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quinta-feira, 2 de maio de 2024

“Se o problema é falta de aldeia, então vamos criar uma”

No mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) pautava, mais uma vez, a discussão sobre a constitucionalidade da tese do Marco Temporal (sobre a demarcação de territórios indígenas no Brasil), a reportagem de A Verdade esteve com lideranças da recém-construída Aldeia Marataro Kaeté, no Município de Igarassu, a 30 km de Recife (PE).

Rafael Freire | Redação


BRASIL – Logo na entrada, é possível sentir que ali é, ao mesmo tempo, um local de ousadia e de resistência. Os painéis grafitados com olhos e serpentes em alerta se misturam com o caminho de enormes jambeiros que formam um túnel que nos leva a conhecer outras vivências, bem diferentes das que estamos acostumados na “cidade grande”.

O pajé Juruna, 42 anos, conta que, em janeiro de 2021, um grupo de indígenas foi até o Distrito Sanitário I de Recife em busca de vacinas contra Covid-19 e influenza. Para a surpresa deles, uma funcionária disse que eles não teriam direito à prioridade, mesmo o grupo apresentando a carteira de identificação da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas).

“– E vocês são indígenas? – Somos sim. – Não, vocês são descendentes de indígenas. Não têm território, não têm aldeia… Foi aí que Rubenita disse: ‘Se o problema é falta de aldeia, então vamos criar uma’. Chega a moça ficou espantada”, conta hoje sorrindo o pajé. “O Estado não reconhece o indígena fora de seu território”, completa Juruna, que, desde 1997, promove estudos da língua borobó, do tronco linguístico Macro-Jê.

Antes desse episódio que decidiu os rumos do movimento, indígenas de vários povos já trabalhavam para se afirmar dentro da “cidade grande”. Rubenita Karione, 51 anos, vice-cacica da aldeia, é quem nos conta. “Em 2017, começamos a articular o nosso povo, que tava espalhado pela Região Metropolitana de Recife, e criamos uma associação, a Assicuka [Associação de Indígenas em Contexto Urbano – Povo Karaxuwanassu]. Somos indígenas onde quer que a gente esteja”, afirma.

Foi então que, na noite de 31 de dezembro de 2022, um grupo de cerca de 60 famílias ocupou uma propriedade, que hoje pertence à Prefeitura de Igarassu, situada na Estrada do Monjope, antigo engenho de cana de açúcar da ordem jesuíta. Ali funcionava um centro de estudos religiosos, mas que estava desativado há cerca de 20 anos, quando foi adquirido pela Prefeitura com a promessa de construção de uma escola, coisa que também nunca aconteceu.

“Essa é uma região onde ocorreu muito massacre, escravização, imposição cultural. Mas aqui existiu também o Quilombo do Catucá, do líder Malunguinho, que reuniu indígenas e negros”, explica Juruna. “Nós fizemos um ritual e nossos encantados nos indicaram esta terra, porque foi aqui que muitos caetés foram massacrados na boca dos canhões”, afirma Rubenita. Ela é formada em Ciências Biológicas e conta que, ao chegarem no local, encontraram o solo completamente degradado e as fontes de água, poluídas. Imediatamente, a nova comunidade aplicou as técnicas de agrofloresta e plantaram milho, feijão e diversos temperos.

Rubenita também é militante do Movimento de Luta nos Bairros (MLB) e tem uma longa história de ocupações pelo direito à terra. Em 2003, o seu povo de origem, Wassú-Cocal, ocupou um território com mais de mil hectares de terra, às margens da BR-101, no Município de Joaquim Gomes, no Estado de Alagoas, a poucos quilômetros da divisa com Pernambuco. A área era usada pelos usineiros da região e foi a primeira retomada indígena em terras alagoanas. Atualmente, encontra-se devidamente reconhecida e demarcada pelo Governo Federal.

Depois, morou por 11 anos em São Paulo, onde participou de ocupações de famílias sem-teto e conquistou um terreno no Município de Francisco Morato, onde moram até hoje três filhos. Em seguida, foi morar em Jaboatão dos Guararapes, vizinho a Recife, conheceu o MLB e participou de muitas lutas por moradia digna.

Povo Karaxuwanassu

Kyalonãn, 58 anos, é a cacica da Aldeia Marataro Kaeté (Território dos Caetés). Ela explica que as mais de 60 famílias que fazem parte da aldeia são oriundas de diversas cidades, possuem variadas histórias de vida e, inclusive, origens em diversos povos indígenas tradicionais brasileiros (Xucuru, Wassú-Cocal, Fulni-ô, entre outras). Estão presentes também membros do povo Warao, da Venezuela. Mas ressalta que, a partir da ação de retomada, decidiram constituir um novo povo, chamado de Karaxuwanassu, cujo significado é “Grande povo guerreiro”.

