Apesar da Corte ter expedido sua sentença há mais de 12 anos, até agora o Estado brasileiro ignorou a deliberação. Desde 2014, o STF está sem julgar uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental que pede o cumprimento da sentença.
Alexandre Ferreira | Redação
BRASIL – Há 44 anos a Lei da Anistia foi promulgada, no final do regime militar que durou 21 anos. Este regime foi resultado de um golpe implementado pelas Forças Armadas em conjunto com setores empresariais nacionais e internacionais.
Durante a Ditadura Militar Fascista a tortura foi barbaramente utilizada de forma sistemática e habitual, para obter informações. Foram inclusive ensinados métodos de tortura em estabelecimentos das forças armadas com vítimas vivas com palco e uma plateia de alunos assistindo seres humanos sendo torturados.
Como relatou a estudante Dulce Chaves Pandolf, utilizada no ano de 1970 como cobaia em demonstrações de tortura no Quartel no Rio de Janeiro. “No dia 20 de outubro, dois meses depois da minha prisão e já dividindo a cela com outras presas, servi de cobaia para uma aula de tortura. O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal pau de arara, ouvi o “professor” dizer: “essa é a técnica mais eficaz”.1
A tortura é uma das práticas mais repugnantes e desumanas que um ser humano pode sofrer. Uma prática proibida em todos os cenários e por todas as legislações internacionais e nacionais.
No entanto, foi utilizada de forma sistemática, com todo o aparato público, com instalações financiadas com dinheiro público, implementadas por funcionários públicos ou ordenadas por eles. Todas estas monstruosidades foram comprovadas e identificadas seus responsáveis, mas até hoje nenhum foi punido. Como conviver com tamanha impunidade, tendo como principal argumento que a Lei da Anistia impede a punição, uma lei produzida ainda na vigência da ditadura militar?
Devido à necessidade de punição a todos que cometeram ou contribuíram de alguma forma para a implementação destes crimes, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) com o nome Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, a fim de dar uma nova interpretação à lei da Anistia, que possibilite o julgamento e punições. Infelizmente, o STF optou por reafirmar as teses do regime militar de que a lei foi fruto de acordo e que abrange todos os crimes.
Esta interpretação da lei da anistia não tem base na realidade, falar que a lei foi fruto de um acordo político e por isso deva anistiar os torturadores, é uma grande mentira. Se os Ministros do STF verdadeiramente desejassem averiguar sobre se teve acordo ou não, deveriam ouvir os depoimentos das lideranças da oposição no Congresso Nacional na época da votação. Entre as principais pessoas está o Deputado Federal Fernando Coelho, que era vice-líder da oposição no Congresso, onde afirma:
“Tem gente, por exemplo, que diz que houve um acordo para aprovar a lei, e que é preciso respeitá-lo. Não houve acordo nenhum! Houve brigas, confrontações permanentes, até no nível pessoal. No dia da votação, as Forças Armadas chegaram a ocupar as galerias do Congresso Nacional para não deixar o povo entrar.”
Lei da Anistia não pode continuar sendo obstáculo
A Corte Interamericana de Direitos Humanos, no caso “Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil”, julgou ação feita pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e pela Human Rights Watch/Americas, em nome de pessoas desaparecidas no contexto da Guerrilha do Araguaia e seus familiares.
A corte declarou que a Lei da Anistia Brasileira é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, impondo aos poderes constituídos do Brasil a implementação da decisão.
Vale ressaltar, que a Constituição Federal estabelece em seu Art. 5º § 3º que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos devidamente aprovados no Congresso Nacional serão equivalentes às emendas Constitucionais. Em outras palavras, a decisão da Corte Interamericana de Direitos humanos tem força de lei, não tem caraáter apenas de orientação.
Devido a isto, o Estado brasileiro precisa fazer o controle de convencionalidade, que é a denominação referente à verificação da compatibilidade entre as leis de um Estado e as normas dos tratados internacionais que foram devidamente incorporados ao ordenamento do país.
Nesse sentido, os Estados têm o dever de interpretar a lei nacional à luz da Convenção. Ao passo que os Estados são signatários da referida convenção, elas são incorporadas ao ordenamento jurídico interno e é dever seguir as determinações da referida convenção e decisões proferidas pela sua respectiva corte.
No referido julgamento, o Brasil alegou a não investigação e a não punição dos responsáveis pelos desaparecimentos forçados das vítimas e a execução de Maria Lúcia Petit da Silva, devido a atual interpretação da Lei de Anistia. Neste sentido, a corte declarou, por unanimidade:
“As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil.”
Como o Brasil é um Estado parte da Convenção Americana, têm como dever adotar as providências determinadas pela Corte Interamericana dos Direitos Humanos.
A Corte afirmou que o Brasil descumpriu sua obrigação de adequar seu direito interno à Convenção, fazendo o controle de convencionalidade, e, ao final, determinou que deve “conduzir eficazmente a investigação penal dos fatos do presente caso, a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei disponha” e que deve “ser cumprida em um prazo razoável, considerando os critérios determinados para investigações nesse tipo de caso”
Estado Brasil vem ignorando decisão
Apesar da Corte interamericana de Direitos Humanos ter expedido sua sentença há mais de 12 anos, até agora o Estado brasileiro ignorou a deliberação. Diante dessa inércia, o PSOL, no âmbito do Poder Judiciário, em 15 de maio de 2014, ajuizou ADPF nº 320 no Supremo Tribunal Federal (STF), com o intuito do STF analisar a decisão da Corte e orientar sua implementação.
A própria Procuradoria-Geral da República apresentou um parecer favorável em partes, em relação a ADPF 320, defendendo o efeito vinculante da sentença da Corte: “as decisões proferidas pela Corte em face do Estado brasileiro têm força vinculante para todos os poderes e órgãos estatais”, ou seja, o Estado brasileiro precisa implementar a decisão, mas apesar disso o STF se mantém inerte.
Não resta dúvidas dos milhares de crimes cometidos pela ditadura militar provados no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), onde produziu uma ampla quantidade de provas que identificam 377 autores por vários crimes graves.
Faz-se necessário desenvolver um intenso processo de pressão popular para implementar a decisão da corte interamericana e que sejam punidos todos quem cometeram graves violação aos direitos humanos durante a ditadura militar. Apenas difundindo com mais intensidade o que representou para a classe trabalhadora e sua juventude os 21 anos de ditadura militar é que podemos aumentar a consciência dos amplos setores da sociedade da necessidade de punição imediata dos torturadores.
1 Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, pag. 351.
“Memória de um tempo
Onde lutar por seu direito
É um defeito que mata”
Gonzaguinha