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sábado, 27 de abril de 2024

110 anos de Carolina de Jesus e a luta do povo brasileiro contra a miséria e a exploração

Neste 14 de março, é comemorado os 110 anos de Carolina Maria de Jesus. Uma escritora negra potente da literatura contemporânea brasileira. A escrita de Carolina se faz presente e necessária para entendermos a luta de classes do nosso país. Portanto, conhecer sua trajetória e ler suas obras não é só importante, mas também um exercício de conhecimento, reconhecimento e afirmação do legado de Maria de Jesus.

Isabelle dos Santos Ferreira | Goiânia* 


CULTURA – Carolina Maria De Jesus (1914-1977), uma das mais importantes escritoras contemporâneas do cenário brasileiro, completa 110 anos no dia 14 de março deste ano. 110 anos de uma escrita impactante e de uma mentalidade crítica reprimida pela burguesia brasileira, que capitalizou sua intelectualidade e usou de suas obras para seu enriquecimento.

Nestes 110 anos de Carolina, frisamos que sua trajetória não se limita apenas à miséria, e que esta não acabou quando seu livro foi lançado. Ao contrário do discurso meritocrático e desonesto que uma certa elite intelectual, Jesus não foi “descoberta” por um jornalista que estudava Canindé para uma matéria, assim a entregando a chance de lançar sua principal obra e ser mais uma “negra que venceu na vida”. Carolina de Jesus teve sua mão de obra (física e mental) exploradas até o fim de sua vida e nunca recebeu o devido mérito e respeito por suas contribuições e potencial para o cenário literário e educacional brasileiro.

O discurso da burguesia diminui apenas ao que os olhos da branquitude burguesa viram em Carolina e querem que ela seja a partir de seus interesses, a tornando mero objeto de estudo e análise de outros intelectuais acadêmicos brancos. 

Carolina vivenciou as contradições de classes de forma aguda e por diferentes meios, não só isso, suas escritas e discursos expõem e decorrem diretamente da questão de classes no Brasil e como esta é vivenciada por comunidades periféricas e negras (em especial a mulher negra brasileira) de uma maneira fora da curva acadêmica e elitizada que estamos habituados. Ou seja, a obra “Quarto de Despejo: diário de uma favelada” possui, tanto no seu desenvolvimento quanto em seu conteúdo, um forte caráter de classe.

A favela de Canindé

Para falarmos sobre os impactos e reflexões de sua principal obra, primeiro precisamos estar a par da história de Carolina, junto aos meios que dizem respeito ao momento de sua vida em que ela escrevia o diário que viria a se tornar o livro. Portanto, precisamos entender o cenário em que ela estava inserida (a favela de Canindé e sua comunidade) como um todo.

Nascida em Sacramento (MG), mudou-se para a capital de São Paulo quando ainda era criança junto de sua mãe, em busca de melhores condições de vida. Desde jovem, trabalhou como doméstica, assim como a mãe, até o momento em que engravidou de seu primeiro filho, João José de Jesus (1947). Então mudou-se para a favela de Canindé — onde morou pela maior parte de sua vida, trabalhando como catadora de papel para sustentar sua casa e família. E onde teve seus outros dois filhos: José Carlos de Jesus (1950-2016) e Vera Eunice de Jesus Lima (1953).

A favela de Canindé foi criada por uma ação municipal em 1948, à beira do Rio Tietê. Era formada por uma comunidade heterogênea, com pessoas advindas de várias regiões do Brasil, mas que existiam sobre o mesmo cenário e que estavam a par das mesmas experiências: falta de saneamento básico, acesso à moradia, condições mínimas de vida e educação, fome, violência etc.

A educação é um ponto em destaque aqui. A maior parte do povo de Canindé era analfabeto e não tinha acesso à educação básica, ou seja, a leitura e escrita eram vistos como algo completamente fora da realidade habitual da favela. Porém, quando criança, Carolina estudou por cerca de dois anos na escola Allan Kardec, estudos esses bancados por uma patroa de sua mãe.

Nesses dois anos, a autora aprendeu a ler e escrever vagamente e aprimorou seus estudos por conta própria ao longo de sua vida. A leitura era algo de extrema importância para ela, pois se tornou o seu principal (às vezes único) momento de lazer, enquanto que a escrita se tornou, como diz a poeta Conceição Evaristo, o seu movimento de fala.

