Quais paralelos podem ser feitos entre a teoria formulado por Fanon sobre o colonialismo e a situação de violência do Estado brasileiro. Num acirramento de uma constante chacina contra o povo pobre e negro as forças armadas e a polícia não medem esforços em remover os trabalhadores dos espaços para botá-los nas mãos dos ricos, ao mesmo tempo que criam cercos para manter o povo pobre isolado e pressionado.
João Magalhães
UJR – SP
Revolucionário marxista, o martinicano Frantz Fanon é uma das figuras mais importantes do século XX para entender o colonialismo – processo em que os países de primeiro mundo dominam militarmente países subdesenvolvidos – e as táticas que o sistema capitalista utiliza em sua dominação na periferia do sistema econômico mundial. Anos antes de sua morte precoce, aos trinta e sete anos, após uma participação ativa na guerra de independência da Argélia e no contato com o marxismo-leninismo – em textos que circulavam na época como “O que fazer?” de V. Lênin –, Fanon escreve um de seus livros mais importantes, Os condenados da terra. No livro, ele mostra como a luta anticolonial organizada e a criação de uma nova nação através da transformação radical da sociedade é a única saída para a emancipação do colonizado. Mas, segundo Fanon, o processo de transformação não é fácil. Pois, o mundo colonial possui uma “atmosfera violenta”, onde todas as relações são marcadas pela violência.
Dessa forma, seria possível fazer um paralelo entre o mundo colonial descrito por Fanon e o abuso da violência do Estado brasileiro?
Não é de hoje que notamos que no Brasil os índices de violência chegam ao absurdo. A cada ano que passa o país vem batendo recordes no número de mortes causados pela repressão do Estado capitalista. Onde a polícia deveria servir à população, a linha que separa o “proteger” do “atirar” tem classe e tem cor. Mais e mais cenas e números como esses vão se tornando parte do cotidiano. Quantos Lucas, Ágathas e Marcos Vinícius terão que ser sacrificados para que o “basta” chegue? Nesse sentido, Fanon nos mostra, não apenas a explicação, mas a solução para o problema da violência do Estado brasileiro.
Segundo Fanon, o mundo colonial é divido em duas zonas contrárias, inconciliáveis: a zona do colonizador e a zona do colonizado. A zona do colonizador, segundo Fanon, “é uma cidade iluminada, asfaltada, onde as latas de lixo transbordam sempre de restos desconhecidos, nunca vistos, nem mesmo sonhados. Os pés do colono nunca se mostram, exceto talvez no mar, mas nunca se está bastante próximo deles. Pés protegidos por sapatos fortes, enquanto as ruas da sua cidade são limpas, lisas, sem buracos, sem pedriscos. A cidade do colono é a uma cidade empanturrada, preguiçosa, seu ventre está sempre cheio de coisas boas. A cidade do colono é uma cidade de brancos, de estrangeiros”. Já a zona do colonizado “é um lugar mal afamado, povoado de homens mal afamados. Ali, nasce-se em qualquer lugar, de qualquer maneira. Morre-se em qualquer lugar, de qualquer coisa. É um mundo sem intervalos, os homens se apertam uns contra os outros, as cabanas umas contras as outras. A cidade do colonizado é uma cidade faminta, esfomeada de pão, de carne, de sapatos, de carvão, de luz. A cidade do colonizado é uma cidade agachada, uma cidade de joelhos, uma cidade prostrada”.
Portanto, o limite geográfico dessas zonas descrito por Fanon é o mesmo limite presente nas cidades brasileiras. Aqui, num intervalo de quinhentos metros, a democracia que funcionava, não funciona mais, os direitos se perdem e a violência assume sua forma mais direta. Para Fanon, essa segregação é uma reprodução de um problema muito maior, a dominação entre nações. Isso fica claro no Brasil quando vemos a atuação do imperialismo em nossa terra. Portanto, a dominação nas cidades entre bairros nobres e a favela é produto da dominação entre países, da dominação dos mais desenvolvidos sobre os menos desenvolvidos. Logo, a separação geográfica das zonas entre colonizadores e colonizados tem sua origem na exploração econômica.
Outro elemento decisivo para se compreender a atmosfera violenta do Estado brasileiro é o que diferencia os países de primeiro mundo dos países da periferia do sistema. Diferente da Europa, Fanon diz que nas colônias não existe uma mediação entre o opressor e o oprimido. Enquanto nas sociedades de primeiro mundo existe uma educação desenvolvida, uma moral capitalista também desenvolvida, o uso da violência não é tão frequente. Dessa maneira, essas formas de mediação entre o opressor e oprimido acabam aliviando a tensão da dominação e mascarando o uso da violência. Já na colônia, também por conta do racismo – uma forma ideológica de justificativa da exploração econômica –, a violência assume seu estado mais desumano, e o Estado assume seu caráter violento de forma direta, sem intermediários. Assim, na colônia, a violência é exposta em seu grau máximo.
Diante de toda essa situação, o que fazer? Fanon nos dá uma saída. Segundo ele, a violência deve ser superada pela própria violência, para que o estágio do mundo colonial seja superado, a atmosfera violenta deve ser transformada, é preciso um partido organizado, em ação violenta. Portanto, o colonizado tem que canalizar contra o colonizador a mesma violência que durante anos foi usada sobre ele. Uma violência como meio de emancipação da nação colonizada, e assim da exploração econômica. Apenas por meio dessa violência que o colonizado pode enfim transformar a sociedade com o objetivo de criar um novo Estado, um Estado socialista. Portanto, a saída para a violência do Estado brasileiro é a organização da revolta, a mobilização dos oprimidos, na busca da transformação do Estado e da sociedade como um todo. Como diz Marx, “a violência é a parteira de toda velha sociedade que está prenhe para uma nova”.