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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Opinião | “Precisamos falar de Karli”

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KARLI MORGENTHAU – Personagem da série Falcão e o Soldado Invernal. (Foto: Reprodução)
“A farsa é o anúncio de que amanhã vai ser melhor se mudarmos o necessário sem que se mude o fundamental. Entenda-se que Sam não está falando de um mundo pós-invasão alienígena, mas fala para nós sobre um mundo pós-covid.”
Stefan Chamorro Bonow
Professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul

PORTO ALEGRE (RS) – Numa sexta-feira, 23 de abril de 2021, foi ao ar o último episódio do seriado “Falcão e o Soldado Invernal”, produzido pela Marvel Studios. Na real tudo pertence à marca Disney. A produtora é propriedade dela, que transmite com exclusividade pelo streaming Disney+, um repositório de conteúdo de inúmeras mídias produzidas e que pertencem à marca.

Seria bem interessante tratar do selo/marca/companhia em questão. Apesar de modelar para analisar a etapa atual do capitalismo, apesar da crise de receitas trazidas para ela pela pandemia, não é dela que se deseja tratar por enquanto. Pelo menos, não diretamente.

A série televisiva se propõe a ser uma parte na continuação dos acontecimentos de uma saga de super-heróis apresentada no universo cinematográfico. Durante a apresentação da saga, um vilão extraterrestre acabou eliminando metade da vida do planeta Terra no penúltimo filme da franquia “Vingadores”. Já no último, ao se saírem vencedores o grupo heroico restitui a vida dos bilhões de pessoas que estavam desaparecidas.

A narrativa segue as consequências do retorno integral da população mundial, com novos problemas apresentados sob o ponto de vista dos dois heróis que dão título ao programa. Faz uma mistura de problemas de fundo pessoal com outros de geopolítica em escala global.

A premissa fantasiosa é interessante na medida em que se presta a dar vida à perspectiva absurda e apocalíptica do economista inglês Thomas Malthus. Malthus, severamente criticado e ridicularizado nos escritos de Marx, supunha que chegaria um momento em que a produção de alimentos no planeta seria inviável para satisfazer as necessidades da população mundial. Na sua análise, no futuro o crescimento demográfico superaria em muito a capacidade produtiva, ocasionado fome generalizada. Isso era uma forma de justificar seu liberalismo econômico elitista que pregava a competição a qualquer custo como forma de sucesso, bem como seu preconceito de classe e racial. Acreditava que não se deveria fazer nenhum tipo de caridade e que o Estado jamais deveria cumprir papel de apoio social, pois os desafortunados deveriam ficar à sua própria sorte e desaparecer, se assim a natureza decidisse; o que seria bom para a humanidade. Os desafortunados no caso seriam os trabalhadores desempregados, negros, indígenas, orientais, árabes, entendidos por ele e outros como inferiores. Em diferentes momentos Marx teve oportunidade de, pacientemente, provar o ridículo de suas observações.

O problema do mundo é de destruição desigual, não de produção limitada.

Então, o absurdo da lógica malthusiana conseguiu ser reproduzida através da ficção. A população mundial, de uma só vez, reduzida à metade – literalmente – num estalar de dedos (chamado no universo Marvel de “blip”) e trazida de volta em outro estalar, cinco anos depois. A narrativa toda se passa, agora, portanto, num futuro próximo ao que seria o ano de 2023. Assim, de uma hora para outra, a produção alimentar não teve como atender a demanda de toda população. Junto vieram outras questões, como limites territoriais, direitos de propriedade e cidadania, mencionados em diferentes momentos da trama.

Durante os cinco anos em que a população foi reduzida, o roteiro deixa transparecer a ideia de que as fronteiras internacionais perderam a razão de ser e insinua-se que predominou um espírito de solidariedade universal entre as pessoas. Afinal, famílias, países, trabalhadores, cidadãos sofreram severos impactos que produziram uma onda de camaradagem e consciência.

Quando tudo volta às dimensões anteriores, os países tentam restaurar a velha ordem. Para isso são criados programas de realocação de pessoas, campos de refugiados com pessoas que são retiradas para a reintegração dos sobreviventes que reapareceram. Há um processo visível de intensificação da burocracia e militarização que trazem de volta uma impessoalidade nas relações.

É nesse futuro que surge um grupo intitulado de “apátridas” que busca restaurar a solidariedade, através da auto-organização dos indivíduos. Os líderes do movimento eram refugiados que se tornaram vítimas de experimentos patrocinados por um negociante que desejava criar uma fórmula de super-força, para que fosse vendida a quem pagasse. Apesar dos líderes do movimento possuírem uma força sobre-humana que os permitia enfrentar forças muitas vezes maiores em número, eles foram desenvolvendo uma relação de empatia com pessoas comuns de todo o mundo. Surgindo daí uma rede internacional de solidariedade, movida pela empatia e pela aceitação das ideias compartilhadas. O grupo é composto por pessoas comuns, na maioria, que fazem o que está ao alcance de suas condições, dispostas a desafiar os governos mundiais.

A partir daí surgem vários clichês para minimizar o impacto do grupo. Na maioria os integrantes são muito jovens, o que expõe o interesse de retirar maturidade e profundidade do movimento através da noção de impulsividade. Apesar de pessoas de várias idades e etnias estarem envolvidas, é por isso que a liderança do movimento está nas mãos de uma jovem que passou dificuldade e teve de ver as pessoas de quem gostava morrer – Karli Morgenthaun – para assim deslegitimar o movimento como se fosse fruto de rancor e instabilidade psicológica. 

