“Somente em 1996 o Estado brasileiro reconheceu o assassinato de Rubens Paiva, sem até agora ter entregue seu corpo aos familiares e sem ter punido nenhum de seus algozes. Da vida de Rubens Paiva, lembremos do exemplo da luta por um país realmente soberano, em que o povo trabalhador pudesse ter uma vida digna.”
Felipe Annunziata | Redação
“Desejo conclamar todos os trabalhadores de São Paulo, todos os trabalhadores portuários e metalúrgicos da Baixada Santista, da capital e das cidades industriais de São Paulo, em especial, a todos os universitários, que se unam em torno dos seus órgãos representativos, obedecendo a palavra de ordem do Comando Geral dos Trabalhadores, do Fórum Sindical de Debates, dos sindicatos, da União Nacional dos Estudantes, das uniões estaduais e das greves estudantis, para que todos, em greve geral, deem a sua solidariedade integral à legalidade que ora representa o presidente João Goulart.”
Enquanto os tanques do general golpista Olímpio Mourão Filho desciam em direção ao Rio de Janeiro, foi com esse chamado que Rubens Paiva, deputado trabalhista por São Paulo, convocou o povo às ruas para defender o governo de João Goulart e resistir ao Golpe Militar Fascista em discurso realizado na madrugada de 1º de abril de 1964, na Rádio Nacional.
Rubens Paiva foi uma importante figura histórica na luta contra o golpe e a Ditadura Militar que assolou nosso país por 21 anos. E agora, com o sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, estrelado pela atriz Fernanda Torres, cada vez mais pessoas passam a conhecer a sua história e a de sua família na luta contra a Ditadura.
De liderança estudantil a deputado
Nascido em 1929, na cidade de Santos, Rubens Paiva ingressou na militância política durante a graduação em engenharia na Universidade Mackenzie, na capital paulista. Paiva era de uma rica família de fazendeiros no Vale do Ribeira, mas segundo seu filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, ele era brigado com seu pai pelo apoio que dava às organizações políticas de direita e extrema-direita do Brasil na época.
Durante a universidade, no início da década de 1950, Rubens Paiva foi vice-presidente da União Estadual dos Estudantes de São Paulo, onde foi uma importante liderança na campanha “O Petróleo é Nosso!”, que culminou com a nacionalização da exploração e produção de petróleo e a criação da Petrobras. Naquela época, o movimento estudantil vivia um período de ascensão e, junto com o movimento operário, estava conquistando uma série de direitos no país, como o aumento do salário mínimo, a ampliação das leis de proteção dos trabalhadores, entre outras.
A militância política de Paiva o levou a ingressar no antigo Partido Trabalhista Brasileiro, criado pelos setores progressistas ligados ao presidente Getúlio Vargas. No PTB, ele conseguiu sua primeira e única eleição em 1962 como deputado federal por São Paulo. Naquela época, o PTB estava no governo com o presidente João Goulart, que defendia reformas para acabar com o analfabetismo, taxar as remessas de lucros ao estrangeiro, fazer a reforma agrária e a reforma urbana no Brasil.
Durante os cerca de um ano e meio em que esteve como deputado, Rubens Paiva foi vice-líder do PTB e defendeu a luta pelas Reformas de Base e o enfrentamento às organizações de extrema-direita financiadas pelos EUA.
Em 1963, o deputado trabalhista foi vice-presidente da CPI que investigou as organizações fascistas “Instituto de Pesquisas de Estudos Sociais (Ipes)” e “Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad)”. Estes institutos foram financiados pelos Estados Unidos, por meio do embaixador golpista Lincoln Gordon, para apoiar os candidatos a deputados de oposição a João Goulart, a maioria dos quais estariam na linha de frente do apoio civil ao golpe militar.
O Ibad, junto com o Ipes, organizou uma campanha de desestabilização do governo e buscou unir a burguesia brasileira em torno do projeto golpista. Na CPI ficou evidente as ligações dos deputados de direita do Brasil com o governo dos EUA e os militares golpistas.
Durante todo ano de 1963 até o golpe de 1º de abril de 1964, João Goulart tentou implementar um programa de esquerda de reformas para mudar a estrutura do capitalismo brasileiro. Além do programa de erradicação do analfabetismo, idealizado por Paulo Freire, Goulart também defendia a restrição das remessas de lucros das empresas multinacionais para o exterior, a ampliação dos direitos dos trabalhadores e a distribuição de terras improdutivas do Estado aos camponeses.
Rubens Paiva avaliou assim as Reformas de Base no seu histórico discurso na Rádio Nacional: “O nosso presidente, ao tomar as medidas tão reclamadas por todo o nosso povo, medidas que nos conduzirão indiscutivelmente à nossa emancipação política e econômica definitiva, realmente prejudicou os interesses de uma pequena minoria de nossa terra. Pequena minoria, entretanto, que detém um grande poder, todo o poder econômico deste país, todos os órgãos de divulgação, os grandes jornais e as estações de televisão.”
Exílio, prisão e assassinato
Toda essa atuação parlamentar não passou despercebida pela cúpula fascista das Forças Armadas. Dias depois de chamar o povo a lutar contra o golpe no rádio, Rubens Paiva foi cassado pela Ditadura, em 9 de abril de 1964, pelo Ato Institucional nº 2.
Depois da cassação, Paiva se exilou na Embaixada da Iugoslávia, de onde conseguiu sair em junho de 1964 para a França e depois para a Inglaterra. No início de 1965, decidiu voltar do exílio, sendo vigiado de perto pela Ditadura.
Já no Rio de Janeiro, Paiva tenta reconstruir a vida como engenheiro, mas sempre mantendo o apoio político a militantes exilados, com quem trocava correspondências.
Foi por essa atuação que, em 20 de janeiro de 1971, militares da Aeronáutica sequestram, torturam e assassinam Rubens Paiva nas dependências do DOI-Codi do I Exército, no Rio de Janeiro.
Além de Rubens, sua esposa Eunice e a filha Eliane, de apenas 15 anos, foram presas e mantidas sem nenhuma comunicação com familiares. Eliane e Eunice foram vítimas de todo tipo de violência psicológica e liberadas alguns dias depois. Rubens, no entanto, nunca mais foi visto por seus familiares.
É esta história que é retratada pelo filme premiado “Ainda Estou Aqui”.
Após o assassinato, o corpo de Paiva foi escondido e até hoje seus familiares lutam para recuperá-lo e poder finalmente velá-lo. Eunice Paiva lutou por toda sua vida por este direito. Após o assassinato do marido, estudou Direito e se tornou uma defensora dos direitos humanos, atuando nas lutas dos povos indígenas contra grileiros na Amazônia.
Somente em 1996 o Estado brasileiro reconheceu o assassinato de Rubens Paiva, sem até agora ter entregue seu corpo aos familiares para um enterro digno e sem ter punido nenhum de seus algozes.
Da vida de Rubens Paiva lembremos do exemplo da luta por um país realmente soberano em que o povo trabalhador pudesse ter uma vida digna.
Lembremos de suas palavras em 1º de abril de 1964, que ainda são atuais:
“É indispensável que se processe de uma vez por todas a divisão da riqueza brasileira entre todos os seus habitantes. Não é possível que nós tenhamos marginalizados mais da metade dos habitantes deste país, mais da metade dos habitantes do Brasil sem condições de trabalho, sem saber de manhã para que local se dirigirem para ganhar o seu pão e alimentar a sua família”.
Matéria publicada na edição impressa nº 305 do jornal A Verdade