O mundo capitalista festeja o centenário da Walt Disney Company desde outubro de 2023. A verdade nua e crua é muito diferente desse conto de fadas. A origem do sucesso econômico e da popularidade é sombria e vil. O Disney de carne e osso possuía as deformações da sociedade americana: individualista, competidor desonesto, racista, patriarcal, anticomunista e colaborador da CIA durante o macarthismo.
Natanael Sarmento | Recife*
CULTURA – O mundo capitalista festeja o centenário da Walt Disney Company desde outubro de 2023. Mister Walt Disney consolidou o maior império midiático global: 21 Century Fox, canais Disney, Parques temáticos na Califórnia, Flórida, Tóquio, Paris, Hong Kong, Shangai, criou mais de 800 personagens. Produziu mais de 500 filmes entre longas e curtas, publicou bilhões de gibis que circulam pelo mundo afora.
O gênero fábula foi inventado por Esopo cerca de 550 a.C. Transmitem mensagens morais em histórias personificadas por animais. La Fontaine, no século XVII, retomou o gênero e o impulsionou. No XX, Walt Disney animou, massificou e o globalizou.
Ideologia
Qual a ideologia das narrativas do Walt Disney, aparentemente inofensivas e destinadas ao deleite das crianças?
Preliminarmente, diga-se, não existirem símbolos, sem significados. Nem palavras, sem sentido, nem narrativas sem objetivos. Não existem valores ou significados, objetivos em conteúdos fora de interesses de classes em sociedades divididas entre ricos exploradores e pobres explorados. Nelas, predominantemente, a ideologia pedagógica das historinhas – quadrinhos e desenhos animados não fogem à regra – reproduzem os valores históricos das classes dominantes.
Não importa se tais valores abstratamente aparentem universalidades: perseverança, trabalho, prudência, gratidão, honra, obediência. O pensar crítico vai além e pergunta: de quem? Para quem? Com qual fim?
As narrativas, fabulosas ou não, são instrumentos formadores, educativos, ideológicos. No capitalismo predominam valores ideológicos da burguesia dominantes na sociedade e reforçam a legitimação do “consenso cultural hegemônico”.
O colonialista “sonho americano”
Ao cabo das duas guerras imperialistas do século XX, os EUA se tornaram a principal potência econômica e militar do planeta. Sentindo-se donos do mundo, o império busca por todos os meios impor seus interesses econômicos, políticos e valores legitimadores da sua cultura no mundo, mormente nos povos dependentes e subdesenvolvidos. E alcançam êxitos correspondentes às condições neocoloniais da força imperialista sobre os povos subjugados.
A ideologia “sonho americano” faz apologia do mito do progresso pessoal acessível a qualquer pessoa, igualmente, disposta a trabalhar e a perseguir seus sonhos. “O Sol nasce para todos”. Oculta que a sombra é para poucos.
É a ideologia liberal burguesa das possibilidades iguais no reino da “liberdade dos mercados” ou “terra das oportunidades”. Mito fundador e quinta essência da sociedade capitalista desenvolvido nos EUA principalmente depois da revolução de independência do século XVIII.
No século XX, na esteira da Revolução Industrial a ideologia ganha força extraordinária massiva. Na impulsão dos progressos técnico-científicos e recursos da psicologia social utilizados pela “indústria cultural”: mídias escritas, jornais, revistas, radiofônicas, cinemas hollywoodianos, televisão o “espírito nacional americano” consolidava-se na autoimagem Narcísica da “Beleza Americana”. Na terra da “liberdade” e das “oportunidades”, paradigmática da “civilização ocidental cristã”, objetivamente, liberdade e oportunidade só existem para pessoas ricas das classes exploradoras.
Todavia, é a ideologia dominante do senso comum, na América e fora dela, é o consenso dominante, que atribui suposta superioridade ao “modo de vida americano” sobre todas as outras formas de sociedade ou civilização.
