“Após a redemocratização de 1988, o mínimo que o Estado Brasileiro deveria fazer após reconhecer os arbítrios e torturas cometidos por seus agentes seria uma política de reparação civil, além de garantir o direito a memória, verdade e justiça.”
José Lucas Mussi
FLORIANÓPOLIS (SC) – Após a viúva do falecido ferramenteiro e militante comunista Antônio Torini ter seu pedido de indenização por danos morais pela prisão e tortura sofrida pelo falecido companheiro durante a Ditadura Militar Fascista (1964-1985) reconhecido em primeira instância, o Estado Brasileiro recorreu da decisão, subindo o processo para a segunda instância, onde o Desembargador Luís Antônio Johonsom Di Salvo, do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), reverteu a decisão de inicial alegando, resumidamente, que o trabalhador comunista “havia assumido os riscos, foi submetido as leis do regime militar e que a tortura não foi comprovada”.
Livonete Aparecida Torini, viúva de Antônio Torini, havia ajuizado a ação perante a terceira Vara Federal de Santo André (SP), pedindo indenização por danos morais pela prisão e tortura de seu marido, obtendo decisão favorável em novembro de 2020, condenando o Estado pelo reconhecimento dos crimes de prisão e tortura realizados durante ditadura militar e ao pagamento de indenização por danos morais. O trecho da decisão do juiz Denilson Branco reconheceu que “o dever do Estado indenizar objetivamente surge apenas com a prova do fato ensejador do dano, qual seja, a prisão por determinado período, por motivação política, onde o próprio Estado já reconheceu que tais prisões foram realizadas mediante arbítrio e tortura. Decorrente disto, o abalo moral é inquestionável, visto que Antônio teve sua dignidade humana violada por meios nefastos e arbitrários, qual seja, prisão, tortura e perseguição por motivações políticas, além de ter sido demitido e experimentado desemprego permanente após 1974, tudo por conta da perseguição política”.
Inconformado com a decisão, o Estado Brasileiro recorreu levando o processo para a segunda instância, onde o desembargador Luís Antônio Johonsom Di Salvo, do TRF-3 (Tribunal Regional Federal da 3ª Região), reverteu a decisão de primeira instância que havia condenado os crimes do Estado Brasileiro durante a Ditadura Militar contra Torini, sob o argumento de que Antônio Torini era “líder de movimento esquerdista” na fábrica que trabalhava, e “pretendia subverter o regime vigente a partir de 1º de abril de 1964 e substituí-lo por um governo comunista”.
A decisão do desembargador sustentou que, mesmo estando-se em uma Ditadura Militar, as leis que estavam valendo na época proibiam que qualquer um se colocasse ativamente contra a ordem e o direito que estavam valendo, justificando a perseguição política cometida pelo regime. Ainda, o julgador afirmou que só haveria possível indenização caso houvesse prova da tortura alegada, afirmando que o fato de Antônio Torini ter sido anistiado não servia para comprovar sua condição de torturado. “No Direito Processual Civil, é ônus do autor provar o fato constitutivo do seu direito; se a viúva e os filhos de Antonio Torini desejam ser indenizados porque há mais de quarenta anos o marido e pai foi torturado, deveriam apresentar um mínimo de prova a respeito, não bastando juntar enxurrada de documentos que demonstram somente que o mesmo foi processo e preso porque conspirava contra a ordem jurídica vigente, intentando implantar o comunismo no Brasil.”
Da simples comparação da decisão do juiz de primeiro grau com a decisão do Desembargador de segundo grau verifica-se que para o juiz, devido ao fato do Estado Brasileiro ter reconhecido e admitido que as prisões e processos durante a Ditadura Militar se deram com arbitrariedades e torturas, isto seria suficiente para a comprovação das violações do Estado, dando direito a indenização para a viúva de Torini, enquanto que, em segunda instância, para o desembargador, não foram apresentadas provas da tortura sofrida há 40 anos atrás, mesmo o Estado Brasileiro tendo confessado seu modo de agir durante a ditadura militar.
