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domingo, 6 de outubro de 2024

A perseguição contra Carlos Marighella continua: Agora à sua memória

Os fascistas tentam criar uma narrativa mentirosa sobre Carlos Marighella, taxá-lo de terrorista, porém Marighella segue vivo como herói do povo brasileiro na memória da classe trabalhadora.

Alenice Baeta∗


Foto: DEOPS/1939

Nascido em 1911, em Salvador, BA, Carlos Marighella herdou do pai e da mãe a combatividade – um imigrante italiano operário metalúrgico e uma negra, filha de escravos trazidos do Sudão, os haussás; casal conhecido por participar de sublevações nas ladeiras do Pelourinho em Salvador contra a escravidão e exploração dos trabalhadores. Muito afeito aos estudos e leituras, Marighella entrou para a faculdade aos 18 anos no curso de Engenharia Civil, na Escola Politécnica da Bahia.

Foi preso, pela primeira vez, aos 23 anos por publicar um poema que fazia críticas a um interventor opressor na Bahia, indicado por Getúlio Vargas durante o denominado “Governo Provisório”. Escrevia ainda versos libertários, líricos e satíricos, sob forte influência dos conterrâneos Gregório de Matos (considerado um dos melhores poetas barrocos do período colonial brasileiro) e Castro Alves (poeta humanista e abolicionista dos oitocentos).

Camarada de Jorge Amado, o também professor, escritor e poeta Carlos Marighella foi líder e militante do Partido Comunista do Brasil (PCB), tendo sido encarcerado e torturado ao longo de seis anos durante a ditadura imposta pelo Estado Novo (1937- 1945).

“Não ficarei tão só no campo da arte,
e anônimo e firme sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio a própria sorte”.
– Carlos Marighella: Trecho do poema “Liberdade”, São Paulo, Presídio Especial, 1939.

Após ser anistiado em 1945, Carlos Marighella foi eleito deputado federal, devido ao seu prestígio e alta capacidade de organização popular e sensibilidade social, juntamente com Luiz Carlos Prestes e outros militantes do seu partido. Apesar de minoritária, a bancada comunista fazia duras intervenções e críticas à elaboração da Constituição de 1946, sendo que um dos principais pontos de atrito no parlamento predominantemente conservador era a necessidade da reforma agrária, a supressão da censura e o fortalecimento dos direitos trabalhistas no campo e na cidade.

Foto: Reprodução

A reação política autoritária no bojo do governo do general Eurico Gaspar Dutra culminou com a cassação sumária do PCB em maio de 1947, bem como dos mandatos de seus parlamentares comunistas ocorrida em janeiro de 1948, perseguição aos sindicatos, movimentos organizados e aos militantes de oposição.

O inquieto e aguerrido Carlos Marighella aceitou o convite do Comitê Central do Partido Comunista e viajou para a China com o intuito de estudar e acompanhar de perto a situação política daquele país, onde ficou por dois anos. Retornou ao Brasil, assumindo várias funções na direção de seu partido, na clandestinidade, quando produziu inúmeros manuais, textos e poemas que entraram para a história documental da organização dos movimentos de resistência popular e de luta de classes de sua época, boa parte divulgados nos idiomas espanhol, francês e inglês, mas que no Brasil só foram publicados oficialmente após dez anos da sua morte, tais como: “Se Fores Preso, Camarada”; “Por que Resisti à Prisão”; “Ecletismo e Marxismo”; “Chamamento ao Povo Brasileiro”.

A Crise Brasileira”, escrito em 1966 (portanto, após o Golpe Militar de 1964), tem sido considerada a melhor produção teórica de Carlos Marighella, onde tece contundente crítica à política de alianças com a burguesia por parte da esquerda, reforçando a importância do fortalecimento e da autonomia dos movimentos operários e camponeses em busca de um governo popular revolucionário.

Enfrentando conflitos e divergências estruturais em seu partido, Marighella descumpriu as ordens do PCB e foi participar em 1967 em Cuba da “Primeira Conferência  da Organização Latino Americana de Solidariedade (OLAS)”, motivo da sua expulsão do partido. Fora do PCB Carlos Marighella, ainda em Havana (dias após a morte do líder revolucionário Che Guevara na Bolívia), escreve o opúsculo: “Algumas Questões Sobre a Guerrilha no Brasil”, publicado no ano seguinte pelo Jornal do Brasil, chamando a atenção dos repressores para a sua produção intelectual e revolucionária posição política. No Brasil, Carlos Marighella e Câmara Ferreira anunciaram a criação de uma organização de esquerda que ficou conhecida como Aliança Libertadora Nacional (ALN), que propunha a utilização de armas para resistir à ditadura e à tirania, dando início às primeiras operações de guerrilhas urbanas.

“De algum lugar do Brasil me dirijo à opinião pública, especialmente aos operários, agricultores pobres, estudantes, professores, jornalistas e intelectuais, padres e bispos, aos jovens e à mulher brasileira.”
– Carlos Marighella: [Trecho] Chamamento ao Povo Brasileiro, 1968.

Em 1969 Marighella escreve o “Manual do Guerrilheiro Urbano”, visando estabelecer diretrizes e táticas de resistência do movimento popular armado em contexto urbano frente à ditadura militar e às perseguições de suas lideranças. Considerado o “inimigo número um” e “terrorista” pelo regime ditatorial de 1964, Marighella foi implacavelmente perseguido pelo serviço de inteligência, provavelmente com a ajuda da CIA (Central Intelligence Agency, dos Estados Unidos), sendo brutalmente assassinado em uma emboscada composta por agentes fortemente armados do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), na Alameda Casa Branca, na capital de São Paulo.

