Em resposta ao artigo “Insistência no pedido de autocrítica ao Partido dos Trabalhadores lembra táticas stalinistas” escrito por José Sócrates em 15 de dezembro de 2019 para a Revista Carta Capital.
Nana Sanches
Foto: Reproduções/Jornal A Verdade
Torna-se necessário pontuar algumas questões para responder o artigo citado. Comecemos do início. José Sócrates aponta que a autocrítica é um método stalinista. Pois bem, não há uma exigência para que todos que escrevem sobre política tenham lido sequer um livro de Karl Marx ou de Vladimir Ilyich Ulianov, o Lênin, mas, caro leitor, para chegarmos ao nível político que diferencia práticas políticas e partidárias na atualidade, não podemos nos esquivar do debate centenário que cerca a questão. Marx já defendia o método de crítica e autocrítica como forma de superar erros e insuficiências partidárias. As teses de Marx foram desenvolvidas sob novas condições por Lênin e pelo Partido Bolchevique.
De acordo com Lênin, a autocrítica é uma característica própria de um partido autenticamente proletário, ao contrário dos partidos reformistas e oportunistas. Para ele, não temer a crítica e a autocrítica é um princípio partidário importante. Na história, todos os partidos que se voltaram contra essa premissa do marxismo e do leninismo foram desmascarados pelo povo, revelando seu distanciamento das massas e suas reivindicações.
Obviamente, atacar Stálin, um dos grandes defensores do leninismo parece uma boa saída para quem quer defender que é necessário escapar da autocrítica, como o diabo que foge da cruz. Mas evidencia falta de argumentos e conhecimento sobre as divergências que existem quanto aos métodos partidários que guiam organizações políticas.
Em verdade, faz mais de 100 anos que dirigentes e teóricos debatem sobre como deve ocorrer a filiação partidária, de onde devem vir os recursos dos partidos, quais métodos e estratégias devem ser adotadas pelos partidos e quem as decide.
Lênin defendeu por anos que:
1) devem estar filiados ao Partido aqueles que militam, reúnem-se em uma célula, participando ativamente da ação, construção teórica e da democracia partidária;
2) o centralismo democrático deve guiar as decisões do Partido, ou seja, a maioria do Partido decide e, uma vez tirada a linha política, todo o Partido deve atuar em prol da decisão coletiva;
3) o Partido deve ter seu órgão de imprensa voltado, escrito e vendido pelo povo e para o povo;
4) o método de avaliação individual e coletiva deve ocorrer através da crítica e autocrítica franca e camarada.
Talvez o cenário brasileiro seria outro se todos os partidos ou a maioria seguisse ao menos um desses passos. Não é o que ocorre.
Tendo essa questão tratada, passemos ao questionamento que o escritor traz ao leitor: “O erro é inerente à condição humana daqueles que agem politicamente. E ocorre outra pergunta: onde não erraram?” E então ele mesmo responde: “Acho que não erraram [o Partido dos Trabalhadores-PT] quando fizeram do combate à pobreza a vossa prioridade política. Essa foi uma das marcas que vos acompanhará na história: 30 milhões.” Não poderia concordar mais com José Sócrates. Combater a miséria em nosso país não só era como segue sendo urgente. Mais urgente ainda é garantir que uma desvalorização de ações na bolsa de valores ou uma bolha imobiliária alhures não leve milhões de trabalhadores à miséria novamente em poucos anos. E segue: “Não erraram também quando apostaram na redução das desigualdades, incluindo todos os brasileiros numa nova política econômica na qual – e pela primeira vez – todos saíram a ganhar.” De fato, o “Brasil, país de todos” dava lugar para a grande burguesia nacional e internacional que hoje se encontra fortalecida a ponto de colocar uma marionete acéfala no mais alto cargo de poder do país. Afinal queremos um país para quem? Para os trabalhadores, sem sombra de dúvida. Voltemos ao texto de José Sócrates: “Não erraram quando decidiram apostar na universidade – a igualdade, a cidadania e o desenvolvimento econômico dependem do acesso ao conhecimento.” Este será um grande legado do PT. As universidades viram recursos como nunca antes na história, assim como os Institutos Federais, sob seus governos. Mas assistimos todos à evasão escolar por falta de recurso voltado à assistência estudantil. Muitos entravam nos cursos, mas tinham dificuldades de neles se manter, em especial os mais pobres que há muitos anos contam com uma bolsa de R$400,00 para manter-se em um mês. O escritor pontua ainda: “Não, não se equivocaram quando definiram uma política externa ambiciosa baseada no direito internacional e numa visão multilateral da ordem mundial. Os Brics deram ao Brasil uma nova e revigorante voz nos assuntos mundiais e um novo espaço de influência internacional.” Acredito que muitas questões cabem aqui, mas quero me atentar à influencia que a política externa ambiciosa trouxe para a Floresta Amazônica e ao Complexo do Pantanal. O aumento do consumo de carne na China pressionou a fronteira agroindustrial ao norte do país e o plantio de soja para os Estados Unidos da América devastou o centro-oeste de nosso país. Quem ganha com isso? João Pedro Stedile responde: “o agronegócio lúcido” que explora e mata os trabalhadores rurais e roubam as terras dos camponeses.
