Há anos, a sociedade brasileira vem sendo chantageada pelo discurso de que “não há dinheiro” para as medidas necessárias ao combate da crise e do desemprego. Entretanto, esse argumento não se sustenta do ponto de vista técnico e é usado politicamente para implementar reformas reacionárias.
Beto Silva
Rio de Janeiro
BRASIL – “Brasil está quebrado. Não posso fazer nada”, declarou Jair Bolsonaro em janeiro deste ano. O argumento do “país quebrado” é um dos principais do Governo Federal para negar as medidas econômicas necessárias para garantir o isolamento social e o combate à Covid-19.
Esse argumento, porém, não é novo. Em 2016, para defender o congelamento dos gastos públicos sociais por 20 anos, o então presidente, o golpista Michel Temer (MDB), disse: “É como na sua casa. Se você estiver gastando mais em um determinado mês, no mês seguinte você vai fazer uma economia para poder equilibrar as contas da sua casa”.
Sem dúvida, a retórica do “país falido”, da “insustentabilidade da dívida pública” e outras variantes tem sido usada para justificar o golpe de 2016, o teto dos gastos, a reforma da previdência, as privatizações e muitas outras medidas que resultam no corte de direitos e na piora das condições de vida e trabalho da população.
Mas, afinal, o Brasil está quebrado?
A falácia desse argumento está na absurda comparação das contas públicas com as contas de uma família. Essa analogia é impossível por várias razões.
Em primeiro lugar, diferente das famílias, é o governo quem decide a taxa de juros que, em última instância, incide sobre a dívida. Assim, por exemplo, entre janeiro de 2016 e março de 2021, a dívida bruta do governo geral (DBGG) saltou de R$ 4 trilhões para R$ 6,7 trilhões. Apesar disso, nesse mesmo período, a taxa de juros implícita da DBGG, isto é, a média ponderada das taxas da dívida, caiu de 13,4% para 5,8% (ver gráfico). Ora, qual família vê sua dívida subir quase 70%, ao mesmo tempo em que a taxa de juros que incide sobre ela cai mais da metade? Isso acontece porque a trajetória da taxa de juros da dívida é influenciada não pelo tamanho da dívida – como acontece com as famílias – mas sim pela taxa Selic, que é, por sua vez, decidida unicamente pelo próprio governo.
Em segundo lugar, uma parte dos gastos públicos retorna para o governo na forma de impostos. Portanto, também de forma oposta ao que ocorre com as famílias, a receita do governo é função de seu próprio gasto. É exatamente por isso que o governo corta gastos e o déficit aumenta. Quando o governo adota uma política de arrocho fiscal parte relevante da economia se paralisa, reduzindo a arrecadação. Além disso, é revelador como a preocupação com a sustentabilidade da dívida nunca se traduz em maior arrecadação entre os mais ricos. Hoje, o Brasil é o quinto país no mundo que mais perde em impostos não pagos por milionários. Se taxasse adequadamente os super ricos, o país poderia arrecadar cerca de R$ 80 bilhões a mais.
Por fim, mas talvez o mais importante, a dívida pública é uma dívida em reais, uma moeda emitida pelo Estado brasileiro. Como pode o governo ficar insolvente numa moeda que ele mesmo emite? Fica claro, portanto, que a dinâmica da dívida pública é totalmente diferente da de uma dívida privada.
O desemprego como opção política
Nas crises, como a que o país atravessa atualmente, os primeiros e mais duramente atingidos são os trabalhadores. Nesses momentos, os capitalistas cessam os investimentos e a produção. A consequência é o aumento acelerado do desemprego.
Mais do que nunca, é nessa que hora que um governo realmente interessado no bem-estar da população deveria aumentar os gastos públicos para combater a recessão, aumentar o investimento público, incentivar e criar novas estatais, organizar frentes de trabalho, instituir um programa de garantia emprego, etc. Se há trabalhadores desempregados e meios de produção ociosos, o aumento dos gastos públicos deveria ser uma obrigação. Tal como tem uma meta de inflação, o governo deveria ter também uma meta de emprego.
Quando o governo faz um investimento, aqueles setores responsáveis por sua produção entram em atividade. Dessa forma, o nível do gasto público deveria ser ajustado para garantir o pleno emprego dos meios de produção e, principalmente, da força de trabalho.
Evidentemente, uma política fiscal desse tipo enfrentará desafios de ordem econômica e política. No plano econômico, o crescimento do nível de atividade tende a pressionar as importações já que, como país subdesenvolvido, boa parte dos insumos e bens de investimento são importados. Além disso, os capitalistas nacionais convertem parcela de suas riquezas em dólar ou euro e as enviam para o exterior. Esses dois movimentos podem desvalorizar o real e estancar o crescimento. Para evitar esse desfecho, o governo deve avançar, aumentando o planejamento econômico para desenvolver a estrutura produtiva do país, e o controle público sobre o setor externo, com a instituição de controles de capitais, por exemplo.
No entanto, o principal obstáculo é político. A ameaça do desemprego é a oportunidade para os capitalistas cortarem, de uma só vez, os direitos trabalhistas conquistados pela luta de décadas. O desemprego aumenta o poder de barganha dos capitalistas e o medo da demissão reduz o ímpeto de luta da parcela da classe trabalhadora que se mantém empregada. O desemprego tem, assim, uma “função disciplinadora” para o capital.
Há anos, a sociedade brasileira vem sendo chantageada pelo discurso de que “não há dinheiro” para as medidas necessárias ao combate da crise e do desemprego. Entretanto, esse argumento não se sustenta do ponto de vista técnico e é usado politicamente para implementar reformas reacionárias. O desemprego e a estagnação econômica não são o caminho para a recuperação. Pelo contrário, são a prova do desperdício dos recursos nacionais e da ineficiência das “economias de mercado”.
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