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domingo, 24 de novembro de 2024

A herança da Ditadura Militar na PM do Rio de Janeiro

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Chacinas, tortura, tratamentos desumanos e degradantes, abuso sexual, abuso de autoridade e do uso da força, assassinatos e desaparecimentos são algumas das heranças que ficaram da ditadura na polícia.

Vinícius Seguraço | Cabo Frio (RJ)


BRASIL – Para entender a segurança pública hoje no Brasil e no Rio de Janeiro é preciso olhar como a polícia foi fundada e todos os processos que ela viveu ao longo dos anos que a fizeram ser a instituição que é hoje.

A polícia militar brasileira é uma instituição centenária, que traz na sua história uma herança de violência contra a população pobre e negra desde os tempos da escravidão. Foi criada pela Família Real, ainda no século 19, para proteger as elites brancas, controlar e reprimir o povo que se revoltava contra o sistema escravista e as injustiças sofridas. Às custas do sangue de milhares de brasileiros, a elite nacional manteve sua dominação contra o povo, usando este novo aparato de violência.

A primeira força militar foi formada no Rio de Janeiro por um contingente de 128 homens. Inimiga do povo, sua maior ocupação era perseguir capoeiristas, fechar terreiros de candomblé e rodas de samba.

Após quase 400 anos de escravidão oficial, todo o povo que foi liberto não recebeu nenhum tipo de amparo do governo para que se amenizassem os séculos de violência. A população foi marginalizada, dando início às primeiras favelas. Cria-se então a lei de vadiagem, que servia única e exclusivamente para reprimir o povo pobre que fosse pego sem trabalhar. Só se encaixavam nessa lei aqueles que estavam desempregados e não possuíam patrimônio relevante, ou seja, todo o povo que foi escravizado e recém-liberto. 

As práticas de violência a serviço das elites ficam ainda mais evidentes quando olhamos para os séculos de extermínio do povo originário, os anos de escravidão, as políticas de embranquecimento da população e o apagamento da história, cultura e tradições de povos indígenas e da população negra escravizada.

Em 1937, com o caráter ditatorial do governo, a prática de violência foi otimizada para fazer a repressão política. Isso resulta numa polícia com práticas violentas institucionalizadas e refinadas. A criação da Lei de Segurança Nacional e a criação do Código Penal e Código de Processo Penal e as Forças Armadas atuando como polícia são exemplos de formas de legitimar esse novo modelo de segurança.

Golpe de 1964

Quando acontece o golpe de 1964, as polícias já têm um histórico de violência de décadas. Durante os anos de chumbo, inúmeras mudanças foram feitas para que a violência e a repressão se tornassem ainda mais institucionais. Exemplo: Código Penal Militar, Código do Processo Penal Militar, nova Lei de Segurança Nacional, reforma do Código Penal da década de 1940.

É nesse mesmo período que o governo golpista dos generais cria a polícia nos moldes que a conhecemos hoje, mais violenta e mais militarizada. O Decreto de Lei nº 667 determina a divisão entre a Polícia Civil e Polícia Militar, em que a primeira exerce funções de investigação e de polícia judiciária e a segunda fica encarregada do policiamento ostensivo.

A ditadura cometeu os piores crimes contra o povo brasileiro para que se pudessem garantir os privilégios das elites golpistas. Detenção e prisões ilegais e arbitrárias, torturas, abusos sexuais, desaparecimento forçado, ocultações de cadáveres, execuções sumárias, entre outras atrocidades.

Ainda é preciso pontuar que a polícia realizava inúmeras ações ilegais na documentação e registro de evidências, como a fraude de autos de resistência, a falta de informação sobre as prisões e prisões em massa injustificadas. A ditadura deixava os presos e detidos incomunicáveis, violava seu direito de defesa, fazia ameaças e ofensas à integridade física e psíquica dos detidos, além de plantar evidências para incriminar detidos e a modificação de cenas de crimes.

É possível citar os crimes que, para além das motivações políticas, foram cometidos por questões discriminatórias, como os crimes de violência sexual e de gênero utilizados como instrumento de poder e de dominação, os crimes de racismo, as inúmeras violações cometidas contra a comunidade LGBTIA+ e o tratamento desumano com as vítimas. Até crianças foram vítimas da ditadura.