José Sócrates segue: “Também não se enganaram quando fizeram tudo isso com respeito republicano pelas instituições e pelos adversários políticos. Não se enganaram quando consideraram que as sucessivas eleições que ganharam não constituíam critério de razão, mas de legitimidade. Não se enganaram quando consideraram a regra da maioria como sendo de importância igual à defesa da minoria – para garantir que esta possa ser aquela amanhã.” Isto é verdade, mas a legitimidade burguesa abre caminho para se votar impeachment sem provas, por exemplo. E isso é extremamente problemático e fere a democracia. Nos parece importantíssimo fazer uma luta consequente para defender o voto e principalmente as necessidades da maioria.
Chegando ao fim, o escritor pontua que: “A linguagem política que utilizaram nunca maltratou ninguém, mas ajudou muitos. O que fizeram foi dar voz a quem há muito se sentia fora do espaço público e até fora do mundo. Nunca alguma garantia constitucional se sentiu ameaçada, apesar da intensa batalha política e partidária. Nunca ficou tão claro que a riqueza mais importante do Brasil era o seu novo pacto constitucional – um país plural, diverso e que anseia por igualdade de oportunidades. Se alguma tradição democrática o Brasil precisará construir no futuro, será neste período que buscará inspiração.” De fato, o período pós-ditadura abriu espaço para que o debate político fosse feito e é importante lembrar que muitos e muitas morreram para garantir esse direito.
José ainda afirma: “Sim, devem ter cometido muitos erros, mas a política é feita disso mesmo: de propor, de tentar, de errar e de voltar a tentar. De fazer melhor. Ela é filha da contingência, do risco e da incerteza, e nisso reside toda a sua beleza. No momento em que pretendem cobri-la com véus científicos estão a mentir-vos – nada existe de “científico” na vontade e nas escolhas humanas.” Ora, neste cenário, questionar a ciência que nos auxilia a tomar decisões econômicas, políticas e sociais não parece certo. Quais são as bases das decisões políticas? E mais: qual preço um erro político têm para o nosso povo?
Por fim, lemos: “E, quanto à derrota eleitoral, devo dizer que apreciei sobretudo que tivesse sido aceita com naturalidade e sem recorrer à detestável ideia de superioridade moral usada com frequência para diminuir e deslegitimar os adversários políticos. Mas gostei especialmente da estética da batalha: que luta, que bravura, que grandeza. No fim da luta tão desigual existe um vencedor aclamado, mas existem também os vencidos que, ensanguentados, fixam a audiência com olhar digno – estamos de pé. Este é um dos raros momentos na política em que só temos olhos para os vencidos. Eles, os derrotados, representam o Brasil que conheço e que admiro, feito de inclusão social, de alargamento de oportunidades, de compromisso, de moderação política e de ambição democrática. Onde erraram? Não sei, não sei. Só me ocorre dizer onde não erraram.”
Não cremos que nada do que se passa em nosso país nos últimos 4 anos deva ser aceito com naturalidade. Nenhuma injustiça deve ser aceita. Além disso, Bolsonaro chegou ao poder com eleições fraudadas e influenciadas por robôs e mentiras. Ainda, chegou ao poder fazendo apologia a torturadores, afirmando que mataria, defendendo o massacre do povo trabalhador. Caro José Sócrates, o Brasil está em guerra e os dados de homicídio comprovam isso. É uma guerra injusta, na qual, em apenas um episódio vislumbramos seu caráter. Em Paraisópolis-SP, milhares de jovens não conseguiram barrar a violência de 31 policiais que saíram de sua ação com um saldo de 9 mortos, torturados e asfixiados no meio da rua. Estamos lutando e muito para ficarmos de pé. Nosso povo resiste há mais de 500 anos e tem uma ambição: viver. Para isso, o povo trabalhador precisar ser sua própria representação política. Ele é central para a tomada de decisões políticas que devem ser feitas e se há erros, será ele que cobrará a conta. E cobrará, obviamente, a autocrítica.