Artigo publicado no jornal “O Proletário” em 26 de maio de 1909, ou seja, antes da revolução russa. O artigo pode ser encontrado nas obras completas de Lênin, volume 15.
Vladimir Lênin
Tradução: Thales Caramante
MOSCOU (RÚSSIA) – O discurso do deputado Surkov na Duma durante o debate sobre o orçamento para o sínodo e a discussão que surgiu dentro do nosso grupo na Duma quando debatemos o rascunho desse discurso (ambos impressos nesta edição) levantaram um assunto de extrema importância e urgência neste momento. Um interesse em tudo que se conecta com a religião está, sem dúvidas, sendo apreciado em diversos círculos da “sociedade” e penetrou também as fileiras de intelectuais próximos ao movimento proletário, bem como em círculos de trabalhadores. É um dever absoluto dos social-democratas fazer uma declaração pública de sua postura para com a religião.
A social-democracia baseia toda sua visão de mundo no socialismo científico, isto é, no marxismo. A base filosófica do marxismo, como Marx e Engels declararam repetidamente, é o materialismo dialético, que absorveu totalmente as tradições históricas do materialismo no século 18 na França e de Feuerbach (primeira metade do século 19) na Alemanha – um materialismo absolutamente ateu e positivamente hostil a todas as religiões. Lembremos que todo o livro de Engels, Anti-Dühring, que Marx leu ainda em manuscrito, é uma grande acusação a um materialista ateu, Karl Dühring, por não ser um materialista consistente, por deixar diversas brechas para a religião e a filosofia religiosa. Lembremos também que em seu ensaio sobre Ludwig Feuerbach, Engels reprova Feuerbach por combater a religião não como o objetivo de destruí-la, mas para renová-la, para inventar uma nova religião, uma religião “consagrada” etc. A religião é o ópio do povo – essa afirmação de Marx é a pedra angular de toda a visão Marxista sobre a religião. O marxismo sempre considerou todas as religiões modernas e igrejas, cada uma das organizações religiosas, como instrumentos da reação burguesa, que servem para defender a exploração e confundir a classe trabalhadora.
Ao mesmo tempo, Engels frequentemente condenava os esforços de alguns indivíduos que queriam estar “mais à esquerda”, ou serem “mais revolucionários” que os social-democratas, que tinham a iniciativa de introduzir no programa do partido uma proclamação explícita do ateísmo, no sentido de declarar guerra à religião. Comentando, em 1874, sobre o famoso manifesto dos Comunados fugitivos blanquistas que viviam em exílio na cidade de Londres, Engels fez uma proclamação vociferante declarando que a guerra a religião era uma estupidez, e afirmou que tal manifesto de guerra era a melhor maneira de reviver o interesse pela religião, evitando seu desaparecimento. Engels atribuiu aos blanquistas a incapacidade de compreender que somente a luta de classes das massas trabalhadoras poderia atrair de forma mais abrangente as camadas mais amplas do proletariado para uma prática social consciente e revolucionária, meio realmente capaz de libertar o povo oprimido do jugo da religião, enquanto que proclamar que a guerra contra a religião é uma tarefa política do partido dos trabalhadores é apenas uma fraseologia anarquista. E em 1877, também em Anti-Dühring, enquanto atacava impiedosamente as menores concessões de princípios feitas por Dühring ao idealismo e à religião, Engels, não menos resolutamente, condena a ideia pseudorrevolucionária de Dühring de que a religião deveria ser proibida na sociedade socialista. Declarar tal guerra à religião, diz Engels, é ser “Bismarck-sem-Bismarck”, ou seja, repetir a loucura da luta de Bismarck contra a comunidade clerical – a notória Kulturkampf (luta cultural), ou seja, a luta que Bismarck travou na década de 1870 contra o Partido Católico Alemão através de uma perseguição policial ao catolicismo. Com esta luta, Bismarck apenas estimulou o aprofundamento do clericalismo militante entre os católicos, apenas prejudicou o desenvolvimento do trabalho cultural real, porque deu destaque às divisões religiosas em vez das divisões políticas, desviou atenção de alguns setores da classe trabalhadora e de setores democráticos para as tarefas urgentes da luta de classes e desviou a luta revolucionária para o mais superficial e falso anticlericalismo burguês. Criticando o “ultrarrevolucionário” Dühring por querer repetir as loucuras de Bismarck de outra forma, Engels insistiu que o partido dos trabalhadores deveria ter a capacidade de pacientemente trabalhar na tarefa de organizar e educar o proletariado e que isso, inevitavelmente, levaria à morte da religião, que o partido não deveria se jogar na aposta de uma guerra à religião. Esta visão tornou-se parte da própria essência da social-democracia alemã que, por exemplo, defendeu a liberdade dos jesuítas, sua admissão na Alemanha, e o abandono completo da perseguição policial como combate a qualquer religião em particular. “A religião é um assunto privado”: este célebre ponto do Programa de Erfurt (1891) resume a tática política da social-democracia nesta questão.