Os apátridas são continuamente referenciados como grupo terrorista e perseguidos por forças especiais submetidas a alguma coisa que lembra a ONU. Ocorre isso por eles fazerem confrontação direta às forças oficiais, ocasionando mortes no processo. Existe uma ironia na medida em que ao denunciar a exploração de que as pessoas são vítimas e provocar mortes como decorrência da luta eles são enquadrados nos rótulos de terroristas e anarquistas, como se estivesse dada a possibilidade de obter as transformações mediante modos mais polidos ou educados. No entanto, aos soldados do outro lado, mediante uso de profissionais da morte que cumprem missões ordenadas, toda a compreensão e humanidade são concedidas. Mesmo que mortes de outras tantas pessoas ocorram no processo de condução do mundo à normalidade necessária.

Uma subtrama é passagem do título de Capitão América de um soldado para outro. Ironicamente, o Capitão América original dos quadrinhos e dos filmes (branco, loiro e de olhos claros) surge durante a Segunda Guerra Mundial, representando um Estados Unidos que vinha se recuperando da crise mundial de 1929 e que se encontrava na lógica da construção de um Estado de Bem-Estar Social para abranger a classe operária branca. Fazendo assim com que ela não caísse na tentação de sucumbir às influências de movimento comunista e revolucionário, simbolizado pela URSS. Esse é o contexto do personagem criado em 1941. De certa forma, o herói nasceu para representar a esperança de dias melhores, resultado de uma Nova Política (um New Deal) que era uma mistura de ideias reformistas social-democratas, um eterno mudar não mudando. O novo Capitão América – o da série – é um afro-americano cujo papel encarna a identidade de todos os negros do país, que nunca obtiveram as mesmas condições de vida e oportunidades da classe operária branca. Em tempo de Black Lives Matter, o propósito é mostrar que agora as coisas vão mudar através da consciência social que traz consigo reflexão, garantia de direitos, mas que dispensa transformação social, alteração no direito de propriedade e de organização do trabalho.

São essas incongruências que Karli continuamente é obrigada a apontar exaustivamente ao longo dos seis episódios. Ao ter de argumentar contra um homem negro ponderado, mas militar de formação, alçado à condição de herói e símbolo da esperança, o ideal de mundo em transformação de Karli acaba constantemente deslegitimado. Vem bem ao encontro daquilo que entendemos como propósito do identitarismo. Trata-se de usar as pautas legítimas, fundamentais e justas que dizem respeito à mulher, ao negro, à discussão de gênero e do oprimido em geral para servir de negação da transformação do todo, em nome da defesa exclusiva do particular. Como se todas elas fossem opostas ao do comunismo.

Não tocando nesse assunto é que a série se entrega. Cai na contradição ao não conseguir explicar como pessoas de países pobres e ricos, subempregados e trabalhadores bem remunerados, brancos, negros, orientais jovens e adultos, unem-se em torno de uma causa que sobrevive ao ponto de exigir que muitas forças, Estados e pessoas superpoderosas se unam para derrotá-la. Apela à simplificação tosca e ao uso de imagens apelativas para não ter de usar a palavra comunismo como elemento de sustentação do que se está enfrentando.

Tanto é assim que basta ver como todos os envolvidos acabam no final. Os supostos bonzinhos que escrevem o roteiro, bem como os mocinhos da trama, não só não permitem que se diga o nome das coisas pelo que elas são como não deixam seus representantes saírem intactos. Acabam todos mortos. Inconscientemente, talvez, aparece o que pensam as pessoas que expressam o que o sistema é.

No final, o novo Capitão América cumpre o papel de emulador de um New Deal dos tempos modernos. Steve Rogers (o primeiro capitão) foi o personagem de uma tragédia que aconteceu, tendo vivido e lutado na Segunda Guerra Mundial. Agora, sucedido por Sam Wilson (seu sucessor) que se repete como farsa. A farsa é o anúncio de que amanhã vai ser melhor se mudarmos o necessário sem que se mude o fundamental. Entenda-se que Sam não está falando de um mundo pós-invasão alienígena, mas fala para nós sobre um mundo pós-COVID.

O discurso feito é idêntico ao expresso atualmente pelos intelectuais representantes do Fórum Econômico Mundial. Essa confraria de políticos superpoderosos e de superempresas, cuja entrada é só por convite, agora trabalha com o conceito de Great Reset (Grande Reinicialização). Qualquer semelhança com o “blip”, talvez não seja mera coincidência. Assim como não deve ser coincidência que Sam Wilson faça o discurso redentor que fala de um capitalismo humanitário e responsável em relação às pessoas, um capitalismo verde, de tecnologias de ponta da 4ª Revolução Industrial, um capitalismo de menos lucro e mais responsabilidade social. Ou seja, emula uma social-democracia, que ocorreu como resultado da tragédia no pós-guerra para servir de base da propaganda anticomunista, e que agora se repete como farsa ao pretender salvar o mundo da maior recessão enfrentada desde a crise de 1929 e que tem deixado centenas de milhões de pessoas desempregadas. Um mundo com mais Karli (nome interessante) e menos heróis! Por mais do que um simples reset!

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