É importante salientar que, de acordo com José Cláudio Alves, professor de Sociologia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e autor do livro “Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada Fluminense”, o surgimento das milícias no Rio está diretamente ligado aos grupos de extermínio que ganharam força e consolidação, principalmente na Baixada Fluminense, na década de 1960, durante a ditadura.

Os anos de chumbo não significaram um período de exceção. Nesses 21 anos de ditadura, aconteceu o aprofundamento, a importação de técnicas de torturas, institucionalização e intensificação de práticas violentas de uma “segurança pública” totalmente militarizada.

A herança da ditadura

Dados publicados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), no Estado do Rio de Janeiro mostram que foram registradas mais de 400 chacinas em um período de dez anos. Foram no total 411 assassinatos (com três ou mais vítimas) registrados entre os anos de 2009 e 2018, onde 1.391 pessoas foram mortas.

A década de 1990 foi marcada com inúmeros casos.

Chacina de Acari, na capital fluminense. Ocorreu no dia 26 de julho de 1990 quando 11 jovens, sendo sete menores de idade, foram sequestrados de um sítio em Suruí, Município de Magé, onde passavam o dia, por um grupo que se identificava como sendo formado por policiais que pediram joias e dinheiro em troca dos jovens. As mães dos jovens se unem e formam o grupo que ficou conhecido como Mães de Acari para buscar solução para o caso. Em 20 de julho de 1993, Edméa da Silva, mãe de uma das vítimas, foi assassinada pelos executores dos jovens após descobrir novas provas. Mais de 30 anos depois da chacina, mães e familiares das vítimas ainda lutam para que a justiça seja feita.

Outro caso que marcante foi a Chacina da Candelária. Na noite do dia 23 de julho de 1993, oito meninos (seis menores e dois maiores de idade) que viviam em situação de rua e dormiam próximos à Igreja da Candelária foram mortos a tiros. A ação foi uma represália a um suposto apedrejamento de uma viatura policial por parte dos garotos. Todos os policiais militares indiciados pelo crime estão soltos.

No mesmo ano, na noite de 29 de agosto de 1993, a comunidade de Vigário Geral foi invadida por mais de 30 homens fortemente armados e encapuzados. Todos eram membros de um grupo de extermínio e o massacre foi motivado pelas mortes de quatro policiais militares no dia 28 de agosto do mesmo ano. O grupo de extermínio invadiu casas dos moradores e matou 21 pessoas. Nenhuma das vítimas era envolvida com o tráfico.

No dia 31 de março de 2005, cinco policiais militares estavam à paisana num bar, no Município de Nova Iguaçu. Os policiais decidiram se vingar por estarem insatisfeitos com a troca de comandos em batalhões da região. Saíram em um carro e assassinaram a tiros 17 pessoas. Posteriormente, seguiram para o Município de Queimados, onde deixaram mais 12 vítimas, totalizando 29 mortos na maior chacina da história do estado.

Em Costa Barros, em 2015, cinco jovens, que tinham entre 17 e 25 anos, foram mortos com mais de 111 tiros após saírem de carro para comemorar o primeiro salário de um deles.

No ano de 2021, aconteceu uma das mais violentas chacinas do Rio, o Massacre do Jacarezinho, que acabou com 28 pessoas mortas na ação.

Memória, Verdade e Justiça!

Chacinas, tortura, tratamentos desumanos e degradantes, abuso sexual, abuso de autoridade e do uso da força, assassinatos e desaparecimentos são algumas das heranças que ficaram da ditadura na polícia.

O fato de não ter havido uma justiça de transição séria, que punisse todos os torturadores e agentes do golpe, permitiu que a impunidade do passado virasse a impunidade do presente.

De fato, a ditadura pavimentou o caminho para a crise de segurança pública que existe hoje no Rio e no Brasil. Para mudar esse fato, é necessária uma profunda reforma nas instituições, agentes, órgãos e frentes da segurança. Mas, para além disso, é preciso que se punam exemplarmente todos os torturadores do período militar.  A impunidade é o incentivo à continuidade destas ações.

Matéria publicada na edição nº 278 do Jornal A Verdade.

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