Importante mencionar a quão perigosa e hostil ao povo e aos direitos humanos foi a fundamentação do desembargador no caso. Utilizando-se da mesma fundamentação inconstitucional do desembargador para analisar e julgar os crimes do nazismo alemão cometidos entre 1930-1945, todas as condenações dos nazistas poderiam ser anuladas, considerando que os militares nazistas estavam apenas cumprindo as leis e as ordens que estavam valendo durante regime de exceção nazista.
Durante a ditadura militar fascista, o Estado Brasileiro (poder legislativo, executivo, judiciário, forças armadas) foi utilizado pelas elites nacionais e internacionais para defender o capitalismo e perseguir, reprimir, torturar e assassinar qualquer pessoa que pensasse diferente da forma que as grandes corporações, bancos, latifundiários, setores religiosos, grandes meios de comunicação queriam que a política, economia, moral e costumes do país funcionasse.
Parte dos direitos básicos dos cidadãos, como o Habeas Corpus, foram cassados ou relativizados, o Congresso Nacional foi fechado, outro presidente foi imposto para a Câmara dos Deputados, a eleição foi modificada para o modelo indireto, políticos eram escolhidos por ditadores; sindicalistas e líderes estudantis eram perseguidos, três ministros do STF foram cassados do dia para a noite, pessoas eram proibidas de se reunir e desapareciam, milhares eram mortos e torturados, e nesse contexto muitos e muitas que viam as injustiças e opressões acontecendo se organizaram e lutaram contra o sistema capitalista fascista que estava vigente.
Uma dessas pessoas foi Antônio Torini, ferramenteiro e militante comunista que foi preso e torturado entre 1964 e 1985 por não se calar e não se acovardar diante de um modelo econômico capitalista imperialista e excludente defendido por um regime político ditatorial e fascista.
Diante disso fica claro que, após a redemocratização de 1988, o mínimo que o Estado Brasileiro deveria fazer após reconhecer os arbítrios e torturas cometidos por seus agentes seria uma política de reparação civil, além de garantir o direito a memória, verdade e justiça, a anistia ampla, geral e irrestrita apenas aos perseguidos políticos, e o processamento, julgamento e condenação de todos os envolvidos nas arbitrariedades e torturas, tanto executores quanto mandantes, tanto do governo de militares quanto dos financiadores dos setores empresariais, midiáticos, latifundiários e financeiros.
Deste modo, diante da ausência de uma política de reparação para todos e todas que foram perseguidos, presos e torturados pelo regime militar; diante da ausência de uma efetiva atuação pela memória, verdade e justiça integral; diante da ausência de uma investigação, processamento e condenação de todos os responsáveis pelas perseguições políticas, prisões, torturas e mortes; diante de decisões atuais que não reconhecem o direito básico a uma indenização por danos morais por prisão e tortura ilegal sofridas por um ferreiro e militante comunista durante a ditadura militar e assumida publicamente pelo Estado Brasileiro, fica evidente o caráter de classe do Estado, ou seja, que o Estado está do lado dos ricos, da burguesia, tanto hoje quanto na época da ditadura, considerando que foram os grandes ricos que financiaram a ditadura e se beneficiaram dela.
Neste caso o caráter de classe burguês (grandes ricos detentores dos meios de produção) do Estado se manifestou em um de seus três poderes, o poder judiciário, demonstrando tal decisão judicial que o povo brasileiro não pode se iludir com as instituições. As soluções para a melhoria das condições de vida do povo e para a mudança política e econômica do país e das relações de poder não serão dadas pelo poder judiciário. Da mesma forma, as mudanças serão dadas pelo poder legislativo, do executivo, dos militares, do agronegócio ou dos bancos e das grandes corporações, que inclusive financiaram e apoiaram a Ditadura Militar abertamente, se não houver organização e luta do povo por mudanças políticas e sociais.
“O direito não nos salvará!” passaram-se cem anos e sua afirmação segue se confirmando diariamente. O Capitalismo segue existindo, o Estado oprime o povo, atenua ou proíbe a luta de classes e garante a exploração do povo pela Burguesia, enquanto o direito burguês regula todas as relações da sociedade, legitimando todas as contradições existentes no sistema capitalista.