Anna Paula Sacilotto e Meena Campelo
SÃO PAULO (SP) – O que é arte? Quem são os artistas? Você consegue definir de forma satisfatória o que é arte? Essa é uma tarefa muito difícil. No século 17, com o surgimento das academias na Europa, ficou acertado que as expressões da Arte (com letra maiúscula) são aquelas que representam a beleza e se encerram em si mesmas. Essa definição certamente sofreu alterações ao longo do tempo, mas deu início a uma divisão que ocupa os espaços artísticos, inclusive os que nada têm a ver com esse contexto europeu, até hoje, entre as Belas Artes e a arte utilitária (as “artes menores”).
Enquanto as Belas Artes seriam as formas superiores de arte, que precisam de uma formação e um treinamento especializado para serem realizadas, as artes utilitárias seriam aquelas que têm… uma utilidade! Que fazem parte da nossa vida cotidiana e podem, teoricamente, ser feitas por quase qualquer um, já que “não envolvem” trabalho intelectual, sendo apenas meras reproduções. As artes utilitárias incluem os têxteis (tapeçarias, bordados), a cerâmica, todos trabalhos tipicamente realizados pelas mulheres no seio do lar em meio às tarefas domésticas. Assim, de cara, já percebemos diversos problemas: essa visão é extremamente eurocêntrica. As cerâmicas japonesas, as tapeçarias indianas, os bordados dos indígenas da América, estarão todos eles expulsos desse grandioso pedestal da arte? Além disso, se as Belas Artes precisam ser aprendidas em Academias especializadas, quem tem acesso a elas? Apenas os homens tinham as condições de investir nisso, visto que o acesso das mulheres a esses espaços era restrito.
Assim, cria-se a diferença entre o que é o trabalho de um artista e o que é o trabalho de um artesão (ou artesã). Só essa suposta hierarquia entre essas duas categorias, criadas quase arbitrariamente em um período muito distante, já seria o suficiente para torná-la revoltante, mas o problema se torna mais profundo com a Revolução Industrial. Até aí, ainda que o trabalho de um artesão não fosse reconhecido, ele era valorizado. O único jeito de obter uma peça de roupa ou uma panela, digamos, era fazendo ou comprando diretamente com o produtor, que cobrava por isso um preço justo (ou controlado pelas ligas de artesãos, mas de todo modo livre de mais-valia).
Contudo, com o surgimento de máquinas e linhas de produção, cria-se uma cultura de valorização aos industrializados (e seus baixos custos, frutos da exploração dos trabalhadores), criando um ciclo que se retroalimenta de produção e consumo, e desvalorização do artesanato. Pergunte a uma artesã próxima a você se já pechincharam o trabalho dela, ou apenas reclamaram do preço “alto”. Agora pergunte a si mesmo quantas vezes você já pechinchou na Renner, no Carrefour, no Assaí e no McDonald’s. Por que o trabalho de uma artesã (ou artista?) vale menos?
A partir dessa reflexão, podemos pensar no espaço que as mulheres ocupam na arte. Por que é que vemos tantas donzelas nos quadros, tantas musas nos poemas e tantas deusas esculpidas, mas tão poucas grandes pintoras, poetas e escultoras? Existe, além de tudo, uma segregação entre o que é arte de homem e de mulher? Certamente existem muitas bordadeiras e costureiras, mas e quanto aos outros campos da arte?
Musa? Poetisa?
Em 2017, o MASP sediou uma exposição com um título muito provocativo: “As mulheres precisam estar nuas para entrarem no museu?”. De acordo com a pesquisa realizada pelo grupo Guerrilla Girls no Museu Metropolitano de Arte de NY, apenas 5% dos artistas apresentados na seção de Arte Moderna (em que as mulheres supostamente deveriam estar mais presentes) eram mulheres, enquanto 85% dos nus eram femininos. É inegável que ao longo da história da Arte, pelo menos nesse aspecto, as mulheres sempre estiveram presentes nesses espaços: servindo de musas, posando, sendo retratadas das mais diversas formas, desde as Pietás, Marias e Vênus da Idade Média e do Renascimento até as Demoiselles de Picasso.
Contudo, também podemos considerar que muitas mulheres faziam, sim, arte. Arte que não ficava preservada em museus. Retomando o conceito de arte utilitária, vemos que sempre houve uma produção artística e criativa, mas que ficava restrita à esfera do lar e, por ser considerada ordinária e pela própria natureza de utilitárias, era efêmera e não se conservava. O pouco que resistiu assume um valor de relíquia, sem autoria, e não de grande achado artístico, exceto quando se faz um esforço para subverter essa tendência, como é o caso do Museu do Bordado em MG.
