Thiago Anjos
RECIFE – O ano era 1964 e começava no Brasil um dos piores momentos da sua história. Instaurada através de um Golpe de Estado entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964, a Ditadura Militar, marcada pela institucionalização da tortura, repressão e perseguição, não só deixa marcas profundas para os sobreviventes, mas também reverbera no inconsciente coletivo de toda sociedade. Nos dias atuais, ainda é necessário lidar com as mesmas questões: a repressão policial e perseguição às mídias ainda existe e as amarras político-econômicas, ainda que num novo visual, não são tão diferentes mais de 50 anos depois.
Não é necessário uma pesquisa muito profunda para entender o que a Ditadura significou para a educação e produção científica, arte, cultura e os movimentos e organizações sociais, além dos setores e grupos marginalizados. Um destes grupos – e não é de se espantar –, a comunidade LGBT+, foi duplamente atacada: de um lado, a já conhecida não aceitação social, do outro, a fortificação da violência policial.
Remontando às leis coloniais, o extermínio da comunidade se dava de forma explícita e veiculada nos principais meios de comunicação da época. A violência institucionalizada foi responsável por assassinar, prender, ameaçar, assediar e estuprar este grupo, tidos delinquentes, pervertidos, endemoniados e doentes. Em poucas palavras, uma “Santa Inquisição” brasileira.
Já em 1968, rondas amparadas pelos agentes do Golpe foram criadas no intuito de “limpar a cidade dos assaltantes, prostitutas, traficantes, homossexuais e desocupados”. Os Anos de Chumbo foram responsáveis por perseguir e punir toda e qualquer forma de oposição ao regime, sejam os que lutavam pela democracia, sejam os que transgrediam as regras “morais” de comportamento; ou seja, um discurso moral criado para combater um “Grande Inimigo” e “purificar” a sociedade dos comunistas, homossexuais, travestis, negros e desempregados, com a imagem do homem branco sério comandando o país – alguma semelhança com 2018?
Assim, em 1969, os diplomatas e trabalhadores começam a serem exonerados e submetidos a testes psiquiátricos por “prática de homossexualismo” e “incontinência pública escandalosa”. O Estado de São Paulo reforça o papel da Delegacia de Vadiagem do DEIC propondo a retirada das travestis e homossexuais das ruas dos bairros residenciais a fim de isolá-los em prédios e combatê-los de imediato. Encarcerados, as vezes eram encaminhados para fazer tratamentos com remédios e eletrochoque. Em todo o país medidas de extermínio foram criadas e executadas das maneiras mais violentas.
Botar a Cara no Sol: Movimentos, Levantes e Resistências
“Botar a cara no sol” [uma gíria popular no meio LGBT+, significa ter coragem, não se intimidar; similar ao comentário “dar a cara a tapa”]; era ainda mais difícil em meio a tal exterminação institucionalizada. Todavia, alguns grupos de mobilização foram se estruturando em alguns estados; em 1978, iniciava a primeira organização oficial, chamado “Somos – Grupo de Afirmação Homossexual”, formado majoritariamente por homens gays e bissexuais. O grupo faz sua primeira grande aparição em 1979 durante um debate promovido pelos movimentos estudantis na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), inspirando, assim, a formação do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), no ano seguinte.
Após o surgimento do Grupo de Ação Lésbica Feminista (GALF), já no ano de 1981, com a necessidade de divulgar o movimento e as lutas que seriam travadas, é publicado o primeiro jornal ativista lésbico: o “ChanaComChana”. De forma independente, todo material era comercializado nos bares com muitas dificuldades; um desses bares era o Ferro’s Bar, um antigo ponto de encontro dos militantes comunistas (até o Golpe), que, nos anos 60-90, se torna um dos locais mais frequentados pela comunidade LGBT+ paulistana, em especial pelas lésbicas e feministas. Mas, em 1983, a venda passa a ser proibida pelo dono do bar.
O movimento resiste e, no dia 19 de agosto, junto a outros grupos e figuras políticas, organizam um ato político no local, ocupando-o e fazendo a leitura de um Manifesto contra a repressão sofrida. A ação resulta no inevitável “pedido de desculpas” do dono do local, impedindo a proibição da venda. Hoje, a data é lembrada em São Paulo como o Dia do Orgulho Lésbico.
Criada por influência do editor do Gay Sunshine, revista homossexual norte-americana, a “Lampião da Esquina” se torna um dos maiores meios de denúncia no período ditatorial brasileiro. Com sede em Minas Gerais, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, a publicação teve 38 edições de 1978 até 1981 que buscavam dar voz aos marginalizados, divulgar livros, shows, entrevistas e, principalmente, inflamar a luta contra o autoritarismo.
