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quinta-feira, 21 de novembro de 2024

50 anos da Revolução dos Cravos: resta uma semente em algum canto de jardim

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Nos anos 1970, Portugal vivia uma situação de decadência da economia nacional e de empobrecimento e rebaixamento das condições de vida do povo. O campo, dominado pelo latifúndio; nas cidades, a degradação das condições de vida, com apenas metade das casas com fornecimento de água e ligadas à rede de esgotos. O problema apontado como causa maior da situação era a guerra colonial, com o Estado português destinando quase metade do orçamento para sustentar a guerra contra os movimentos de libertação de suas colônias africanas, especialmente Moçambique, Angola e Guiné-Bissau.

José Levino | Historiador


Foi bonita a festa, pá

Fiquei contente

E ainda guardo renitente

Um velho cravo para mim…

(Chico Buarque)     

LUTAS DO POVO – O povo português viveu sob ferrenha ditadura durante 48 anos. De 1926 a 1933, sob a bota dos militares; de 1933 a 1974, sob o Estado Novo, debaixo do tacão autoritário, de corte fascista, comandado por António de Oliveira Salazar. Quem ousava defender a democracia ou simplesmente mobilizar-se, reivindicando direitos básicos, corria o risco de ser preso, torturado, morto. E milhares o foram.

Em Lisboa, existe o Museu do Aljube – Resistência e Liberdade, onde a repressão está documentada. Aljube, palavra de origem árabe, significa poço, cisterna, sendo utilizado para designar prisão obscura e profunda. O prédio foi usado como prisão – durante o Império Romano, na ocupação muçulmana, cadeia eclesiástica, prisão para mulheres e depósito de presos políticos a partir de 1926. De escavações a documentos, os registros estão ali expostos. No segundo andar, ficam as solitárias, verdadeiras gavetas onde eram mantidos os prisioneiros.

Em 1968, por razões de saúde, Salazar passou o poder para Marcello Caetano, professor de Direito e militante do Movimento Integralista (fascismo português) desde a juventude. Salazar morreu em 1970. Marcello Caetano tentou remendar o regime ditatorial, mas não conseguiu.

A música deu o sinal

Nos anos 1970, Portugal vivia uma situação de decadência da economia nacional e de empobrecimento e rebaixamento das condições de vida do povo. O campo, dominado pelo latifúndio; nas cidades, a degradação das condições de vida, com apenas metade das casas com fornecimento de água e ligadas à rede de esgotos. O problema apontado como causa maior da situação era a guerra colonial, com o Estado português destinando quase metade do orçamento para sustentar a guerra contra os movimentos de libertação de suas colônias africanas, especialmente Moçambique, Angola e Guiné-Bissau.

É tal a situação que provoca divisão no interior das Forças Armadas, levando ao surgimento do Movimento das Forças Armadas (MFA), no segundo semestre de 1973, composto em sua maioria por capitães do Exército.

Já no ano de 1974, o Coronel Otelo Saraiva de Carvalho, um dos líderes mais importantes do MFA, procurou o radialista João Paulo Diniz, na tarde do dia 24, e combinou para que, às 22h55, seu programa (Rádio Peninsular) desse a senha para os comandos se prepararem nos quartéis sublevados (a maioria). A música escolhida foi “E depois do adeus”, de Paulo de Carvalho, que ganhara há pouco o Eurofestival 74. Deu tudo certo. À meia-noite e 20 minutos, outra senha seria tocada na Rádio Católica Renascença. Antes de tocar a música “Grândola, vila morena”, de Zeca Afonso (o “Chico Buarque” português), o locutor moçambicano Teodomiro Leite leria a primeira estrofe. Era para os comandos saírem para as ruas.

De vários quartéis, tropas rebeldes se deslocaram para o Terreiro do Paço (hoje, Praça do Comércio), onde ficavam os órgãos do Governo. Foram chegando pelas cinco horas da manhã do dia 25 de abril, mesmo horário em que os trabalhadores iam desembarcando e se aglomerando em torno das tropas. Não houve resistência mais significativa, pois os poucos batalhões deslocados para conter o levante não agiram (os soldados se recusaram a atirar contra seus colegas). E o povo foi só entusiasmo, aplausos e gritos: “VIVA A LIBERDADE!”, “ABAIXO OS FASCISTAS!”, “VITÓRIA, VITÓRIA!”.  O capitão Fernando Salgueiro Maia, outro líder do MFA, discursou: “Não são mais só os militares de um lado e o regime do outro. É o povo. O golpe transforma-se em revolução”.  Floristas foram abrindo suas lojas e distribuindo flores com os presentes. Os soldados colocavam cravos vermelhos nas bocas dos seus fuzis.

Cabe registrar que o 25 de abril não teve como centro o movimento operário e popular, o movimento de massas, que se mantinha muito tímido, dadas as condições de clandestinidade, embora nunca tenha deixado de existir e que graças ao enfrentamento heroico à repressão por parte das organizações de esquerda, sendo o Partido Comunista Português (PCP) a maior e mais influente delas, o desgaste do regime fascista aumentava a cada dia.  De fato, o MFA promoveu um golpe de Estado eficaz, sob rigoroso sigilo, e recebeu naturalmente o aplauso entusiasmado do povo, quando este tomou conhecimento do Movimento por ocasião da tomada do poder.