No texto “Por que não existiram grandes mulheres artistas”, Linda Nochlin aborda essa questão por meio da análise e desconstrução de todos os pressupostos que dão origem ao título do ensaio. Partindo do estereótipo de que mulheres não são capazes de grandes feitos, a autora desmonta todos os preconceitos escondidos debaixo dessa questão e critica a falta de foco no verdadeiro problema (as opressões estruturais sofridas pelas mulheres), além das dificuldades institucionais que elas enfrentam e do próprio conceito de Grande Arte e Grande Artista, que segundo ela estariam cercados por uma indevida aura de genialidade e misticismo. “Na verdade, o milagre é dado as esmagadoras chances contra as mulheres ou negros, que muitos destes ainda tenham conseguido alcançar absoluta excelência em territórios de prerrogativa masculina e branca como a ciência, a política e as artes.”
Por que Chamamos às Poetas “Poetisas”?
“Se fizerem questão de distinguir os gêneros, os homens que virem poetos”. Alice Ruiz.
A língua é parte e reflexo da cultura que a integra. A palavra poetisa carrega um contexto histórico de segregação e condescendência. Se não existe uma verdadeira diferença na essência da arte produzida por mulheres e a produzida por homens, por que é preciso fazer essa distinção?
Por muito tempo, as mulheres estiveram majoritariamente presentes nas artes apenas como musas, consideradas sem potencial de criação e apenas com uma tímida presença na produção artística e literária. A pianista e compositora alemã Clara Schumann é um exemplo clássico do preconceito sofrido pelas mulheres nesse campo: casada com o compositor Robert Schumann, ela não podia assinar as próprias peças por conta do machismo da época, já que os músicos e o público não consideravam que uma mulher poderia ou deveria estar compondo músicas. Assim, o marido assinava suas obras para que pudessem ser ensaiadas e apresentadas, já que enquanto obras de um homem eram consideradas geniais.
No caso das poetas, além dos fatores que já discutimos, existe ainda um outro agravante: no Brasil, as meninas mais ricas só puderam começar a frequentar a escola em 1758, e ainda assim apenas para aprenderem os ofícios domésticos, a serem boas esposas ou para ingressarem na vida religiosa. As mais pobres só tiveram o acesso à educação garantido com a Constituição de 1934, que garantia educação primária e gratuita a todas as crianças. No entanto, até hoje os índices de analfabetismo no Brasil mostram que o projeto não atingiu a todas igualmente. Mais ou menos nessa época, ler e escrever se tornou, mais do que nunca antes, uma importante ferramenta de denúncia, libertação e independência. O magistério era uma das únicas profissões que as mulheres podiam legalmente exercer além dos trabalhos rurais e de criadagem. Assim, a escrita se torna uma grande oportunidade, mas haviam dois problemas: ela ainda era proibida para algumas mulheres, e as que podiam aprendê-la deviam conformar seu uso aos interesses dos homens, que consistiam em manter suas filhas e companheiras dóceis, submissas e dentro do lar.
As mulheres, contudo, sempre encontraram brechas nessas imposições. Aquelas para as quais a leitura e a escrita eram proibidas, seja por não terem os meios de aprendizado, seja por conservadorismo dos pais, podiam contornar a situação de algumas formas. O Museu do Bordado (MG) guarda, em uma de suas exposições, o segredo de algumas bordadeiras do século passado: subvertendo o bordado, muitas jovens curiosas aprenderam o bê-a-bá por meio dos manuais de ponto cruz, descobrindo as formas e combinações das letras enquanto bordavam toalhas e enxovais.
Outras, que já sabiam escrever mas de quem era esperado que a escrita e a leitura servissem apenas como prenda, para redação de cartas, diários e, em alguns casos, para que exercessem o magistério, esbarravam nas dificuldades impostas pelos homens para dar um passo além e começarem a produzir e apreciar arte. As novelas e folhetins lidos pelo público feminino tinham sua qualidade questionada e zombada. Aquelas que os liam eram consideradas fúteis e ociosas – dando início a uma longa tradição de desconsiderar todo conteúdo consumido majoritariamente por garotas jovens – e os livros e poemas produzidos por mulheres eram quase sempre desacreditados e desprezados.
Na literatura brasileira, existem inúmeros exemplos de dificuldades que autoras e poetas enfrentaram ao longo da história, passando por descréditos, uso de pseudônimos e falta de reconhecimento em vida e em morte, até o apagamento completo.
“Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”
A Academia Brasileira de Letras tem um longo histórico de não fazer jus às nossas grandes escritoras. Apenas 9 mulheres ocuparam as cadeiras dos imortais nos quase 130 anos de história da instituição, e sabemos que mesmo apesar de todas as dificuldades o Brasil certamente contou com mais de 9 autoras dignas do título de Imortais. A própria fundação da Academia já manchou sua história com um caso de injustiça quando tirou uma cadeira da poeta Júlia Lopes, que participou de todo o seu processo de criação, sob o pretexto de que no Art. 2º do Estatuto, em que se lia “só podem ser membros efetivos da Academia os brasileiros que tenham, em qualquer dos gêneros de literatura, publicado obras de reconhecido mérito ou, fora desses gêneros, livro de valor literário”, o sujeito masculino deixava implícito que só seriam aceitos homens. O lugar foi oferecido ao seu marido, também poeta, mas que reconheceu abertamente que o lugar devia pertencer à esposa. Algum tempo depois, em 1951, a Academia revelou seu cunho descaradamente machista quando, em um reformado Art. 30, adicionou, à regra anterior, o vocábulo “do sexo masculino”. Essa restrição só foi revista quando, em 1977, Rachel de Queiroz, sem nenhum discurso essencialmente feminista, se tornou a primeira mulher receber o fardão e o título de imortal, após as malsucedidas tentativas de candidatura empreendidas por Dinah Silveira, em 1970, e Amélia Beviláqua, em 1951. Esta última inclusive contou com o apoio do marido, que fazia parte da ABL e chamou a recusa da candidatura da esposa de “firula gramatical”. Seus protestos foram de tal forma ignorados que o imortal Clóvis Beviláqua, ao fim do desentendimento, não encontrou outra saída senão abandonar a instituição que preteriu a esposa.
Um caso semelhante ao de Júlia Lopes de Almeida foi o de Zélia Gattai, memorialista autora de “Anarquistas, graças a Deus” e outros romances. Nas preliminares da votação que a elegeu, um de seus oponentes afirmou que o lugar deveria pertencer a ele, que tinha méritos, e não a ela, que ocuparia o lugar apenas em memória ao marido, Jorge Amado, que morrera pouco antes, desqualificando assim toda a sua produção.
Cora Coralina, que só iniciou a carreira de poeta aos 76 anos e mal teve educação formal, foi por diversas vezes impedida pelo marido de publicar seus livros. Cecília Meireles, que teve uma infância difícil e começou a poetar ainda na adolescência, atingiu o auge da glória de sua produção nos anos 50, mas não foi admitida na ABL pois, apesar de todos os seus méritos, as mulheres ainda não eram permitidas. Graciliano Ramos, ao ler O Quinze de Rachel de Queiroz, duvidou de sua autoria e escreveu para um jornal: “Seria realmente de uma mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a cabeça. Não há ninguém com esse nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado”.
Embora o assento na ABL não seja a única forma de obter reconhecimento, é certamente uma posição de honra no contexto da literatura brasileira. Houve muitas escritoras, além dessas acima, que receberam ampla validação do público e da crítica, como Conceição Evaristo, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Andrea del Fuego, Carolina Maria de Jesus, Carol Bensimon. Outras ainda buscam a valorização da sua arte, e outras muitas faleceram antes de conseguirem seu merecido espaço.
Essas mulheres receberam (ou não) o seu reconhecimento em meio a muitas dificuldades que provavelmente não se imporiam a elas se tivessem nascido homens. Muitas delas só são conhecidas hoje por meio de um esforço de encontrar suas obras, que por vezes vem de lugares inesperados. Contudo, é importante lembrarmos a todo momento que as mulheres que citamos e as que conhecemos são apenas algumas (mais famosas) dentre as milhares de artistas que existem. Elas vão contra o status quo pelo simples fato de existirem e por isso precisam se esforçar cinco, dez vezes mais – 20 vezes, se forem pobres. Apoie a sua amiga que faz desenhos, a sua vizinha que faz artesanato, sua prima que gosta de cantar, sua conhecida que escreve poemas. Encerramos esse texto com uma seleção de poemas e citações dessas mulheres que estavam – e muito – cientes da sua condição de mulher na sociedade, e o dedicamos a todas as mulheres que não puderam obter o seu merecido reconhecimento em detrimento de suas muitas vezes não muito mais que medíocres contrapartes masculinas.
Eu sou aquela mulher,
Que ficou velha,
Esquecida,
Nos teus larguinhos e nos teus becos tristes,
Contando estórias,
Fazendo adivinhação.
Cantando teu passado.
Cantando teu futuro.
– Cora Coralina.Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.
– Adelia Prado.Vozes-mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue e fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
– Conceição Evaristo.