Seu assassinato completa 50 anos no dia 04 de novembro de 2019. Seu túmulo em Salvador, no cemitério Quinta dos Lázaros, para onde foi transladado dez anos depois, é uma obra prima do também comunista Oscar Niemeyer. Mas nota-se ainda um grande preconceito das alas conservadoras e retrógradas do país com relação à memória deste pujante líder revolucionário brasileiro. 

Em 2014, por exemplo, causou grande consternação aos profissionais da área de história, intelectuais e militantes de esquerda quando houve negação do pedido de tombamento em âmbito estadual por parte do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural (IPAC) da Bahia da casa de Carlos Marighella, situada na Baixa dos Sapateiros, em Salvador. Grandes conhecedores da biografia de Marighella, Márcio Ferraz e Mário Magalhães, este último, autor da célebre obra: “Marighella – O Guerrilheiro que Incendiou o Mundo”, entraram com o justo pedido de tombamento do bem imóvel.

Saber que nele o emblemático revolucionário Carlos Marighella passou parte de sua infância e juventude com sua família, e que este mesmo sítio histórico e seu logradouro teria inspirado e sido palco de múltiplos significados da luta popular baiana. A reação foi firme com relação a esta negativa de proteção patrimonial, tanto, que em 2016 após a cobrança e pressão de grupos que defendem a memória das Comunidades Tradicionais Afrodescendentes ou que denunciam os perseguidos pela ditadura, como o Movimento “Tortura Nunca Mais”, foi informado aos familiares de Marighella o interesse por parte do governo em fazer desta casa, finalmente, um ponto cultural e imaterial, componente de um roteiro relativo à memória de resistência do povo baiano.     

Segundo reportagem do jornal BBC, ainda há muito preconceito à pedra monumental, com os seguintes dizeres: “Aqui tombou Carlos Marighella, em 4/11/1969. Assassinado pela ditadura militar”, instalada em 1999 a pedido de intelectuais brasileiros que indicaram o local do assassinato de Marighella, na Alameda Casa Branca, na região do Jardim Paulista, zona nobre de São Paulo. Todos os anos, grupos de estudantes e admiradores desse revolucionário se reúnem no local para gritar o nome de Marighella e bater palmas.

Em 2013, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo e a viúva do guerrilheiro, Clara Charf, fizeram um grande ato junto ao marco. Com menos regularidade, outras pessoas aparecem para vandalizar e menosprezar a importância do monumento. Clara Charf, companheira de Marighela por 21 anos, até a sua execução pelos militares, conta em suas entrevistas que ele era um homem sábio, à frente de seu tempo, pois era extremamente “anti-racista e feminista”, “quando ainda não se usava essa palavra”. O sociólogo e crítico literário Antônio Candido comenta o seguinte sobre Carlos Marighella: “Ele pagou o tributo mais alto e mais nobre que um homem pode pagar, que é dar a própria vida por seus ideais. De maneira, que é justo que ele tenha se tornado um grande símbolo coletivo”.

Em tempos também obscuros, tenebrosos e destoantes, já em 2019, um filme ou cinebiografia que conta a história deste comunista marxista-leninista vem sofrendo severas retaliações por parte deste desgoverno Bolsonaro, que dificulta a sua divulgação no Brasil e no exterior. Esse filme destinado a relatar o contexto em que viveu o deputado Marighella explicita que o Brasil sofreu um golpe militar/civil/empresarial em 1964, com a tomada de poder pelos militares, ajudados pelo governo norte-americano, sob pretexto de “prevenir” o avanço do comunismo. Os militares, como se sabe, ficaram durante 21 anos no poder, tendo perseguido e assassinado inúmeros estudantes, operários, camponeses, artistas, pesquisadores, intelectuais e militantes em geral, dentre eles, Carlos Marighella, que foi um mártir revolucionário de seu tempo. Figura histórica marcante e inconteste.

O roteirista Rogério Faria possui um projeto ilustrativo muito instigante, que conta com os desenhos de Ricardo Sousa e arte da capa de Phill Zr, sobre a história de Marighella e de seus companheiros, não obstante, em entrevista recente ao site “Quadrinheiros” ele relata que o seu quadrinho sequer foi lançado e que já estaria causando uma alta polarização (mensagens elogiosas e outras, com insultos e agressões) nas redes digitais, somente com a divulgação do financiamento da obra no coletivo “Catarse”.  A publicação aborda ainda a fibra de Marighella, que, mesmo sob tortura, jamais delatou seus companheiros, surpreendendo até mesmo os seus captores e algozes, tendo se tornado desde então o maior guerrilheiro brasileiro do século XX. De fato, Carlos Marighella não teve tempo de ter medo, nos deixando um legado imprescindível.


∗ Doutora em Arqueologia pelo MAE/USP; Pós-Doutorado Arqueologia/Antropologia-FAFICH/UFMG; Mestre em Educação pela FAE/UFMG; Historiadora e Membro do CEDEFES (Centro de Documentação Eloy Ferreira da Silva).
www.cedefes.org.br:
[email protected]

Fontes

MARIGHELLA, Carlos. Escritos de Carlos Marighela. São Paulo: Ed. Livramento, 1979.

MARIGHELLA, Carlos. Manual do Guerrilheiro Urbano. São Paulo: Ed. Sabotagem, 2003.

MAGALHÃES, Mário. Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

MAGALHÃES, Mário.  Estado da Bahia se nega a tombar casa onde Carlos Marighella cresceu, em 11 de setembro de 2014.

Filmes

Batismo de Sangue” – filme brasileiro lançado em 2007, dirigido pelo cineasta Helvécio Ratton. Baseado no livro homônimo de Frei Betto, que foi lançado originalmente no ano de 1983; vencedor do prêmio Jabuti.

Marighella” – filme brasileiro lançado em 2019, dirigido por Wagner Moura, produtora O2.

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