Críticas
Essa ideologia hegemônica no mundo burguês distorce e oculta a realidade. Oculta ou minimiza as lutas cruentas da história americana: a brutal exploração dos povos e a devastação do meio-ambiente. Faz parecer aventuras de heróis e mocinhos a violência de ferro e fogo nos séculos do trabalho escravo, usurpação de terras e extermínio de indígenas. Para índios e negros escravizados, a sociedade dos “iguais e livres” é mito e retórica jurídica. Sem correspondência com a história marcada pelas desigualdades, guerras cruentas e brutal exploração. Sociedade livre e democrática das minorias; ditadura expressa ou velada para a maioria explorada e excluída. No campo dos valores ou subjetividades ideológicas, oprimida pela cultura elitista, racista, patriarcal e machista
Não inventamos a roda…
Os gibis de Walt Disney receberam crítica marxista de Ariel Dofman e Armand Marteland no ensaio “Para ler o Pato Donald”, nos anos 1970. O livro reforçava a campanha anticolonialista do governo socialista de Salvador Allende. O golpe fascista que derrubou Allende queimou todos os livros considerados perigosos e subversivos em praça pública.
Dofman e Materland abordam dois aspectos principais no Pato Donald: a 1. Natureza colonialista; 2. Primado da posse – os laços familiares nucleados pelos tios e ausência de “pais”.
A crítica marxista busca desfazer a cortina de fumaça burguesa de historinha infantil e ingênua. Desmascara as ciladas ideológicas do “entretenimento infantil”. Desconstrói a idealização do mundo burguês fabuloso. Denuncia a natureza reacionária, colonialista, racista, machista e patrimonialista.
Criador e criatura
Mister Walt Disney foi produto icônico da fabulosa ideologia do “sonho americano” e também destacado produtor, criatura e grande criador.
No mito do sucesso pessoal do Disney, narra-se o jovem americano sonhador, desenhista talentoso que enfrentou todas as adversidades da vida sem desistir do sonho. Homem de família, trabalhador, esforçado, talentoso, empreendedor cuja persistência e espírito empreendedor o recompensava com a conquista da fortuna e da glória. É a personificação do sonho americano. No auge da fama, o simpático senhor Disney explicava tal sucesso, dizia “produzir alegria para crianças” e considerava os “adultos crianças crescidas”. Muito fofinho, e falso.
A verdade nua e crua é muito diferente desse conto de fadas. A origem do sucesso econômico e da popularidade é sombria e vil.
O Disney de carne e osso possuía as deformações da sociedade americana: individualista, competidor desonesto, racista, patriarcal, anticomunista e colaborador da CIA durante o macarthismo. O livro “O Mundo Disney – uma biografia” do inglês Leonard Moseley conta a história. Tampouco, seu filho espanhol, havido fora do casamento faz desenho animado do superpai de família.
Claro, não podia faltar a bazófia burguesa da meritocracia. O talento decerto ajudou a ascensão do Walt. Mas, quantos artistas tão talentos quanto ou mais existiam em sua época? Foi o acaso? A oportunidade? A Sorte? A ascensão econômica de Disney foi impulsionada pelo contrato com militares. Ele colaborava também com a CIA a serviço dos setores mais reacionários e fascistas dos EUA. Foi contratado pelas Forças Armadas para desenhar animações durante a Segunda Guerra. Durante a 2ª Guerra, seus personagens ganham popularidade. Disney ganha muito dinheiro e boas relações com o poder. Até então, Disney vagava como artista sem destaque.
No papel de “artista orgânico” da “Guerra Fria” da paranoia anticomunista do senador MacCartney, de violações da Constituição e dos direitos civis, do terror de Estado contra opositores, Disney foi a estrela ascendente de Hollywood. Colaborador do período de caça às bruxas de políticos, sindicalistas, professores, artistas, das famosas “listas negras” que sofreram perseguições, retaliações na vida pessoal e profissional, caso de Charles Chaplin e outros artistas delatados.
Sociedade e patologia de Patópolis
Patópolis é espelho de sociedade capitalista em universos masculinos e femininos de patos, cães, galinhas, gansos antropomorfizados (descritos tendo ações típicas de seres humanos). São ricos, medianos e pobres, heróis e vilões, sortudos e azarentos, nucleada por laços familiares de tios e sobrinhos.
Numa pincelada do universo masculino, destacamos: o camundongo MICKEY, nas palavras do criador, guardava muito da infância dele. Mas o desenho do ratinho sofreu alterações. Na versão original, era criança, preta, desordeira, desleixada e transgressora. Sucedeu dos índices de transgressões infantis aumentaram nos EUA.
