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domingo, 24 de novembro de 2024

Tempos de luta: mais de meio século da greve por 1/3

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A maior greve estudantil do Brasil foi marcada pela mobilização pela Reforma Universitária durante o governo de João Goulart. Apesar do apoio inicial de Goulart, a recusa das reitorias levou à greve nacional envolvendo cerca de 100 mil estudantes.

José Levino | Historiador


EDUCAÇÃO – A maior greve estudantil da História do Brasil completa 62 anos neste junho de 2024. Tempos de combate memoráveis. Em andamento, a mobilização pelas reformas de base do governo de João Goulart, entre as quais, a Reforma Universitária (RU). O tema entrou na agenda da União Nacional dos Estudantes (UNE) em 1960, a partir do I Seminário Latino-Americano de Reforma e Democratização do Ensino Superior, realizado em Salvador (BA).

Em março de 1962, ocorre, em Curitiba (PR), o II Seminário da RU, no qual é formulada a reivindicação de participação de 1/3 (um terço) de estudantes na composição dos órgãos colegiados das universidades e faculdades: conselhos universitários, conselhos técnicos, conselhos administrativos, etc. A UNE compreendeu que a democratização do Estado brasileiro, defendida pela entidade, passava pela conquista de democracia dentro das instituições de ensino superior.

Ante a recusa das Reitorias, é lançada a mobilização nacional com a bandeira de 1/3. Criou-se a UNE-Volante, caravana que percorria todo o país junto com integrantes do Centro Popular de Cultura (CPC), que colocava a arte para despertar e conscientizar os estudantes e o povo brasileiro em vista do seu engajamento na luta por mudanças estruturais na sociedade brasileira.

A caravana da UNE visitou 250 faculdades em todo o país, realizando assembleias, atividades culturais e debates sobre a importância da reivindicação de 1/3, bem como reuniões com as lideranças para detalhar o plano de ação. As peças de teatro do CPC tinham como eixo a Reforma Universitária, mas tratavam também de problemas gerais, a exemplo da reforma agrária e da luta anti-imperialista. A repercussão foi muito grande, envolvendo não apenas estudantes, mas outros setores da sociedade.

A greve eclodiu

A greve começou no dia 1º de junho de 1962, atingiu todos os estados e a maioria das universidades e faculdades. Pararam em torno de 100 mil estudantes. O presidente Goulart manifestou-se favorável à reivindicação, mas disse que respeitava a autonomia universitária. O ministro da Educação, Roberto Tavares de Lyra, propôs que os reitores promovessem reforma estatutária, alterando a representação nos órgãos, e enviassem os projetos de reforma para o Conselho Federal de Educação (CFE) até o dia 30 de junho.

A Direção da UNE negociou com o Governo a suspensão da greve até a reunião do CFE, com a garantia de que os exames de junho seriam adiados para agosto. A greve foi suspensa em 14 de junho, com a permanência dos estudantes mobilizados no Rio de Janeiro, em acampamento montado na Cinelândia. Algumas entidades estaduais protestaram contra a suspensão, dizendo que não haviam sido consultadas e que a decisão havia sido autoritária. A greve foi retomada no dia seguinte com a justificativa da UNE de que o Governo havia descumprido o acordo, pois adiara os exames apenas nas faculdades que estivessem em greve, e não em nível geral, como combinado. O presidente da UNE, na ocasião, era o goiano Aldo Arantes, integrante da Juventude Universitária Católica (JUC), que depois se transformaria em Ação Popular (AP). 

Enfrentando a direita

O movimento estudantil não era homogêneo, pois a divisão da sociedade em classes se expressa naturalmente no interior da Universidade. A direita, contrária à greve do terço, combateu veementemente a UNE, com a cobertura de grande parte da imprensa, especialmente o jornal O Estado de São Paulo. Acusavam a UNE de ser um antro de comunistas, defendiam a intervenção militar e afirmavam que a Juventude Universitária Católica (JUC) era apenas um disfarce para os comunistas se protegerem no chapéu da Igreja. A direita estudantil se organizava, principalmente, na chamada Frente da Juventude Democrática (FJD), apoiada por políticos golpistas, a exemplo de Carlos Lacerda, então governador do Estado da Guanabara (Rio de Janeiro).

Os métodos da extrema-direita são os mesmos de sempre, mudando apenas os instrumentos, que se modernizam. Naquela época, não havia redes digitais, mas pelos meios de comunicação se divulgavam mentiras, denúncias falsas, hoje batizadas de fake news. Uma delas é que, nos Centros Acadêmicos, as lideranças comunistas armazenavam armas para a guerra civil que pretendiam desencadear no Brasil. Durante a greve do terço, o Movimento Anticomunista (MAC) metralhou a sede da UNE e invadiu o 25º Congresso em Petrópolis (Hotel Quitandinha), ferindo a tiros dois estudantes. Nesse congresso, realizado em meados de julho de 1962, Vinícius Caldeira Brant é eleito presidente da UNE, sendo ele também da AP.

