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sábado, 20 de abril de 2024

A Ocupação Jean-Jacques Dessalines e a coletivização da maternidade

OCUPAÇÃO DOS IMIGRANTES – Embrião do poder popular, a Ocupação dos Imigrantes comprova a possibilidade de superar relações patriarcais e coletivizar a criação das crianças. (Foto: Reprodução/Jornal A Verdade)
Segundo Esther Conus, a coletivização da maternidade em relação ao Estado é uma tarefa fundamental da construção do poder popular, sendo seu ápice a construção do socialismo na União Soviética (URSS). No Brasil surgem experiencias, mesmo que ainda embrionárias, deste fenômeno nas ocupações do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB).
Fernanda Alves e Thassiane Goulart

SÃO PAULO (SP) – A partir do impulso das estruturas econômicas que dinamizaram a divisão sexual do trabalho, se observa a subjugação da mulher ao serem responsáveis por uma jornada tripla de trabalho: o trabalho produtivo e improdutivo, que, por sua vez, divide-se em dois, reverberando-se no doméstico e no materno e marital. Ou seja, a realidade da mulher proletária que é também mãe no sistema capitalista se expressa por intermédio da sobrecarga imposta sobre si. São diversas as responsabilidades maternas que trabalhadoras precisam enfrentar e se atentar no cotidiano, além dos cuidados domésticos e financeiros da casa.

De acordo com o estudo de 2014 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a sociedade brasileira ainda está vinculada ao conceito de família nuclear patriarcal, em que o homem é visto como o “ganha-pão”, enquanto a esposa tem a tarefa de “mostrar respeito” e se comportar de acordo com os modelos familiares tradicionais. Além disso, uma pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que as mulheres gastam o dobro do tempo que os homens nas atividades domésticas. Falando em números, seriam 10,9 horas semanais para os homens e 21,3 horas para as mulheres.

Nesse sentido, a individualização excessiva que o capitalismo conduz às mulheres acaba por provocar um distanciamento do dever social de auxiliar no desenvolvimento de nossas crianças, direcionando toda a responsabilidade somente às mães, que por tanto se encarregam das inúmeras tarefas que englobam a criação dos filhos, se esgotam físico e psicologicamente.

Um estudo feito pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que as mulheres entrevistadas responderam por 40.5% de sintomas de depressão, 37.3% de estresse e 34.9% de ansiedade. Especialmente na pandemia, com as creches e escolas fechadas e o trabalho remoto, as mulheres se tornaram mais vulneráveis economicamente também. Um estudo da Organização Internacional do Trabalho (OIT) mostrou que cerca de 13 milhões de mulheres na América Latina ficaram sem emprego, em função do Covid-19. As dificuldades de conciliar trabalho e vida doméstica afetaram, principalmente, as mães, que, geralmente, já são afetadas por um mercado que não concede direito a sua maternidade. Isso está diretamente conectado ao aspecto da reprodução social da questão de gênero, haja vista que o capitalismo e seus agentes do conservadorismo requerem da mulher a gravidez, mas também a pune por isso no mercado de trabalho, na acessibilidade e garantia dos seus direitos e, por fim, na responsabilidade pela criança, bem como seu acesso a uma educação e saúde de qualidade, mesmo sendo esta última uma função de responsabilidade do Estado.

Para Alexandra Kollontai, embaixadora soviética bolchevique, o capitalismo converteu a mulher em operária, sem aliviá-la de seus cuidados de dona de casa e mãe. Portanto, a mulher se esgota como consequência dessa tripla e insuportável carga que com frequência expressa com gritos de dor e lágrimas. Na visão de Kollontai, a vida da mulher nunca foi mais desgraçada, mais desesperada que sob o sistema capitalista. Por outro lado, no socialismo, os trabalhos domésticos em forma individual começarão a desaparecer e dia a dia serão substituídos pelo trabalho caseiro coletivo e chegará um dia, mais cedo ou mais tarde, ao ponto que a mulher trabalhadora não terá que ocupar-se de seu próprio lar. Com isso em mente, a proposta que permeia a construção do novo homem e da nova mulher numa sociedade capitalista emerge advinda de uma coletivização do trabalho relegado ao jugo doméstico. Isto é, a responsabilidade da criança não está mais sob os cuidados maternos e/ou paternos, mas do Estado e da sociedade civil, o que permite ampla contribuição feminina para com os direitos e deveres da revolução, assim como seu processo emancipatório.