Essas táticas agora se tornaram questão de rotina; e assim deram origem a uma nova distorção do marxismo na direção oposta, na direção do oportunismo. Este ponto do Programa de Erfurt passou a ser interpretado no sentido de que nós, social-democratas, o nosso partido, consideramos a religião um assunto privado para nós enquanto Social-democratas, para nós enquanto partido. Sem entrar em polêmica direta com esta visão oportunista, Engels, nos anos de 1890, considerou necessário opor-se resolutamente de forma positiva e não-polêmica. A saber: Engels o fez na forma de uma declaração, onde sublinhou deliberadamente que os social-democratas consideram a religião um assunto privado em relação ao Estado, mas não em relação a nós, não em relação ao Marxismo, e não em relação ao partido dos trabalhadores.
Esta é a história externa das declarações de Marx e Engels sobre a questão da religião. Para indivíduos com uma atitude descuidada em relação ao marxismo, para pessoas que não podem ou não querem pensar, essa história é uma novela de contradições e hesitações marxistas sem sentido, uma miscelânea de “ateísmo consistente” e “respingos à religião”; e oscilações “sem princípios” entre uma guerra revolucionária contra Deus e um desejo covarde de “representar” os trabalhadores religiosos, um medo de assustá-los etc. A literatura traficada dos anarquistas parafraseia muitos ataques ao marxismo neste sentido.
Qualquer pessoa que seja capaz de tratar o marxismo seriamente, de refletir sobre seus princípios filosóficos e sobre a experiência da social-democracia internacional, verá prontamente que as táticas marxistas em relação à religião são totalmente consistentes e foram cuidadosamente pensadas por Marx e Engels; e o que os diletantes ignorantes consideram “vacilante” é apenas uma dedução direta e inevitável do materialismo dialético. Seria um erro profundo pensar que a aparente “moderação” do marxismo em relação à religião se deve a supostas considerações “táticas”, o desejo de “não assustar ninguém” e assim por diante. Pelo contrário, também nesta questão a linha política do marxismo está inseparavelmente ligada aos seus princípios filosóficos.
O marxismo é materialismo. Como tal, é tão implacavelmente hostil à religião quanto foi o materialismo dos enciclopedistas do século 18 ou o materialismo de Feuerbach. Isto está fora de dúvida. Mas o materialismo dialético de Marx e Engels vai além dos enciclopedistas e de Feuerbach, pois aplica a filosofia materialista ao domínio da história, ao domínio das ciências sociais. Devemos combater a religião – esse é o ABC de todo o materialismo e, consequentemente, do marxismo. Mas o marxismo não é um materialismo que parou no ABC. O marxismo vai mais longe. Dizemos: devemos saber combater a religião e, para isso, devemos explicar a fonte da fé e da religião entre as massas de uma forma materialista. O combate à religião não pode ser confinado a uma pregação ideológica abstrata, e não deve ser reduzido a tal pregação. Deve estar ligada à prática concreta do movimento de classe, que visa eliminar as raízes sociais da religião. Por que a religião mantém seu domínio sobre os setores atrasados do proletariado urbano sobre os amplos setores semiproletários e sobre a vasta massa de camponeses? Por causa da ignorância do povo, responde o progressista, o radical ou o materialista burguês. Assim: “abaixo a religião e viva o ateísmo; a disseminação de pontos de vista ateus é nossa principal tarefa!”