O que significa um militar no comando do SUS?

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CONSTITUINTE – Movimentos sociais foram às ruas em defesa de um sistema de saúde público e universal após o fim da ditadura militar. (Foto: Erik Barros Pinto/Projeto Radis/ENSP/Fiocruz)

Qual o significado e as consequências da inédita presença de um militar no comando do Ministério da Saúde, principal órgão de gestão de uma política social de importância central para população e que resultou de uma grande conquista democrática da Constituição de 1988?

Por Paulo Henrique Rodrigues
Rio de Janeiro

BRASIL – Nesses terríveis tempos de pandemia, em que o Brasil vem sendo duplamente castigado – pelo vírus e pelo pior governo de nossa história –, a importância da existência do SUS e do direito universal à saúde vem se mostrando com toda força.

Apesar de dois ministros terem sido trocados em 27 dias pelos caprichos da criançona mimada que desgoverna o país, e de o Ministério da Saúde estar ocupado por um militar que cumpre a absurda ordem presidencial de recomendar um remédio inócuo para a doença, além de causar perigosos efeitos colaterais, é a existência do SUS que tem garantido um mínimo de atendimento indispensável a quem sofre.

A inédita presença de um militar no comando do principal órgão de gestão de uma política social de importância central para população e que resultou de uma grande conquista democrática exige reflexão e ação.

Desde que foi criado, pela Constituição Federal de 1988, o SUS vem sendo obrigado a competir com um enorme e protegido setor de saúde privado. É o único sistema público de saúde do mundo obrigado a competir em condições desiguais, uma vez que o setor privado goza da maior isenção fiscal existente no país (empresas e pessoas físicas podem deduzir do que devem ao imposto de renda 100% do que gastam com a saúde privada).

Essa predileção dos governos brasileiros à saúde privada vem dos tempos da ditadura militar. Foi a ditadura militar que criou, pela primeira vez, uma lei autorizando a existência de seguros privados. Foi a ditadura militar que introduziu o subsídio fiscal para o setor privado de saúde. Foi a ditadura militar que deu início à montagem dos mecanismos regressivos no sistema tributário brasileiro, que fazem com que sejam os pobres que arquem com a maior parte do peso dos tributos. Foi a ditadura militar que aboliu a representação dos trabalhadores nos serviços públicos de saúde. Foi a ditadura militar que promoveu a maior concentração de renda da nossa história, com nefastas consequências sobre a saúde da população.

Também foi a ditadura militar que estabeleceu a prioridade para a prestação de serviços de saúde privada no antigo INPS. Essa mesma ditadura criou mecanismos de financiamento subsidiados para que os serviços privados de saúde pudessem crescer e prosperar. Resultado: ao final dos 21 tristes anos em que os militares ficaram no poder, o setor privado de prestação de serviços de saúde havia triplicado de tamanho em relação ao setor público.

Foram os generais-ditadores que acabaram com a carreira e com a entrada exclusiva por concurso público dos servidores públicos. Por conta disso, a população deixou de contar com servidores públicos na saúde com dedicação exclusiva e condições dignas de trabalho. Foi por conta das medidas tomadas pela ditadura militar que os trabalhadores da saúde passaram a ter de trabalhar tanto no público quanto no privado para tentar ganhar a vida, o que lhes acarretou sacrifício e piorou a qualidade dos serviços prestados à população.

Foi por conta dessas medidas da ditadura militar que foram criadas as condições tão difíceis para o desenvolvimento do SUS. Foi por conta dos generais que um país tão socialmente desigual e com uma enorme massa de pobres e miseráveis tem o segundo maior setor de seguros privados de saúde do mundo. Foi por conta da ditadura militar que este setor privado voltado para uma minoria da população é financiado pela grande maioria de pobres e miseráveis, por conta do subsídio fiscal.

O SUS, o direito à saúde, assim como os outros direitos sociais, nasceram de uma longa e tenaz luta de resistência democrática contra a terrível noite em que o Brasil foi mergulhado pelos militares.

Voltamos a ter um governo praticamente militar, e um militar, que, como todos os militares, foi treinado para a guerra e para obedecer ordens e não para o cuidado com a saúde das pessoas, está à frente do principal órgão de gestão do SUS.

É hora de reflexão, mas também – e principalmente – de ação. A primeira medida do ministro interino foi cumprir uma ordem absurda e de nefastas consequências para a saúde da população. Até quando a sociedade brasileira terá de suportar tamanho desrespeito e sofrimento?