Este é mais um elemento diferenciado da aldeia, que tem enfrentado bastante descaso por parte da administração municipal. “Já na primeira reunião com a prefeita de Igarassu, conhecida como Professora Elcione [PSDB], ela deixou claro que na cidade não cabia indígenas e que não daria nenhum tipo de assistência social. Ela não quer a gente aqui e não há nenhum tipo de acordo”, relata Kyalonãn. Uma ordem de reintegração de posse chegou a ser expedida pela Justiça, mas foi suspensa após a entrada da Funai como parte interessada no processo.

E mais. “Na verdade, o que está em jogo é que existe um projeto antigo, por parte do Governo do Estado, para a construção do arco metropolitano [um anel viário que passaria por fora da área urbana], além de resorts e condomínios de luxo, que vai passar pela APA Aldeia-Beberibe”. Esta Área de Proteção Ambiental, regida por lei federal, estende-se pelos Municípios de Abreu e Lima, Araçoiaba, Camaragibe, Igarassu, Paudalho, Paulista, Recife e São Lourenço da Mata.

O local onde está sendo construída a aldeia é classificado como área de amortecimento, ou seja, uma área entre a parte urbana e a APA, e, que, portanto, também deve ser preservada, pois possui rios (Utinga, Monjope e Timbó) manguezais e o mar. Nela vivem também comunidades tradicionais de pescadores, marisqueiros e quilombolas.

“Ela é uma prefeita inimiga da causa ambiental, que quer também privatizar a praia de Mangue Seco. Já fez evento e tudo com grandes empresários do setor de turismo, dizendo que isso vai ser maravilhoso pra economia de Igarassu”, denuncia a cacica.

“Não somos apenas parte da natureza, somos a natureza. É isso que muitas pessoas não conseguem entender. Isso é fruto de todo o processo colonizador. Entre os próprios indígenas, também há uma minoria que não entende. E as pessoas que sempre moraram na cidade também são da natureza e precisam ser acordadas para isso. Tudo o que vem acontecendo no Brasil e no mundo, as mudanças climáticas, as fortes chuvas que acabam com casas e vidas nas periferias, para onde nós indígenas e pobres fomos obrigados a morar, é fruto de um processo histórico de expulsões de terras, de violências contra os povos e de ganância dos ricos”, conclui.

Marco Temporal

No dia 30 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 490, que pretende transformar a tese do Marco Temporal em lei. Agora, a proposta segue para ser votada no Senado, onde recebeu um novo número: PL 2903. Também o STF julga uma ação com este pano de fundo e cuja decisão terá repercussão para todos os casos posteriores.

Em resumo, a proposta estabelece o dia 05 de outubro de 1988 (data da promulgação da Constituição da República) como uma espécie de “antes e depois”. Os povos que “comprovarem” que tradicionalmente ocupavam um determinado território até esta data, podem reivindicar o direito à demarcação como terra indígena. Quem “chegou depois” ou não conseguir “comprovar”, não terá direito algum.

“Como é que podemos provar, se muitos de nós fomos ameaçados de morte e expulsos de nossas terras pelos latifundiários?! Temos vários Xucurus em Recife, por exemplo, que passaram por isso. O próprio cacique Chicão foi morto pelos latifundiários. E também nunca tivemos acesso à Justiça. Então, como pode o próprio Estado, que legitima a expulsão, agora exigir que a gente prove que estava num território num determinado dia. Isso é uma arbitrariedade, uma monstruosidade contra os povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas”, critica Kyalonãn.

E Rubenita completa: “Não somos indígenas desde 88. Somos indígenas antes de existir esse nome e antes desse território se chamar Brasil. Sempre enfrentamos os capitalistas, posseiros, fazendeiros, que querem tirar a madeira e o minério de nossas terras e enriquecer cada vez mais. E é por isso que o nosso país não cresce, por causa de poder, por causa de um querer mais do que o outro. Quando eu vejo o Marco Temporal, é como se estivesse voltando lá atrás, na invasão de 1500. Isso é desumano!”.

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  1. Excelente matéria! Pena que toda história contada não passa de mentiras e que mais uma vez usam a história do movimento indígena para buscar direitos que os indígenas em contexto urbano ainda lutam.

    Deixo claro em nome do meu povo, povo ful’ni-ô, que não existe nenhum integrante nosso nesta aldeia e que não reconhecemos o povo karaxuwanussu como uma nova etnia.

    Se você é de um povo, não apague sua história para colocar outra em cima e se vc desconhece seu povo, continue em sua busca ancestral!

    Nesta aldeia nunca existiu 60 famílias! Não tem mais de 60 famílias residindo lá!

    De acordo com o IBGE existe mais de 3000 indígenas em Contexto Urbano em PE e está associação nunca se deu o trabalho de mapear os verdadeiros indígenas. Pelo contrário, chamam pessoas em tudo que é lugar diz que a pessoa é indígena e pronto… usam a CONVENÇÃO 169 ao favor deles e essa é a maior falha.

    O movimento indígena tem muito que avançar e barrar esses tipos de pessoas, isso fere a nossa luta!

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