. O marxista diz que isto é incorreto, que é uma visão superficial, a visão dos estreitos patamares burgueses. Esse ponto de vista não explica as raízes mais profundas da religião suficientemente; explica não de uma forma materialista, e sim de uma maneira idealista. Nos países capitalistas modernos essas raízes são estritamente sociais. A raiz mais profunda da religião hoje é a condição socialmente oprimida da classe trabalhadora e seu desamparo aparentemente completo diante das forças cegas do capitalismo, que a cada dia e a cada hora inflige aos trabalhadores comuns o mais horrível sofrimento e o mais selvagem tormento, mil vezes mais severo do que aqueles infligidos por eventos extraordinários, como guerras, terremotos… “o medo produz deuses”. O medo da força cega do capital – cega porque não pode ser prevista pelas massas populares – uma força que, a cada passo na vida do proletário e do pequeno proprietário, ameaça infligir, e inflige de forma “repentina e inesperada a ruína acidental”, a destruição, pauperismo, miséria, prostituição, morte por fome – tal é a raiz da religião moderna que o materialista deve ter em mente em primeiro lugar, se não quiser permanecer um materialista da creche. Nenhum livro educacional pode erradicar a religião das mentes das massas que são esmagadas pelo trabalho duro no capitalismo, e que estão à mercê das forças destrutivas cegas desse sistema, até que as próprias massas aprendam a lutar contra a raiz da religião, lutar contra o domínio do capital em todas as suas formas, de forma unida, organizada, planejada e consciente.
Isso significa que os livros contra religião são prejudiciais e desnecessários? Não, absolutamente não. Significa que a propaganda ateísta da social-democracia deve ser subordinada a sua tarefa básica – o desenvolvimento da luta de classes entre as massas exploradas contra seus exploradores.
Isso funciona através da subordinação à luta de classes, à luta por objetivos práticos e definidos na economia no campo político da propaganda ideológica, da pregação de ideais definidos, da luta contra o inimigo da cultura e do progresso, que persiste por milhares de anos, isto é, a religião?
Essa linha pode não ser compreendida (ou pelo menos não imediatamente compreendida) por quem não ponderou sobre os princípios do materialismo dialético, ou seja, a filosofia de Marx e Engels. Como é que isso funciona? – alguns podem perguntar. É através da propaganda ideológica, da pregação de ideias definidas, da luta contra aquele inimigo da cultura e do progresso que persistiu durante milhares de anos (ou seja, a religião) para ser subordinado à luta de classes, e a luta por objetivos práticos definidos no campo econômico e político?
Essa é uma daquelas objeções atuais ao marxismo que acabam com uma completa incompreensão da dialética marxista. A contradição, que deixa perplexos os objetores, é uma contradição na vida real, ou seja, uma contradição dialética, não uma contradição verbal ou inventada. Estabelecer uma linha direta entre a propaganda teórica do ateísmo, isto é, a destruição das crenças religiosas entre certas camadas do proletariado, e o sucesso da luta de classes é raciocinar de forma não-dialética; isso acaba por transformar uma linha tênue em uma fronteira absoluta, é desconectar à força o que está indissoluvelmente conectado na vida real. Por exemplo: o proletariado em uma região particular, em uma fábrica particular, está dividido, diremos, em uma seção avançada, com trabalhadores social-democratas com consciência de classe, isto os faz, claro, ateus; do outro lado, temos trabalhadores não tão avançados, que ainda estão conectados com costumes do campesinato, esses acreditam em Deus, vão à igreja, e estão, ainda por cima, sob influência direta de um padre local – que, vamos supor, é organizado em um sindicato católico. Vamos assumir, ainda mais, que diante da luta econômica nessa localização há uma greve. É dever de um marxista colocar o sucesso do movimento grevista acima de qualquer coisa, vigorosamente se opor a qualquer espécie de divisão dos trabalhadores entre ateus e cristãos. A propaganda ateísta, neste caso, pode ser desnecessária e até mesmo nociva – não pelo medo filisteu de afastar as camadas mais atrasadas, de perder uma cadeira nas eleições, assim por diante, mas sim pela consideração do progresso real da luta de classes, que nas condições da sociedade capitalista moderna converterá os operários cristãos à social-democracia, ao ateísmo mil vezes melhor que uma propaganda ateísta