Brenner Oliveira
Movimento Negro Perifa Zumbi
RIO DE JANEIRO – “Eles tentaram nos matar, mas a gente ‘combinamos’ de não morrer”, disse Conceição Evaristo, em seu livro Olhos D’água. Esse espírito exemplifica bem a luta de nós negros pelo direito à vida da nossa raça. Nossos ancestrais foram sequestrados pelos ancestrais dos atuais brancos bilionários de seus territórios em África. Dez milhões de vidas foram jogadas dentro dos mais de nove mil navios negreiros em direção ao Brasil para impor um trabalho explorado, escravizado, compulsório e miserável… até hoje.
Em nome da economia dos ricos, entre fezes, urina e calor, comendo milho cru e sedentos, nosso povo ficou doente. Mais de dois milhões de irmãos negros morreram, transformando o oceano Atlântico num verdadeiro cemitério negro.
Para nós, não restou alternativa senão desenvolver como marca do nosso povo a luta coletiva pela sobrevivência. Foi já a primeira geração de africanos escravizados trazidos a nosso país que criou os quilombos. Nunca adiamos às gerações futuras a responsabilidade da nossa existência.
Hoje, a população negra é mais da metade da população brasileira (54%), mesmo em meio a tantas mortes. Nosso povo sobreviveu não apenas ao trabalho escravizado, mas também às chicotadas, às torturas, às vendas, aos estupros, às amputações, ao suicídio, às diversas formas de genocídio. Sobrevivemos, principalmente, às epidemias vindas, na maior parte das vezes, da Europa “civilizada”: a varíola, a gripe espanhola, a poliomielite, a meningite, a peste bubônica, a malária, a febre amarela e a cólera, que deixaram uma mancha na história do Brasil, pois sempre as elites sacrificaram a vida do povo em meios às crises sanitárias para salvar seus negócios.
“A Cor da Quarentena é Branca”
A atual pandemia do coronavírus escancarou o que resta daquilo que ainda chamam de “velado” no racismo brasileiro. No atual estágio em que estamos, só é possível combater o aumento de infectados, o colapso no sistema de saúde e as mortes no Brasil se impedirmos que a transmissão cresça absurdamente.
Embora Bolsonaro tenha feito um pronunciamento chamando a pandemia de “gripezinha”, o que tem se comprovado nos países como medida eficaz para conter esse crescimento da transmissão é garantir a quarentena. Entretanto, é preciso garantir direito à quarentena e proteção a todos os trabalhadores.
A verdade é que no nosso país, a cor da quarentena é branca. A existência do capitalismo depende da exploração daqueles que precisam vender sua força de trabalho diariamente para poder sobreviver. No caso da exploração da força de trabalho dos negros, há ainda o elemento do racismo, que aprofunda essa exploração.
De fato, devido à herança da escravização e à marginalização pós-abolição, fomos confinados ao relento das ruas e aos mesmos trabalhos pesados, quando conseguíamos. Nós, negros brasileiros, que vivemos mais tempo em cativeiro do que em liberdade, ocupamos os piores postos de trabalho em termos de segurança, estabilidade e remuneração, e somos campeões em índice de desemprego (mecanismo capitalista para garantir os baixos salários e a exploração). Segundo o IBGE, nosso povo alcançou a marca de 64% dos desempregados, 66% das domésticas e 70% dos ambulantes. Como garantir a quarentena tendo que limpar a casa dos patrões? Como vender bala nos trens para garantir o pão tendo que ficar em casa? E nosso povo que está em situação de rua? O que fará?
Esse manifesto é, portanto, uma convocatória à população de trabalhadores negros para que façam o que nosso povo aprendeu de melhor ao longo de sua história: lutar! Nesse momento, precisamos lutar em rede de solidariedade para garantir proteção, alimento, água nos bairros pobres e nas favelas. Lutar para que todos os trabalhadores estejam seguros em quarentena e que o governo cumpra seu papel de garantir todas as condições necessárias para isso. É urgente a suspensão imediata da dívida pública e a transferência desses recursos bilionários para a saúde!
Mas nós, que lideramos rebeliões, não queremos só isso. Não queremos só o pão. Queremos também os fornos, os insumos e a padaria! Por isso, lutaremos pela superação do capitalismo, que mantém o racismo como sua ferramenta de mais exploração e lucro.
Os objetivos dos nossos quilombos de ontem eram garantir a liberdade do nosso povo e acabar com o regime daquela época. Hoje, nosso objetivo é garantir ao nosso povo um sistema que não o humilhe, não o explore, não o mate. E esse sistema só se conquista com organização coletiva na luta contra o capitalismo, na construção da sociedade socialista, na qual não precisaremos “combinar de não morrer”, porque não haverá exploradores racistas para nos matar.