“Nunca fugi das minhas origens. Já me chamaram pra gravar ritmo estrangeiro com linguajar nosso. Disseram que eu tinha muito ritmo, mas eu não fui. Eu só faço música brasileira.”
Rafael Freire
Foto: Arquivo/Reprodução
É impossível expressar num texto escrito toda a dimensão do que significa Jackson do Pandeiro e sua obra. Afinal, não foi à toa que ele recebeu o título de “Rei do Ritmo”. Apenas ouvindo suas canções, pode-se perceber sua rara habilidade em criar e recriar melodias, em dividir os versos de forma original, em misturar e fundir ritmos, em interpretar canções de variados compositores e estilos e, claro, em tocar seu inseparável pandeiro. Oficialmente, foram 430 canções gravadas pelo músico paraibano.
Jackson nasceu José Gomes Filho, no dia 31 de agosto de 1919, em Alagoa Grande, Paraíba. Neste ano, portanto, completaram-se 100 anos de seu nascimento e foram organizadas dezenas de homenagens institucionais e populares em todo o Estado.
Sua terra natal possui famosos engenhos de cachaça e uma extensa e belíssima lagoa bem ao centro da cidade. Daí o nome. É forte a identidade negra no local devido à resistência do Quilombo Caiana dos Crioulos, cujos moradores preservam, até hoje, práticas culturais tradicionais, como a ciranda, o coco de roda e o “pife” (pífano). Já há alguns anos, o portal de entrada da cidade é composto por um enorme pandeiro, em reverência a seu filho mais ilustre.
A mãe de Jackson, Flora Mourão, era uma conhecida cantadora de coco da região e o menino aprendeu com ela o gosto pela música de raiz. Com a morte do marido, José Gomes, em 1930, Flora decidiu se mudar com seus três filhos para Campina Grande, distante cerca de 40 km. Detalhe: fizeram a pé esta jornada, devido à falta de condições da família.
Sobre seu nome artístico, é o próprio Jackson quem nos conta como tudo surgiu: “Na época, eu brincava de artista, naquele tempo do cinema mudo. Então tinha aquele pessoal do faroeste, e todo menino fazia suas quadrilhas, de índio, de bandido, e eu era então o Jack Perry. Comprei um chapelão de palha, um revólver de madeira, e a gente brincava. Depois fui crescendo, tinha que ajudar minha mãe a dar de comer à moçada, e tive que trabalhar. Parei com a brincadeira, mas fiquei com o nome Jack, só J-a-c-k. Jack do Pandeiro!”.
Na Feira Central de Campina, o menino trabalhou como engraxate, ajudante de padaria, entre outras funções, e conviveu com artistas populares de todos os tipos: coquistas, emboladores, cordelistas e violeiros. Aos 17 anos, após experimentar diversos instrumentos, firmou-se como pandeirista, passando a acompanhar profissionalmente artistas locais.
Assim, o primeiro marco na carreira de Jackson foi a oportunidade de tocar no Cassino Eldorado, situado na própria feira e descrito como um suntuoso cabaré para os padrões do Brasil, onde frequentemente se apresentavam destacados nomes da música nordestina.
Campina era, então, uma das cidades mais desenvolvidas do Nordeste, pois vivera um ciclo de riqueza com a exportação de algodão para indústria têxtil da Inglaterra até a grande crise capitalista de 1929. A cidade foi homenageada na música Forró em Campina: “Cantando meu forró vem à lembrança/O meu tempo de criança que me faz chorar/Ó linda flor, linda morena/Campina Grande, minha Borborema/ […] Aprendi tocar pandeiro nos forrós de lá”.
A Universidade de Jackson
Em 1944, mudou-se para a Capital da Paraíba, João Pessoa, e continuou sua vida de músico tocando em boates e cabarés. Logo em seguida, foi contratado pela Rádio Tabajara para atuar na orquestra do maestro Nozinho. A transformação definitiva do seu nome artístico de Jack para Jackson é controversa, mas a obra referencial escrita pelos jornalistas paraibanos Fernando Moura e Antônio Vicente Filho, Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo, afirma que este processo se deu ainda em solo paraibano.
Este livro traz também uma importante passagem da vida do nosso personagem, em que se registra a seguinte opinião do maestro brasileiro Moacir Santos, há época, saxofonista na Jazz Tabajara: “Jackson era muito mais que um ritmista. Ele tinha uma capacidade expansiva, transformando o pensamento musical dele em ritmo. Alguns choros que eu fazia nessa época, por exemplo, ele decorava e me passava todos os detalhes, cantando. Depois saía ensinando a melodia aos acordeonistas. Era uma coisa superior”.
E o livro continua o relato: “Jackson, ainda analfabeto, frequentava uma verdadeira universidade musical. Em Campina aprendera as primeiras letras da sua partitura. Foi lá que se aprofundou nas raízes do folclore, cujos primeiros ensinamentos assimilara da mãe, sua mestra inicial. Mas, em João Pessoa, teve a oportunidade, dentro da rádio, de ver, ouvir e tocar, sistematicamente, de rumbas, congas e boleros até blues, fados e tangos”.
Quando o maestro Nozinho se mudou para Recife, levou consigo alguns membros da orquestra paraibana para atuarem na Jazz Paraguary, orquestra da Rádio Jornal Commercio. Jackson foi um deles e, então, seguiu trabalhando como percussionista e se aventurando a compor e cantar. Mas é só em 1953, com quase 35 anos, que grava seu primeiro disco, com os sucessos Sebastiana, composta por Rosil Cavalcanti (“Convidei a comadre Sebastiana/Pra dançar e xaxar na Paraíba/Ela veio com uma dança diferente/E pulava que só uma guariba/E gritava: A, E, I, O, U, Ypsilone”) e Forró em Limoeiro, de Edgar Ferreira. Sebastiana é a música do Carnaval de 1953 em todo o Brasil. A partir daí, conhece pessoalmente Luiz Gonzaga, já intitulado “Rei do Baião”.