Quando tratamos da realidade de mulheres imigrantes, seus direitos e dos seus filhos são anulados por sua mera identidade nacional. É possível analisar que os graus de xenofobia presentes em um país está diretamente ligado ao grau dos fluxos transfronteiriços de produção, que passou a atuar nos países de baixos salários. Contudo, as fronteiras militarizadas e a xenofobia emergente se apresentam como um efeito oposto na migração de trabalhadores desses países: inibem seu fluxo, reforçam sua vulnerabilidade e os colocam como inimigos da nação. Assim, indústrias multimilionárias atravessam livremente as fronteiras brasileiras para contribuir com a exploração do proletariado, mas os seres humanos não têm direito de passagem. Em outras palavras, o capital e os indivíduos que o detém, ultrapassam os limites territoriais sem maiores problemas, enquanto a classe trabalhadora internacional é regulamentada e, por vezes, até mesmo criminalizada. Em resumo, é um mundo sem fronteiras para tudo e todos, exceto para os trabalhadores.

Para exemplificar o exposto acima, podemos nos apoiar na precarização da saúde para mulheres imigrantes que escancara a forma de tratamento injusto que rodeia a realidade dessas mulheres. Perseveranda, mãe de nacionalidade boliviana e membra do MLB, divide com o jornal A Verdade, em entrevista, sua experiência traumática de violência obstétrica devido ao descaso de cuidados médicos por sua origem: “Me deixaram horas em uma sala, eu perdi muito sangue e recebi gritos da enfermeira […] enquanto sentia dor, a enfermeira debochava que na hora de fazer ‘era gostoso’ e agora deveria aguentar”, seu relato consta com diversos momentos de agressões verbais e negligência de suas necessidades como mãe, “Acordei pós parto com muita dor de cabeça e fome, não pude sentar e me mandaram esperar […] não tratavam assim outros brasileiros, atendiam bonito e conversavam, a gente não. Não davam nenhuma ajuda quando não consegui amamentar meu filho, enquanto instruíam as mães naturalmente brasileiras”.

Diante desse contexto, para Karl Marx, no “Manifesto do Partido Comunista”, o alcance global do modo de produção capitalista deixou evidente a posição da burguesia enquanto uma classe internacional, haja vista que a mobilidade do capital a permitia a se estabelecer e criar vínculos em qualquer lugar. Contudo, apesar dos impeditivos das fronteiras nacionais contemporâneas, a obra também afirma que o proletariado moderno era uma classe sem pátria, pela sua constituição a partir das relações sociais de produção capitalista, universalizadas pela expansão do mercado global.

Objetivando transpor a dinâmica da coletivização das crianças, e de garantir os direitos constitucionais de mulheres imigrantes para nossas lutas, a Ocupação dos Imigrantes Jean-Jacques Dessalines, localizada no centro de São Paulo, do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) busca em suas práticas descentralizar a figura materna como única responsável em encaminhar os cuidados com os menores e tentar aliviar a sobrecarga das mães. Tais ações não só visam retomar na prática o senso de responsabilidade coletiva de educar e zelar pelos pequenos, como também é essencial para garantir a participação das mães nas demais atividades promovidas na ocupação.

Felipe Fly, coordenador da ocupação, disse em entrevista: “Garantimos desde o primeiro dia o revezamento para o cuidado das crianças. A juventude diariamente vinha e se revezava em escalas periódicas para cuidar das crianças, garantindo seu desenvolvimento e a plena participação de mães e pais nas atividades da ocupação. Das mais velhas, muitas optam, inclusive, por participar das atividades, como foi o caso de Josué, 13 anos, e Cadet, 11 anos, no treinamento de brigada de incêndio e nos atos pelo Fora Bolsonaro”.

Em seguida, Felipe nos contou que o planejamento foi feito de tal forma que abarca, principalmente, espaços coletivos em que as crianças podem socializar e brincar, o que é garantido desde o princípio e depois se desenvolve na consolidação de uma creche de fato. Ele também frisa que é dever de todas as pessoas se atentar às necessidades das crianças, seu bem-estar e desenvolvimento na ocupação.

