefa é derrubar o sistema capitalista e construir o poder popular. O rap pode ser nosso aliado.