vazia. Fazer agitação ateísta neste momento, e em tais circunstâncias, seria apenas andar de mãos dadas com os padres, que desejam apenas a divisão dos trabalhadores grevistas, os sacerdotes querem substituir essa unidade de movimento para a divisão de fé, entre aqueles que não acreditam em Deus e aqueles que acreditam. Um anarquista que pregasse a guerra contra Deus a todo custo está, na verdade, ajudando os padres e a burguesia (como os anarquistas sempre ajudam a burguesia na prática). Um marxista deve ser um materialista, isto é, um inimigo da religião, mas deve ser um materialista dialético, aquele que trata a luta contra a religião não de forma abstrata, não com base em prédicas remotas, puramente teóricas, nunca variadas, mas em uma forma concreta, com base na luta de classes que está acontecendo na prática, na luta que está educando as massas mais e melhor do que qualquer pregação poderia educar. O marxista deve ser capaz de ver a situação concreta como um todo, deve sempre ser capaz de encontrar a fronteira entre o anarquismo e o oportunismo – lembremos que essa fronteira é relativa, mutável e desafiadora, mas existe. Não devemos sucumbir ao abstrato, nem a um “revolucionarismo” vazio e puramente verbal do anarquista, nem ao filistinismo oportunista do pequeno-burguês, ou do intelectual liberal que se espanta na luta contra a religião, que esquece que isso é seu dever, que se reconcilia com a fé em Deus, e é guiado não pelos interesses da luta de classes, mas pela consideração mesquinha e vergonhosa que não ofende, repreende e não assusta ninguém – o famoso ditado: “viva e deixe viver”.
É dessa forma que todas as questões secundárias em relação à atitude dos social-democratas em relação à religião devem ser tratadas. Há outras questões também que surgem, como por exemplo: um padre pode ser membro do Partido Operário Social-Democrata ou não? Essa questão é, geralmente, respondida com uma afirmação inequívoca, sendo a experiência de outros partidos social-democratas da Europa citados como prova final. Mas essa experiência foi resultado não só da aplicação da doutrina marxista ao movimento operário, mas também das condições históricas especiais da Europa Ocidental que são ausentes na Rússia (falaremos disso mais adiante), de modo que uma resposta afirmativa não justificada com ressalvas está incorreta. Não se pode afirmar de uma vez por todas que padres não podem ser membros do Partido Social-Democrata; mas também não pode ser estabelecida a regra inversa. Se um padre vem a nós para participar de nosso trabalho político comum, se cumpre com consciência as funções do Partido, se não se opõe ao programa do Partido, este está autorizado a juntar-se às fileiras dos social-democratas; pois a contradição entre o espírito e os princípios de nosso programa e as convicções religiosas do padre seriam, em tais circunstâncias, algo que diz respeito somente a ele e sua própria contradição privada; e uma organização política não pode colocar para seus membros um exame para ver se não há contradição entre suas visões e o programa do partido. Entretanto, é claro, tal caso pode ser uma rara exceção, até mesmo na Europa ocidental, e uma completa improbabilidade na Rússia. E se, por exemplo, um padre se filiasse ao Partido Social-Democrata e buscasse fazer do partido um palanque para suas pregações religiosas, nossa organização teria, sem dúvidas, de expulsá-lo. Devemos não apenas admitir trabalhadores que acreditam em Deus no Partido Social-Democrata, mas devemos deliberadamente procurar recrutá-los; opomo-nos totalmente a ofender as suas convicções religiosas, mas que fique claro que os recrutamos para educá-los no espírito do nosso programa e jamais permitiremos uma luta ativa contra este programa. Nós permitimos a liberdade de opinião dentro do Partido, mas até certos limites determinados pela liberdade de filiação; não somos obrigados a andar de mãos dadas com pregadores ativos de pontos de vista que são repudiados pela maioria do partido.
