Tanto na ditadura militar, quanto na atual pandemia, o que se observa é o sacrifício da vida do povo em prol da manutenção do capitalismo. Rememorar os crimes que a ditadura cometeu é fundamental para compreendermos e articularmos as lutas no tempo presente. E o mesmo vale para os dias de hoje: as milhares de mortes (que poderiam ser evitadas) precisam ser devidamente responsabilizadas.
Lorena Pires Barros
Rio de Janeiro
BRASIL – O cenário de horror político agravado pelo negacionismo e os dados alarmantes da crise sanitária no Brasil inspiram cada vez mais reflexões sobre memória e verdade nos dias de hoje. Em 1º de abril completou-se 57 anos do golpe militar de 1964, que marcou o início da ditadura que por 21 anos impôs ao país uma agenda de corrupção, perseguição política, tortura, entreguismo, desaparecimentos e mortes sumárias.
Apesar disso, no último dia 17 de março, a Justiça brasileira deu carta branca para o governo de Jair Bolsonaro, entusiasmado defensor da ditadura, comemorar esse trágico marco de sofrimento e morte da população brasileira. Tal gesto tripudia a memória dos que entregaram suas vidas em nome da democracia no país e arrisca o sentido histórico construído por décadas com a contribuição dos historiadores e da sociedade civil em torno do período. Cabe, portanto, o questionamento do que está por trás das atitudes saudosistas de Bolsonaro em relação à ditadura e o seu culto à morte, tanto no período referido, quanto na crise sanitária que assola o país – ainda que, aparentemente, tratem-se de mortos de categorias distintas.
Ditadura criminosa
Sob os mandos e desmandos da burguesia brasileira em aliança com o capital internacional, a ditadura praticou não só crimes políticos, mas também econômicos contra a população, vitimando não apenas os engajados diretamente na luta contra o regime, mas toda a classe trabalhadora brasileira. O falso “milagre econômico” não se reverteu em melhorias na qualidade de vida dos brasileiros. Ao contrário, houve aumento expressivo da concentração de renda e o empobrecimento da população, o que somado ao sucateamento dos serviços essenciais, como saúde e educação, piorou muito a vida dos trabalhadores. Subservientes ao capital estrangeiro, os militares aumentaram a dívida externa brasileira em mais de 3.000%.
Além disso, 8 mil indígenas foram assassinados, 434 foram mortos ou desaparecidos e milhares de pessoas detidas e torturadas. A omissão da Justiça brasileira no pós-redemocratização contribuiu bastante para a manutenção da influência política dos militares nos governos, sobretudo no de Bolsonaro, onde essa influência é tão grande que a presença das forças armadas na administração pública chega a ser superior ao de determinados momentos da ditadura.
Agora, na pandemia, para garantir a sua política genocida, Bolsonaro militarizou o Ministério da Saúde. Não diferente dos outros períodos históricos, os militares estão na linha de frente do morticínio que ocorre no país, com hospitais colapsados, faltando oxigênio, remédios, leitos e, sobretudo, vacinas para imunizar a população.
Mas, afinal, quem se beneficia com tantos mortos? A agenda econômica de Bolsonaro, desde o início comprometida com o apoio do mercado e dos banqueiros, é responsável por um dos maiores crimes do século contra a humanidade. Desde o princípio da crise sanitária, o governo criou os mais diversos dispositivos para subsidiar os bancos e capitalistas, enquanto desdenhou das demandas imediatas da população. Prova é que em apenas um mês, o governo Bolsonaro gastou R$64,6 bilhões com juros da dívida, um valor 68% superior ao orçamento do novo auxílio emergencial.
Tanto na ditadura militar, quanto na atual pandemia, o que se observa é o sacrifício da vida do povo em prol da manutenção do capitalismo. A memória, que é o mecanismo que elabora nossas percepções em torno de uma época, implica, necessariamente, a lembrança de determinados acontecimentos e o esquecimento de outros. Muitas vezes a memória é uma marionete nas mãos da classe dominante, fazendo-nos esquecer e lembrar apenas o que lhe é conveniente. Rememorar os crimes que a ditadura cometeu é fundamental para compreendermos e articularmos as lutas no tempo presente. E o mesmo vale para os dias de hoje: as milhares de mortes (que poderiam ser evitadas) precisam ser devidamente responsabilizadas.
Para manipular os afetos da população e esterilizar o pensamento crítico, o bolsonarismo faz uso de uma complexa máquina, financiada pelo capital, de divulgação de mentiras. Por isso é tão importante o destaque nas discussões sobre memória e verdade nos dias de hoje, assim como a reflexão sobre os modos de elaboração e transmissão do que estamos vivenciando para as gerações futuras.
Ser fiel aos mortos é lutar contra a reincidência do horror. Ditadura nunca mais!