Os patrocinadores exigiram e Disney mudou o ratinho transgressor transformando-o no rato adulto legalista e ordeiro. Mudou idade e caráter. Mickey adulto defensor da ordem é civil voluntário e colaborador da polícia de Patópolis. Traços de paranoia.
Numa praia ensolarada, ou sessão do cinema, “pressente no ar” ameaças de crimes sucedendo em local distante e abandona a diversão. Não sabemos se Disney fala a verdade na tal identificação da própria infância com a o ratinho transgressor dos primeiros desenhos.
Porém, são inegáveis as afinidades do Disney da CIA no macarthismo com o Mickey colaborador da polícia de Patópolis. TIO PATINHAS, o pato mais rico do mundo. Tipo avarento e só, sem sentimentalismos, individualista, acumulador e sortudo. Adora dinheiro, o deleite é mergulhar sobre as moedas da sua Caixa Forte. É o dono de minas, petróleo, terras, bancos, jornal de Patópolis. Toda riqueza debitada à sorte.
Na superstição da posse da “Moeda nº 1, talismã”. PATO DONALD, o Pato tipifica o mediano, confiante e frívolo, curto de ideias, instável, irritadiço. Usa jaqueta de marinheiro, cuida dos sobrinhos Huguinho, Zezinho, Luizinho e namora Margarida. Faz muito barulho, para nada. PATO GASTÃO é o primo e rival do Donald. Tipo felizardo, rico, sortudo, esnobe, usa blazer, colete e chapéu panamá, paquera a Margarida, sem sucesso. PATETA um cachorro alto, esguio, magro, néscio, e abobalhado. Desastre em pessoa, faz tudo errado. É ingênuo e acrítico, todavia, feliz da vida. A “empatia” de vida acomodada, simples, sem “conflitos”.
PROFESSOR PARDAL o garnisé e a auxiliar Lampadinha – engenhoca mecânica – vivem no laboratório na busca do “círculo quadrado”. O “chapéu pensador” em forma de telhado e corvos em cima o ajuda a pensar. Os inventos são ridículos e inservíveis: fósforos que não acendem e veículos estáticos. PROFESSOR LUDOVICO, o catedrático veste-se elegantemente, coleciona títulos em todos as áreas, vaidoso e senil, regozija-se com a própria sapiência e tem lapsos de memória.
GANSOLINO é o ganso camponês, comilão e preguiçoso, lerdo. Só trabalha coagido. JOÃO BAFO DE ONÇA, gato grande, pançudo, malfeitor, dedica a vida a tentativas de assaltos à Caixa Forte do Tio Patinhas. Invariavelmente, é preso. IRMÃOS METRALHAS, trigêmeos idênticos, distintos pela numeração nas jaquetas de presidiários. Praticam assaltos, roubos, sequestros e negócios ilícitos, acabam na pior. MANCHA NEGRA, o fora da lei sem rosto, todo corpo encoberto num lençol preto como um fantasma. Deixa sua digital de salpico de tinta negra nos locais do crime. Acaba mal.
Do universo trazemos: MARGARIDA, pata romântica, namorada do Donald, cortês, mas deselegante no vestir. Laço cor- de-rosa desproporcional na cabeça, sapatos chamativos. É vaidosa e competitiva, participa de concursos de quitutes e beleza, anota no “Querido Diário” suas futilidades cotidianas. MINIE é ratinha manhosa, namorada do Mickey. Divertida, esbanja simpatia, alegria e sedução. Lembra colegiais de balizas nos desfiles das piruetas e saltos para o nada. VOVÓ DONALDA é a matriarca simpática, moradora rural, boa quituteira. Disciplinada e rígida, no trabalhado. Agregadora, reúne a família, e é a única a censurar a avareza do Patinhas. MAGA PATOLÓGICA, vestida de preto, estilo bruxa urbana e fatal: esbelta e sedutora. Intenta roubar a moeda nº 1 do Tio Patinhas para tomar o seu lugar no mundo, em vão. MADAME MIN é a bruxa camponesa incrível: gorducha, envelhecida, desgrenhada. Tenta alianças com os outros malfeitores de Patológica e leva a pior. Em cabana de palha faz planos e porções mágicas com cobras, lacraus, sapos, morcegos. Sua fealdade, não a torna assustadora, ameaçadora, diferentemente da sedutora Maga Patológica.