Nesse contexto, é notável uma preocupação por parte do movimento em descentralizar o cuidado da criança da figura materna, e a diferença na participação política de mulheres ficou nítida: para Felipe, a descentralização da exclusividade na figura materna garante a maior participação das mulheres nas atividades, assim como mais qualidade, ao mesmo tempo em que a criança consegue se desenvolver com maior independência. Além disso, ele afirma que se garante o processo de coletivização, o que é uma grande disputa ideológica, uma vez que vivemos em uma sociedade marcada pelo individualismo, intrínseco ao modo de produção capitalista.

Por último, o entrevistado pontuou que na sociedade patriarcal em que vivemos hoje, os cuidados das crianças são majoritariamente exercidos por pessoas socializadas enquanto mulheres, bem como também são cobrados mais extensivamente a essas pessoas. Isso dificulta muitas vezes fazê-las participarem integralmente de atividades de importância a sua formação, uma vez que dividem sua jornada pessoal com a da criança que criam. Assim sendo, ao tornar o processo de cuidado coletivo, há um rompimento de vínculo persecutório que se reproduz e limita o desenvolvimento, geralmente das mães, que se vêem na obrigação de uma função que deve ser compartilhada.

Para ilustrar o que é posto na teoria, entrevistamos também Clairna, uma mulher haitiana vítima de violência doméstica que recorreu ao Brasil como uma oportunidade de se desprender da hostilidade de sua última relação. “Eu estava na Venezuela, onde fiquei por dez anos, mas com os problemas envolvendo o pai do meu filho, me desloquei para Boa Vista, na fronteira com o Brasil, mas ele continuou me violentando. Eu então decidi ir à Defensoria Pública, na casa da mulher, e a polícia ordenou que ele não poderia ficar perto de mim, mas as ameaças continuaram independente disso, foi quando vim para São Paulo”, nos contou.

Em relação aos seus direitos enquanto mulher, mãe e imigrante, perguntamos se o Estado brasileiro a contempla. Clairna, por sua vez, denuncia a falta de assistência social: “Eu me agendei para o Bolsa Família há um ano e meio, mas até então… nada. Tenho o direito, mas por conta do coronavírus não posso ser atendida nas agências para pelo menos entender porque não consigo o benefício. Até hoje estou esperando e não tenho outra forma de sustento. Na pandemia, eu consegui o auxílio emergencial, me deram R$375, mas é isso, não tenho outra ajuda. Sobre o sistema de saúde, até então, eu não passei por nenhuma situação onde precisei usufruir diretamente da saúde pública brasileira”. Por fim, questionamos se seu filho tem acesso aos seus direitos, como educação e saúde, ela nos conta mais uma vez que por ora ainda não utilizou os serviços de saúde brasileiro de modo direto, mas nos sinaliza sobre a xenofobia e racismo que a criança sofre: “Ele é venezuelano e haitiano, é um bom aluno e estuda aqui na cidade, mas quando perguntei se os colegas de sala o incomodavam, ele disse que sim, tanto por ser estrangeiro quanto por sua cor. Mas… são crianças… A professora gosta dele, ele estuda demais.”

Por estarem imersos nas circunstâncias capitalistas que retiram senso de pertencimento ao coletivo, priorizando a sobrevivência imediata, não dá conta da importância que as crianças possuem para o futuro e como é essencial que todos ajudem a integrar em sua educação. A ideologia dominante, habilitada de recursos inimagináveis, busca transmitir todo o dever de criação apenas às mães, enfraquecendo laços sociais. A criança é o futuro trabalhador, e é o futuro revolucionário. A criança será o novo homem ou a nova mulher comunista.

Apenas em uma sociedade livre da exploração capitalista, onde os ideais estão voltados ao desenvolvimento de potencialidades humanas, é possível libertar as mulheres da exploração relacionada ao cuidado materno, tornando a existência de cada um, obrigação de todos. O trabalho coletivo de educar as crianças é uma via de mão dupla tanto para a criança que terá maior bagagem em sua criação, absorvendo diferentes perspectivas humanas, quanto para aqueles que educam e aprendem com as mulheres. Esse ato fortalece o compromisso e propósito com a sociedade do amanhã.

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