No Nordeste destaca-se a forte atuação do Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado em 1980, que – assim como outras organizações – questionou o descaso diante a epidemia do HIV-AIDS, cobrando assistência à comunidade e a construção de demandas governamentais. O GGB também iniciou um movimento nacional pelo fim do uso da palavra “homossexualismo” e a retirada da homossexualidade do código de doenças brasileiras; em 1985, o Conselho Federal de Medicina retira-o, deixando de ser considerada uma patologia antes mesmo da Organização Mundial de Saúde (OMS), que retira apenas em 1990 da Classificação Internacional de Doenças.
Hoje, em homenagem à luta da comunidade ao redor mundo, comemora-se o dia 17 de maio como Dia Internacional de Combate à LGBTfobia. A retirada da transexualidade como doença foi feita apenas a pouco mais de 2 anos, em 2018.
Transgressoras em Meio ao Extermínio
Poucos são os relatos das sobreviventes desse período, principalmente levando em consideração que, até os tempos atuais, a expectativa de vida das travestis e transsexuais é de 35 anos de idade. Um importante relato vem da forte Martinha, baiana, 64 anos, presa mais de 200 vezes nos 21 anos sombrios de ditadura.
Tendo que fugir de casa aos 7 anos, devido às ameaças de morte que sofria da família, que não aceitava sua identidade de gênero, trabalhou em casa de família em troca de comida. Morando nas ruas, ainda criança torna-se mais uma vítima da exploração sexual, chegando a se prostituir 20 horas por dia. Em mais de meio século depois a realidade desse grupo marginalizado ainda persiste: 90% das transsexuais e travestis no Brasil ainda sobrevivem da prostituição.
Rotineiramente, pela polícia, em simples atividades diárias, Martinha conta que as abordagens hostis eram realizadas. Relatos mostram que, além da violência física, os LGBT+ eram forçados a fazer a limpeza das delegacias. Sobre os abusos, a travesti relembra: “Pegavam a gente, levavam para a praia deserta, mandavam uma segurar no membro da outra e mandavam a gente cantar ‘Ciranda Cirandinha’”.
Pedro Dallari, ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade, relata que a realidade dos LGBT+ presos durante os tempos de chumbo era mais sofrida, vista pelo regime como um agravante. Uma pessoa de sexo “masculino” deveria trajar um determinado número de peças de “roupas de homem”; ou seja, as mulheres transsexuais eram tratadas no masculino e só sairiam do cárcere se “portadas” como tal.
Para escapar da detenção, andavam com uma gilete dentro da boca para se automutilar diante de uma prisão. Martinha afirma que a prática era utilizada para mostrar conseguir escapar da tortura, pois o sangue escorrendo deixavam os policiais com medo: uma forma de defesa e resistência.
Resistências no Século XXI
É sempre necessário retomar o período ditatorial brasileiro (1964-1985) para relembrar nossos heróis e heroínas, que lutaram e resistiram à repressão, como forma de manter vivas suas memórias e fortalecer a verdadeira democracia.
Diversos países que passaram por regimes totalitários travaram um combate à quaisquer ideologias retrógradas, reconhecendo o erro histórico, julgando e prendendo os torturadores, incentivando a pesquisa e criação de museus com arquivos e obras que retratam não apenas o sofrimento, mas a bravura e coragem que o povo resistiu e se manteve firme contra o fascismo.
Renan Quinalha, antigo assessor da Comissão da Verdade de São Paulo, destaca que a homotransfobia fazia parte de uma “política de Estado” durante a ditadura. Entendendo isso, é impossível não associar à atual conjuntura, onde o mesmo lema se repete numa falsa defesa da “moral e bons costumes”, apoiada pelos mesmos segmentos sociais: ruralistas e latifundiários gananciosos, cristãos conservadores e uma elite oportunista.
Esse discurso fascista é responsável pela cultura do “Direitos Humanos para ‘humanos direitos’”, que associa a luta pelos Direitos Humanos à defesa de criminosos, os mesmos “criminosos” que a Ditadura sanguinária precisaria exterminar: os LGBT+, os negros, os movimentos sociais e estudantis, mendigos e os que usam da arte e cultura como protesto.
Nesse sentido, a diversidade das sexualidades e expressões só poderá ser garantida diante de um Estado Democrático, pautado pela soberania da qualidade de vida das pessoas. Ou seja, manter um Estado alicerçado nos mesmos padrões seculares, não estabiliza a real vida de quaisquer que sejam as “minorias destoantes”, ficando fadadas à conquistas e retrocessos instáveis, violadas de direitos fundamentais e marginalizadas dos espaços de tomada de tomadas de poder, segundo a lógica dos interesses dominantes.
Face ao exposto, é necessário que a Comunidade LGBT+ esteja unida em defesa da sua expressão, liberdade e identidade, através da arte, da educação baseada nos Direitos Humanos, uma política de princípios para a conscientização e emancipação do povo e – o mais importante – do que nos une enquanto humanidade: a bondade, gentileza e o amor.
*Licenciando em Ciências Sociais na UFPE.