Passemos o pente fino da crítica aos papéis sociais de homens e mulheres e à sociedade de Patópolis. O espaço principal é urbano. O desenho rural é secundário. O campo é idealizado bucólico local de recreio. Um mundo à parte, diferente. Na ideologia burguesa, o “progresso urbano e industrial” se contrapões ao mundo rural atrasado. Isso é falsificação. Há contradições dialéticas do capitalismo no campo e nas cidades, mas são mundos indissociáveis. O mundo rural representado pelo sítio da Vovó Donalda é uma fantasia distorcida. Cidades e campos são integradas ao mesmo processo produtivo capitalista: o idílio da chácara paradisíaca acolhimento da idosa local de visitas eventuais, uma falácia.
Disney abusa de dicotomias de viés maniqueístas: “bem” e “mal”, sorte e azar, heróis e vilões, universo masculino e feminino. Explica a origem da riqueza do Tio Patinhas e do Gastão – na sorte dos indivíduos. Na realidade, a acumulação de capital não decorre do simples trabalho pessoal, tampouco da sorte. Decorre de apropriações individuais de meios de produção, de propriedade terras, técnicas e matérias primas, da acumulação privada das riquezas produzidas pelo trabalho social.
Na “História da Riqueza dos EUA”, Leo Huberman explica a história na economia e a economia na história: a “corrida do ouro”, a conquista do Oeste, a construção de ferrovias, o desenvolvimento do comércio, a Revolução Industrial. Os avanços violentos a ferro e fogo dos pioneiros na usurpação e explorando territórios ocupados pelos indígenas, na sujeição forçada e exploração de índios e negros escravizados. O Tio Patinhas tem sorte, mas de ser rico numa sociedade assim: fato muito diferente de ser rico por que tem a sorte.
Patópolis não tem miséria, nem fome. Nela, a legalidade sempre triunfa, a propriedade é assegurada, o crime não compensa. Falsifica. A apropriação privada da propriedade da terra e tudo que ela tem é um roubo como aduzia Rousseau. Ser pobre ou ser rico jamais foi questão pessoal e muito menos de sorte ou mérito. Os tipos desastrosos, preguiçosos, descuidados, desinteressados, Pateta, Donald, etc. são pobres por que não são proprietários do capital, das terras, fábricas, bens e não pelos traços de personalidade.
A falaciosa causa da criminalidade atribuída a inveja, ao desejo de “tomar o que é dos outros”, dos fora de lei Bafo, Mancha, Metralhas, Patalógica, Min. O crime contra o meio-ambiente e as pessoas, compensam, no capitalismo, para os capitalistas. Na fábula de Disney a virtude e heroísmo reside em defender a legalidade patrimonialista, em colaborar com a Polícia, o aparato garantidor do patrimônio burguês.
Desdenha da ciência e do conhecimento. Oficina bagunçada do Pardal e conferências ocas do senil Ludovico. Os nazifascistas do passado e do presente menosprezam a ciência, a cultura e o conhecimento. Disney reproduz esse obscurantismo.
A concepção patriarcal e machista é marcante na obra de Disney. Margarida, Vovó Donalda, Minie, Maga Patalógica, Madame Min são sombras, papéis de coadjuvantes. Não representam ameaça ao poder do macho. Maga Patalógica esboça alguma ameaça, porém, jamais desbanca o Tio Patinhas. As “fêmeas” jovens são frívolas, anseiam casar, ganhar concurso de tortas ou de beleza. Socialites e bruxas, mulheres urbanas ou rurais, atuam nas coxias, com papeis secundarizadas da estrutura familiar das sociedades patrimonialistas, patriarcais e machistas.
Portanto, nada há de ingênuo, muito menos, a se comemorar no centenário desse lixo cultural capitalista do Disney & Company.
Dedicado à memória de Zezinho, meu irmão
*membro do Diretório Nacional da UP