Começa a namorar Almira Castilho de Albuquerque, famosa radioatriz pernambucana, com quem se casa em 1954. É ela quem o alfabetiza e se responsabiliza pelos negócios, orientação artística, agenda, contatos com a imprensa e visual do músico, transformando-o num “showman”. Jackson se concentra agora em cantar coco, samba, forró e frevo e projeta sua carreira nacionalmente com uma excursão de três meses no Sudeste.
A desenvoltura de Jackson e Almira nos programas televisivos saltou aos olhos de produtores cinematográficos. Ao todo, participaram de nove longas-metragens do gênero chanchada. Recentemente, o cineasta paraibano Marcus Vilar produziu o documentário Jackson – Na batida do pandeiro, que está rodando o Brasil em circuitos de festivais de cinema e em praças públicas.
Em 1955, decidiu se mudar, em definitivo, para o Rio de Janeiro. No mesmo ano, estreou no comando de programa, junto com Almira, na TV Tupi. Estabeleceu, assim, ainda mais relações com compositores e músicos de renome. Conhece Bezerra da Silva e João do Vale, um dos autores do clássico O Canto da Ema: “A ema gemeu/No tronco do juremá/Foi um sinal bem triste, morena/Fiquei a imaginar/Será que o nosso amor, morena/Que vai se acabar?”.
Em 1959, gravou o megassucesso Chiclete com Banana, composto por Almira Castilho e Gordurinha, e que hoje permanece muito atual para a realidade brasileira de submissão aos interesses dos EUA: “Eu só boto bebop no meu samba/Quando Tio Sam tocar um tamborim/Quando ele pegar/No pandeiro e no zabumba/Quando ele aprender/Que o samba não é rumba/Aí eu vou misturar/Miami com Copacabana/Chiclete eu misturo com banana/E o meu samba vai ficar assim/Tururururururi bop-bebop-bebop”.
Tempos difíceis e recomeço
Em 1967, ele e Almira se separam. Em 14 de janeiro de 1968, sofre grave acidente automobilístico na Avenida Brás de Pina, nas proximidades da Penha, no Rio, e quebra os dois braços. Em julho, morre seu grande parceiro Rosil Cavalcanti.
São tempos difíceis para a vida do país, com o recrudescimento da Ditadura Militar, a partir da implantação do AI-5, regime pelo qual Jackson não nutriu qualquer tipo de simpatia, e também na vida pessoal, com problemas de saúde e sem o sucesso de antes.
Em 1972, o disco de inéditas Sina de Cigarra, marca definitivamente o reencontro de Jackson com o caminho do reconhecimento público, das entrevistas, dos programas de rádio e TV, dos shows e projetos especiais. Músicos que o acompanharam, como Dominguinhos, fizeram regravações, e Gilberto Gil gravou Chiclete com Banana e O Canto da Ema no clássico disco Expresso 2222.
Foi convidado para defender Papagaio do Futuro no 7º Festival Internacional da Canção, realizado pela TV Globo, cantando ao lado de Alceu Valença, Geraldo Azevedo e do Conjunto Borborema (com Bezerra da Silva na zabumba). Estrelou ainda, junto com João do Vale e Carmem Costa, o show Chicletes com Banana, no Teatro Opinião.
No final dos anos 1970 e início dos anos 1980, participou, ao lado de Alceu Valença, do Projeto Pixinguinha, percorrendo Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Belo Horizonte e Brasília. Como instrumentista, gravou o primeiro disco de Elba Ramalho (Ave de Prata). Compôs Xodó no Forró, em homenagem a Dominguinhos. Dividiu os palcos com Fagner, Moraes Moreira, Zé Ramalho, Hermeto Pascoal, entre outros. Participou do disco em homenagem a João do Vale, com direção e produção de Chico Buarque, Fagner e Fernando Faro. Gravou, em dueto com o homenageado, O Canto da Ema.
No São João de 1982, sentiu-se mal em pleno show na cidade de Santa Cruz do Capibaribe, Pernambuco, no dia 23 de junho. Paralisou a apresentação, mas, logo em seguida, retornou e a finalizou. No dia 24, já em Caruaru, novamente passou mal e não terminou o show. Provavelmente, foram dois infartos. Rejeitou as recomendações médicas e, no dia 03 de julho, fez sua última apresentação, em Brasília. No aeroporto, quando iria embarcar de volta para casa, no Rio, entrou em coma diabético e foi internado. Faleceu na Capital Federal em 10 de julho. No dia seguinte, foi sepultado no cemitério do Caju, na Capital Fluminense.
No dia 19 de dezembro de 2008, foi inaugurado o Memorial Jackson do Pandeiro, em Alagoa Grande, reunindo discos, objetos, documentos, fotografias e vestuário. O espaço, um casarão datado de 1898, passou a abrigar também os restos mortais do artista, que foram trasladados do Cemitério do Caju para sua terra natal após 26 anos do seu falecimento.
Legado para a música brasileira
Jackson do Pandeiro foi, sem dúvidas, um dos maiores ritmistas da história da música popular brasileira. Junto a Luiz Gonzaga, foram os dois grandes responsáveis pela nacionalização de canções nascidas a partir da cultura e da vida do povo nordestino. Ou seja, foram verdadeiros cronistas de seu tempo e espaço.