Outro exemplo: devem ser repreendidos ou censurados os membros do Partido Operário Social-Democrata da mesma forma e em todas as circunstâncias quando declaram “o socialismo é minha religião” e por defenderem pontos de vista em conformidade com esta declaração? Não, o desvio do marxismo (e, consequentemente, do socialismo) é aqui indiscutível; mas o significado do desvio, sua importância relativa, por assim dizer, podem variar com as circunstâncias. Uma coisa é quando um agitador nosso se dirige aos trabalhadores dessa forma para ser melhor entendido, como uma introdução às massas a um assunto, para apresentar seus pontos de vista mais vividamente em termos aos quais as massas atrasadas estão mais acostumadas. Outra coisa é quando um escritor propagandista começa a pregar a “construção de deuses”, ou a construção de deuses socialistas (assim como faz Lunacharsky e companhia). Enquanto que, no primeiro caso, a repreensão seria mera censura, restrição inadequada da liberdade do agitador, de sua liberdade de escolha dos métodos “didáticos e pedagógicos”, no segundo caso a censura partidária é necessária e essencial. Para alguns, a declaração “socialismo é uma religião” é uma forma de transição da religião para o socialismo; para outros, é uma forma de transição do socialismo à religião.
Passemos agora às condições que, no ocidente, deram origem à interpretação oportunista da tese: “a religião é um assunto privado”. Claro, uma influência contribuidora são os mesmos fatores gerais que deram, também, origem ao oportunismo como um todo, como sacrificar os interesses fundamentais do movimento da classe operária em prol do pragmatismo das vantagens momentâneas. O partido do proletariado exige que o Estado declare a religião como um assunto privado, mas não considera jamais a luta contra o ópio do povo, a luta contra as superstições religiosas como um “assunto privado”. Os oportunistas distorceram a questão para fazer entender que o Partido Operário Social-Democrata respeita a religião como um assunto privado!
Porém, indo além da distorção oportunista usual – que não ficou clara na discussão na célula de nossos camaradas da Duma quando estavam considerando os pontos do discurso sobre a religião –, existem condições históricas especiais que deram origem à atual excessiva indiferença de parte dos social-democratas europeus pela questão da religião. Essas condições são de natureza dupla. Em primeiro lugar, a tarefa de combater a religião é historicamente da burguesia revolucionária, no ocidente essa tarefa foi em grande parte realizada (ou adiantada) pela democracia burguesa, na época de suas revoluções em contraposição ao medievalismo do feudalismo. Tanto na França quanto na Alemanha, há uma tradição de guerra burguesa contra a religião, e ela começou muito antes do socialismo, ela advém dos enciclopedistas do século 18 e Feuerbach. Na Rússia, devido às condições de nossa revolução democrático-burguesa, essa tarefa também recai quase que inteiramente sobre os ombros da classe operária. Os narodnik (pequeno-burguesia democrática e populista) em nosso país não fez muito a esse respeito (ao contrário do que pensam os Chernosotennyye Kadety e os Vekhi[1]), mas muito pouco, em comparação com oque tem sido feito na Europa.
Por outro lado, a tradição da guerra burguesa contra a religião deu origem, na Europa, a uma distorção especificamente burguesa desta guerra pelo anarquismo – que, como os marxistas há muito explicaram repetidamente, se posiciona junto a visão de mundo burguesa, apesar de todos os “furiosos” ataques à burguesia. Os anarquistas e blanquistas nos países latinos[2], Most – antigo aluno e pupilo de Dühring – e sua laia na Alemanha, os anarquistas na Áustria nos anos 1880, todos levaram a cabo uma fraseologia revolucionária de luta contra a religião nec plus ultra[3]. Não é surpreendente que, em comparação aos anarquistas, os social-democratas europeus agora vão ao outro extremo. Isso é perfeitamente compreensível e até, de certo modo, legítimo, mas seria errado para nós, social-democratas russos, esquecer as condições históricas especiais do ocidente.
Em segundo lugar, no ocidente, depois que as revoluções nacionais burguesas terminaram, depois que a liberdade religiosa mais ou menos fora introduzida, o problema da luta democrática contra a religião foi empurrado historicamente para manter a democracia burguesa contra o socialismo. Os governos burgueses tentaram deliberadamente desviar a atenção das massas do socialismo, organizando uma “ofensiva” quase liberal contra o clericalismo. Esse era o personagem do Kulturkampf na Alemanha e da luta dos Republicanos burgueses contra o clericalismo na França. O anticlericalismo burguês, como forma de desviar o socialismo da atenção das massas operárias, é o que precedeu à difusão do espírito moderno de “indiferença” na luta contra a religião entre os social-democratas no ocidente. Isso também é perfeitamente compreensível e legítimo, porque os social-democratas tiveram que se opor ao anticlericalismo burguês de Bismarck ao subordinar a luta contra a religião à luta pelo socialismo.