A luta pelo terço continua

No dia 23 de junho, os estudantes ocuparam a sede do Ministério da Educação no Rio de Janeiro. Preparavam um baile junino para o dia 30, chamado “Arraiá da Participação”, mas foram expulsos por tropas do Exército.

Encerrado em 30 de junho o prazo para as universidades e faculdades apresentarem as propostas de reforma estatutária, um número muito pequeno alterou a composição dos órgãos colegiados para incluir a representação de 1/3 (um terço) reivindicada pelo movimento estudantil. O CFE informou que não tinha autoridade para interferir, em respeito à autonomia universitária.

O mês de julho marca o enfraquecimento da mobilização. No dia 27, a UNE divulga o resultado da reunião com o ministro da Educação. Este explica a dificuldade de atendimento das reivindicações. Reunira o Conselho de Ministros, amplamente favorável aos estudantes, mas o Poder Executivo não poderia intervir nas universidades, colidindo com a autonomia assegurada por lei. Como a grande maioria dos reitores se opunha, somente uma lei poderia implementar a mudança, ficando na dependência do Congresso Nacional, com ampla maioria de direita, contrária às reformas de base. Entretanto, o Ministério solicitara ao Congresso poderes para realizar a mudança na composição dos colegiados.

Ante a situação posta, a direção da UNE orientou a continuidade da greve para pressionar o Congresso e buscou articulação com o movimento sindical e popular, propondo união de forças e aumentando a pressão. Nada disso avança, o Congresso não delega poderes ao Ministério da Educação e, no final de julho, a greve está praticamente encerrada, mas a UNE só comunica oficialmente o seu término em 09 de agosto.

A luta continua

No comunicado aos estudantes e ao povo brasileiro, a UNE informa que a greve termina, mas a luta pela Reforma Universitária continua, e apresenta propostas de ação, em síntese: levar ao povo o posicionamento da UNE e mobilizar as classes populares para efetivo apoio ao movimento; pressionar em cada estado os membros do Congresso Nacional para que definam pessoalmente sua posição e denunciar publicamente aqueles que fossem contrários ao terço ou demonstrassem desinteresse quanto ao tema; denunciar amplamente os reitores que não aceitassem a representação estudantil de 1/3; realizar todo tipo de manifestação pública em prol da Reforma Universitária; retomar o aprofundamento dos estudos sobre a RU, levando sempre suas conclusões ao povo.

O período que segue desemboca no golpe de 1º de abril de 1964. O movimento estudantil seguiu firme na primeira fase da ditadura, alcançando seu apogeu em 1968. Com o AI-5, passa para a clandestinidade e foi um dos setores mais atingidos pelas prisões, torturas, exílios e mortes nos anos de chumbo.

Hoje, a UNE não consegue mais o protagonismo histórico que lhe coube, como esclarece Ísis Mustafá, vice-presidente da entidade, que carece de democracia interna. “É preciso que haja reuniões da Diretoria para a efetiva participação dos diretores nos processos decisórios; reuniões do Conselho de Entidades de Base para que os Diretórios Acadêmicos participem da construção dos processos de mobilização, além de retomar o princípio de independência. Um exemplo de que a UNE não tem independência é o fato de estar havendo uma greve na Educação Federal pela recomposição dos orçamentos, entretanto, até agora, a UNE não se posicionou ao lado dos estudantes nessa mobilização”.

Uma luta gloriosa

Até os nossos dias, a reivindicação do terço não se tornou realidade. A Lei de Diretrizes e Bases, atual, assegura em seu artigo 56, proporção de 30% (trinta por cento) nos órgãos colegiados, percentual que deve ser repartido para funcionários, estudantes e comunidade externa.

Mas a luta por causas justas nunca é inglória, mesmo quando não é vitoriosa em determinado momento histórico, e sempre deixa lições. Pode-se dizer que a greve do terço mostrou que o diálogo direto resulta em crescimento da consciência e adesão à luta; a importância da arte nesse processo; a comprovação de que mudança estrutural na Universidade, na educação em geral, não é possível sem mudanças estruturais na sociedade e estas, nenhum setor isolado consegue. Só a união consciente e organizada dos diversos setores do povo para a construção do Poder Popular será capaz de proporcionar mudanças efetivas e duradouras.  

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