O agronegócio é a versão moderna do latifúndio colonial. Completamente integrado ao mercado internacional, o agronegócio funciona como um enclave produtivo no território nacional. Como tal, tem pouco ou nenhum interesse com o abastecimento e o desenvolvimento do país. Enquanto este for o modelo dominante do campo, o aumento dos preços dos alimentos em meio ao crescimento do setor agropecuário não será uma contradição. Ao contrário, é o resultado esperado.
Beto Silva
Rio de Janeiro
BRASIL – Segundo os dados mais recentes, o Brasil tem quase 28 milhões de pessoas desempregadas ou subempregadas. Essa gravíssima crise é causada não apenas pela pandemia da Covid-19, mas também, e principalmente, pela ininterrupta sabotagem que o governo Bolsonaro pratica contra a economia e a saúde pública. Além do desemprego, o aumento dos preços, especialmente dos alimentos, tem tornado as condições de vida dos trabalhadores ainda mais difícil.
Considerando a inflação acumulada em 12 meses, o preço do arroz aumentou 46,2% e das carnes 38,2%. No agregado, a alimentação no domicílio ficou 15,3% mais cara (IPCA/IBGE – junho/21). No Brasil de Bolsonaro e Paulo Guedes, pais e mães de família têm que enfrentar fila de madrugada para conseguir doação de ossos de boi descartados por açougues.
Por outro lado, o agronegócio não poupa dinheiro para anunciar nos mais caros meios de comunicação a expansão do setor. De fato, o PIB da agropecuária cresceu 16,2% em termos reais entre 2014 e 2020, enquanto os setores industrial e de serviços reduziram 12,7% e 5,0%, respectivamente.
Mas, como pode a agropecuária crescer tanto e, ao mesmo tempo, o preço dos alimentos disparar? Para entender essa aparente contradição é fundamental analisar a estrutura produtiva do campo, caracterizada pelo domínio do chamado agronegócio.
Para exportação, crescimento acelerado. Para o mercado doméstico, escassez
Se olharmos de forma desagregada a produção agrícola nacional, veremos que o crescimento do setor como um todo esconde profundas desigualdades. Enquanto a produção de soja, produto exportável, foi, em 2020, 39,4% maior que em 2014, a produção de arroz e feijão, produtos básicos da dieta brasileira, reduziu em 12,3% e 14,8% no mesmo período (Levantamento Sistemático da Produção Agrícola – LSPA/IBGE). O Gráfico I mostra que essa disparidade não é ocasional, mas uma tendência que se mantém ao longo do período. Ou seja, trata-se de uma política que ignora o abastecimento do país.
Além das distorções no volume produzido, o domínio do agronegócio condiciona também os preços praticados. Como a produção é voltada para a exportação, os preços de referência são sempre os preços internacionais, em dólares. Isso significa que o mercado doméstico tem que pagar, pelo menos, tanto quanto paga o mercado internacional. Afinal, por que o agronegócio venderia mais barato no Brasil se pode vender mais caro no exterior? Nos períodos de desvalorização cambial a situação fica ainda pior porque aumenta, em reais, esse preço de referência.
Como consequência, o agronegócio aumenta a parcela da produção exportada e eleva o preço doméstico para igualá-lo ao preço recebido pela venda no exterior. Por exemplo, a exportação de carne bovina, que, entre 2014 e 2018, foi de 19,1% do total da produção nacional, saltou para 22,7% em 2019 e para 25,1% em 2020, número que deve ser repetido em 2021 (Gráfico II).
Destaca-se também que os produtos do agronegócio brasileiro são commodities, isto é, produtos padronizados e negociados em bolsas de valores internacionais. Ou seja, são equiparados a ativos financeiros e estão sujeitos aos ciclos de liquidez e à volatilidade típicos desses mercados, frequentemente descolados da economia real. Trata-se, portanto, de um modelo de produção de caráter dependente e associado ao capital financeiro global.
O agronegócio não gera empregos nem desenvolvimento
Segundo o Censo Agropecuário de 2017 (último realizado), havia naquele ano 15,1 milhões de trabalhadores empregados no setor agropecuário. O agronegócio, apesar de ocupar 77% da área de todos os estabelecimentos agropecuários do país, emprega apenas 33% dos trabalhadores do setor. A grande maioria, 67%, são empregos gerados pela agricultura familiar.
Além de criar poucos postos de trabalho, o agronegócio limita o crescimento de outros setores. A política agrícola imposta pelo agronegócio, na prática, dolariza os produtos do campo. Como esses produtos têm grande peso na cesta de consumo dos trabalhadores, há maior comprometimento da renda e consequente enfraquecimento do mercado nacional. A estratégia clássica de dinamização de economias subdesenvolvidas a partir do uso planejado de excedentes do campo é asfixiada pelo modelo produtivo do agronegócio.
O agronegócio é a versão moderna do latifúndio colonial. À tradicional monocultura exportadora com brutal exploração da força de trabalho e uso predatório do meio ambiente, o agronegócio acrescentou o uso intensivo de tecnologia, mecanização e agrotóxicos. Completamente integrado ao mercado internacional, o agronegócio funciona como um enclave produtivo no território nacional. Como tal, tem pouco ou nenhum interesse com o abastecimento e o desenvolvimento do país. Os preços, as técnicas utilizadas, o destino da produção, a logística de comercialização e os produtos cultivados são todos definidos a partir do exterior, submetidos à forma de valorização do capital financeiro. Enquanto este for o modelo dominante do campo, o aumento dos preços dos alimentos em meio ao crescimento do setor agropecuário não será uma contradição. Ao contrário, é o resultado esperado.