Na Rússia, as condições são bem diferentes. O proletariado é o líder da nossa revolução democrático-burguesa. Seu partido deve ser o líder ideológico na luta contra todos os atributos do medievalismo, incluindo a velha religião oficial e todas as tentativas de restaurá-la, ou sua apresentação em nova forma. Portanto, enquanto Engels foi comparativamente brando ao corrigir o oportunismo dos social-democratas alemães que substituíram, pela exigência do partido operário de que o Estado declarasse a religião um assunto privado, a declaração de que a religião é um assunto privado dos próprios social-democratas em relação ao Partido Social-Democrata, é claro que a importação desta distorção alemã pelos oportunistas russos teria merecido uma repreensão cem vezes mais severa de Engels.
Ao declarar, na tribuna da Duma, que a religião é o ópio do povo, o nosso grupo da Duma agiu com toda a razão e, assim, criou um precedente que deveria servir de base a todas as declarações dos social-democratas russos sobre a questão da religião. Eles deveriam ter ido mais longe e desenvolvido o argumento ateísta com mais detalhes? Achamos que não. Isto poderia ter trazido o risco de o partido exagerar na luta contra a religião; poderia ter resultado na obliteração da distinção entre a luta burguesa e a luta socialista contra a religião. O primeiro dever da célula social-democrata na Duma foi cumprido com honra.
O segundo acerto – e talvez o mais importante para os social-democratas – foi o de saber explicar o papel de classe da igreja e do clero no apoio ao governo Tchernosotentsi (centúrias negras) e da burguesia em sua luta contra a classe trabalhadora, esse acerto também foi cumprido com honra. Claro, muito mais poderia ter sido dito sobre este assunto, e os social-democratas em suas futuras declarações saberão como amplificar o discurso do camarada Surkov; ainda sim, foi um discurso excelente e devemos organizar uma circular com ele para todas as organizações e células do Partido, essa é nossa tarefa direta para agora.
Nossa terceira tarefa é explicar detalhadamente o sentido correto dessas proposições, tantas vezes distorcidas pelos oportunistas alemães, de que “a religião é um assunto privado”. Infelizmente, o camarada Surkov não cumpriu essa tarefa em seu discurso. É um tanto lamentável, porque na atividade anterior de nossa célula na Duma esse mesmo erro foi cometido sobre essa questão pelo camarada Belousov e foi corrigido, na ocasião, no jornal O Proletário. A discussão no grupo da Duma mostra que a disputa sobre o ateísmo afastou dele a questão da interpretação adequada da célebre exigência de que a religião fosse proclamada assunto privado. Não culparemos o camarada Surkov sozinho por esse erro de todo o grupo da Duma. Mais: devemos admitir francamente que o partido está em falta aqui, por não ter elucidado suficientemente essa questão e não ter preparado suficientemente as mentes dos social-democratas para compreender a afirmação de Engels dirigida aos oportunistas alemães. A discussão na célula da Duma mostra que houve, de fato, uma compreensão confusa da questão, mas jamais houve intenção de ignorar os ensinamentos de Marx. Temos certeza que o erro será corrigido em futuras declarações do grupo.
Repetimos que, em geral, o discurso do camarada Surkov foi excelente e deve ser divulgado entre todas as nossas organizações e células. Na execução deste discurso, a célula do nosso partido na Duma demonstrou que cumpre com consciência o seu dever social-democrata. Resta expressar o desejo de que relatório sobre as discussões dentro do nosso coletivo na Duma apareçam com mais frequência na imprensa do Partido, de modo a aproximar a célula e o Partido, para familiarizar o Partido com o difícil trabalho que está sendo feito dentro da Duma, e para estabelecer a maior unidade ideológica entre o trabalho do Partido e a célula na Duma.
[1]. [N.T] Representante da burguesia liberal contrarrevolucionária;
[2]. [N.T] Lênin está falando da “Europa Latina”, ou seja, países europeus onde são faladas línguas românticas, isto é, línguas de origem latina, ou latim. Assim, Portugal, Espanha, França, Suíça, Itália e Romênia.
[3]. [N.T] “Nec Plus Ultra” pode ser lido como “O que há de melhor”.