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terça-feira, 19 de novembro de 2024

A agonia da saúde no Rio de Janeiro

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População carioca sofre com um histórico de descaso de sucessivas administrações municipais com a saúde pública.

Por Lusiana Chagas Gerzson e Carlos Alberto Grisolia Gonçalves
Movimento Trabalhadores pelo SUS – Rio de Janeiro


Foto: Bárbara Dias

A três esferas da rede de saúde pública do Rio de Janeiro (federal, estadual e municipal) sofrem em agonia. Diferente de outras épocas, na qual uma esfera socorria a outra, desta vez são as três que se encontram em crise, configurando um dos momentos mais críticos do setor desde a redemocratização.

Especificamente no âmbito municipal, a partir de 2017, o prefeito-bispo Marcelo Crivella impõe um franco ataque à saúde pública. Justifica repetidamente que o problema foi ter recebido o município com as contas no vermelho. Tal informação, porém, é refutada pelo Tribunal de Contas do Município, que concluiu que a gestão anterior zerou as contas e deixou dinheiro em caixa. Somada a essas manobras discursivas a respeito das finanças, em outubro de 2018 a prefeitura divulgou um documento objetivando “reorganizar e otimizar” os serviços de atenção primária à Saúde por meio do postulado de reengenharia de diminuição do número de equipes com base em critérios quantitativos e de IDS (Índice Desenvolvimento Social, desconsiderando que o acesso à saúde é um dos critérios deste índice) de cada região – o que ocasionou a piora do acesso, desassistência e lançou as bases da crise atual.

O corte nos investimentos da atenção primária é um equívoco que gera, ilusoriamente, uma economia de curto prazo, não obstante produzir gastos maiores no futuro. Os agravos em saúde que são desassistidos ao nível primário acabam por sobrecarregar os outros níveis de complexidade (secundário e terciário, que consistem no setor de especialidades, de imagem e hospitais, respectivamente), o que fere a lógica de rede e de cuidado, fato que foi alertado por sanitaristas à época. Soma-se a este quadro a redução de postos de trabalho, sendo que muitos são ocupados por pessoas que residem na própria região da unidade de saúde, como é o caso dos agentes comunitários.

A Prefeitura deixa de investir 2 bilhões de reais na saúde do município até então. A falsa justificativa de dificuldades financeiras em 2017 ocasionou constantes atrasos de salários dos profissionais, prejuízo ao abastecimento e, ao decorrer dos meses seguintes, demissões. Com este processo de desmonte, 200 equipes de Saúde da Família foram desativadas, reduzindo a cobertura do programa de 70% da população para 53%. Os hospitais e unidades de pronto atendimento (UPA) também foram prejudicados com a falta dos repasses, a despeito de serem sobrecarregados pela desassistência nos níveis anteriores.

Em 2019, a crise se agrava e, em outubro, o prefeito alega não ter mais recursos para honrar com os compromissos. Os trabalhadores terceirizados das Organizações Sociais (OS) estão com os salários de outubro e novembro atrasados, 13º não pago, vales transporte e alimentação retidos, muitos estão sendo despejados de suas casas e dependendo de doações de cestas básicas por parte da população. Sem profissionais suficientes e com as unidades apresentando condições precárias de trabalho, os cariocas sofrem com o desamparo infligido por Crivella, peregrinando de serviço em serviço na procura por atenção em saúde.

O calendário da crise

É neste contexto que se inicia uma disputa judicial trabalhista entre a Prefeitura do Rio, as OS e os trabalhadores, com prejuízo maior para os últimos e, obviamente, para a população. Já em outubro deste ano a Prefeitura entra em conflito com o BNDES por deixar de pagar uma parcela de uma dívida com o banco, o que fez com que deixasse de receber algumas receitas (cerca de 100 milhões por mês), como ICMS e IPVA. Em dezembro, os profissionais de saúde das OS entraram em greve por não receberem dois meses de salário e a primeira parcela do 13º (alguns meses antes já havia problemas de repasses da Prefeitura, prejudicando o fornecimento de insumos para as unidades).

Nos últimos vinte dias foi iniciada uma série de arrestos nas contas do município pelo TRT-RJ (Tribunal Regional do Trabalho), seguida por um recurso da AGU (Advocacia Geral da União) em 2 de dezembro alegando que o dinheiro bloqueado era destinado a fins específicos e, portanto, não poderia ser usado para pagar salários atrasados, medida esta não acatada pelo colegiado do TRT. No dia 9 de dezembro, um desembargador do TRT manda a Prefeitura apontar novas contas para o arresto e no mesmo dia o TST aceita recurso adiando por oito dias úteis para uma nova decisão.

Nos dias 10 e 11, os profissionais fazem uma paralisação e decidem manter a greve e diminuir o efetivo em 30% nas unidades. Marcam assim uma iniciativa histórica de mobilização de todas as categorias profissionais de saúde na luta por seus direitos e pelo SUS. No dia 11 de dezembro, o prefeito Crivella pede ajuda ao Governo Federal e no mesmo dia o TRT faz novo arresto às contas. No dia 13, a União libera o valor irrisório de 150 milhões de reais e a justiça do Rio pede a instalação de um gabinete de crise. Em 16 de dezembro, o TRT exige o pagamento de R$ 76 milhões para os trabalhadores da saúde e no mesmo dia o TRT determina o arresto de mais R$ 164 milhões nas contas da Prefeitura. Em 17/12, a Prefeitura descontinua todos os pagamentos por uma resolução publicada em Diário Oficial, o que suspende o pagamento do 13º salário dos servidores estatutários e tira a perspectiva de pagamento dos salários atrasados dos funcionários terceirizados.

Se o leitor ficou enfadado e perdido nos trâmites judiciais citados acima, imagine então o sofrimento de milhares de profissionais de saúde sem o dinheiro de sua sobrevivência, e de milhões de cariocas que agonizam nas filas ou peregrinações na rede de saúde enquanto aguardam a resolução deste processo.

A via crucis do carioca não é de agora, começou há mais de uma década com uma série de projetos que, apesar de inicialmente darem impulso à expansão da rede pública de saúde (especialmente a primária), marcaram opções de modelos de gestão que não consolidam o SUS como uma política pública de saúde para a população – como a opção pelas OS, por exemplo.

O atual governo pode não ser responsável por tudo – a saúde carioca sofre desde sempre por gestões anteriores –, mas certamente o é pela incompetência na administração dos recursos, pela falta de transparência na comunicação com os trabalhadores e com a população, assim como o uso da máquina pública para favorecimento do seu grupo político/religioso. A população que esperava ser cuidada, hoje espera por dignidade e respeito aos seus direitos constitucionais.

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