Uma revolução em curso

Realmente, estimuladas pelas organizações de esquerda (comunistas, anarquistas, socialistas, sindicatos, organizações populares), as massas trabalhadoras portuguesas foram à luta, que adquiriu um caráter não apenas imediatista, mas anticapitalista. O lema “A terra para quem nela trabalha” foi posto em prática nas regiões do Alentejo e Ribatejo. Num processo dirigido pelo PCP, que tinha forte trabalho de base na região, mesmo na clandestinidade. A reforma agrária teve caráter socialista, com a criação de unidades coletivas de produção e cooperativas, e não com a distribuição de parcelas por unidade familiar. O objetivo não era ganhar um pedaço de terra, mas produzir alimentos, gerar trabalho e renda, tudo em vista do bem comum.

O Poder Popular também deu o tom nas cidades, com a ocupação de prédios, de terras para a construção de casas, criação de cooperativas habitacionais; muitos bairros foram construídos por todo o país. Os operários foram também ocupando fábricas e assumindo o lugar de seus donos em situações em que elas estavam em crise, falindo ou promovendo políticas de demissão em massa.

Cabia à Junta de Salvação Nacional aplicar o Programa do MFA, que apresentava três eixos: Desenvolvimento, Democratização e Descolonização. Esta foi se dando nos anos de 1974 e 1975, com o fim das guerras e o reconhecimento da independência das nações africanas.  Quanto às medidas internas, o avanço da iniciativa popular dividiu o MFA. Os setores à direita, com apoio da burguesia e dos latifundiários, preparam um golpe, tendo à frente o presidente da Junta, general António Espínola, visando a conter os avanços do Processo Revolucionário em Curso (PREC), mas foram contidos pela esquerda do MFA, em aliança com partidos políticos e organizações populares. Espínola é demitido e alguns dos seus partidários fogem do país. A Presidência da República é assumida pelo general Francisco da Costa Gomes.

As forças capitalistas continuam se organizando para deter o processo revolucionário em curso e promovem nova tentativa de golpe de Estado em 11 de março de 1975, sofrendo, entretanto, nova derrota. Dessa vez, Espínola, que comandou o golpe abortado, se exilou. Como consequência, é extinta a Junta de Salvação Nacional e criado o Conselho da Revolução. A 26 de março, assume o IV Governo Provisório. O Conselho da Revolução busca aprofundar as mudanças estruturais da sociedade portuguesa, decretando a nacionalização e estatização dos bancos, do sistema de seguros e de empresas importantes para a economia nacional.

Com sua derrota nas eleições para a Assembleia Constituinte (abril de 1975), a direita e os fascistas partem para o ataque às forças populares, no período que foi chamado de “verão quente”, com ataques às sedes do PCP, a sindicatos e organizações populares, provocando o temor de uma guerra civil. A esquerda diverge na forma de enfrentar a situação, entre os que defendem a via revolucionária e os que abraçam a via eleitoral.

“Já murcharam tua festa, pá”!  

Nos meses seguintes, formam-se o V e o VI Governos Provisórios. Setores da Esquerda militar tentam destituir o VI Governo mediante golpe de Estado, com a adesão dos paraquedistas, que ocuparam unidades militares em 24 de novembro. A direita militar reage, através do grupo dos nove, no dia seguinte, com apoio do PS e de toda a direita civil, pondo fim ao Processo Revolucionário em Curso. O que segue é um recuo da mobilização campesina, operária e popular e a institucionalização do processo, que, então, passa a ser contrarrevolucionário.

A Nova Constituição de Portugal, promulgada em 25 de abril de 1976, ainda no espírito da Revolução de 1974, assegurava garantias de transição para o socialismo e o desenvolvimento de relações sociais de produção. Tais artigos, entretanto, ficaram só no papel e foram revogados ou substituídos em emendas posteriores. A ofensiva contra a reforma agrária foi corroendo os avanços de 1974 e, embora as forças camponesas tenham resistido, no ano 2000, esses avanços encontram-se destruídos. As empresas nacionalizadas pela Revolução dos Cravos foram reprivatizadas. As reformas trabalhistas enterraram direitos históricos conquistadas em pujantes lutas operárias. A falta de moradia e as condições de vida nos bairros populares voltam a constituir sérios problemas. Os braços abertos para acolher os imigrantes, especialmente das antigas colônias, estão ameaçados de fechamento. Em vez de progresso, retrocesso.

O capitalismo não resolveu os problemas do povo. A entrada de Portugal na União Europeia, a adesão à chamada economia moderna, em vez de solucionar, traz de volta antigos problemas e gera novos. Então, se os problemas continuam, a semente está viva “em algum canto de jardim”. É preciso saber cultivá-la. E isso só pode ser feito no contato direto com a terra em que ela é plantada. Não se constrói socialismo de cima ou por cima. Ele tem que acontecer de baixo pra cima, mediante a criação do Poder Popular.

Matéria publicada na edição nº 290 do Jornal A Verdade.

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