Em uma realidade onde as vozes de mulheres negras são violentamente abafadas por forças sociais e mesmo estatais, a escrita acaba por se tornar o único meio que essas mulheres encontram para se expressarem, falarem, sangrarem. Conceição chama este exercício de Escrevivência, e sem sombra de dúvidas Quarto de Despejo é um dos principais exemplos que existem e que comprovam o ponto de Evaristo. A leitura e escrita não só estavam muito presentes no cotidiano de Maria, eram também suas mais importantes ferramentas de sobrevivência e expressão. 

No entanto, como dito anteriormente, a não alfabetização era majoritariamente presente no povo de Canindé. Na realidade, a educação era vista como inacessível, quase um artefato presente apenas nas classes dominantes. Portanto, Carolina era estranha para a comunidade. O fato de existir naquele cenário uma mulher negra letrada, que aproveitava seus poucos momentos de descanso para ler e escrever, entrava em conflito com a realidade social e econômica implicada com a periferia e sua população.

Era comum momentos de discussões e desavenças entre Maria e seus vizinhos. Por vezes ela e seus filhos eram humilhados, excluídos, contrariados e mesmo violentados verbal e fisicamente. Carolina tinha medo de sair para trabalhar e deixar seus filhos sozinhos, pois sabia que eles corriam o risco de apanharem. Mas essas violências não vinham só pelos vizinhos; ainda jovem, Carolina e sua mãe foram brutalmente abordadas e presas pela polícia. O motivo? Carolina estava lendo um dicionário, que foi “confundido” com um livro de feitiçaria. 

Dessas séries de discussões surge sua vontade de escrever um livro. 

” — Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradaveis me fornece os argumentos.” (Quarto de Despejo; Diário de Uma Favelada – Carolina Maria de Jesus, pág. 17).

Aqui, Maria de Jesus já reconhecia que as condições econômicas e sociais do sistema capitalista e sociedade racista ao qual estava inserida, junto das pessoas ao seu redor, influenciavam, fora suas capacidades e oportunidades de subsistência, também nas suas relações. Ela já enxergava que, mesmo com inúmeros conflitos, mesmo sonhando em sair da favela, o povo de Canindé estava disposto em um horizonte excludente, jogados às margens da sociedade para terem seus corpos diminuídos a sua força de trabalho e mão de obra analóga a escravidão, ao passo de que viviam com uma única torneira como fonte de água potável para sustentar toda a favela. Se compadecia com a deplorável situação de completa dependência emocional e econômica das mulheres da favela por seus maridos, mesmo que as considerasse “a pior parte da favela”. 

E sua reação diante de tanta indignação e sem conseguir entender tamanho sofrimento suportado por um povo, foi escrever. 

Mesmo com um aspecto que para muitos possa parecer insignificante demais para levar a tanta diferença de perspectivas (o acesso à escrita e leitura), Carolina ainda vivia sobre as mesmas condições dos demais; de manhã cedo, ainda se juntava à fila para buscar água na torneira enquanto lia o jornal para seus vizinhos. Ela ainda se juntava às demais mães e seus filhos em frente a um frigorífico para receber restos de carnes e ossos. Ainda contava centavos para conseguir passar mais um dia sem precisar recorrer aos restos de alimentos jogados no lixo. 

Maria se orgulhava de seus bons hábitos de estudo, mas não se colocava como superior a nenhum outro habitante de Canindé por ser detentora de habilidades que estão reservadas à “Sala de Espera”. Ela sabia e experimentava, assim como outras inúmeras mulheres pretas em situação semelhante, o que era ser uma mãe negra periférica, sustentando três filhos sozinha.

Por isso, se indignava ao ver políticos utilizando da fome de seus iguais para propaganda política em época eleitoral, entregando pães adormecidos aos moradores e fazendo promessas ambíguas e torpes. Agradecia a presença da igreja na favela com suas ações humanitárias, mesmo não sendo uma mulher religiosa. Se perguntava como um povo que vivia a beira do Rio Tietê poderia zelar por sua saúde em meio a epidemias, sendo que não existia a presença constante de agentes da saúde na favela.

Todos os dias, Carolina lutou contra a fome, que não era só sua, mas de um povo inteiro. 

“Os géneros alimentícios devem ser ao alcance de todos” (JESUS, 2014, p. 33).

O legado de Carolina segue vivo: as Carolinas do século 21

Pensemos, o quão presente ela se faz na atualidade? Segundo o relatório de 2023 da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), mais de 21,1 milhões de brasileiros estão em estado de fome, enquanto que mais da metade da população brasileira vive acompanhada da insegurança alimentar.

Isto com um recorte de outro dado tão alarmante quanto: são cerca de 7,8 milhões de pessoas que vivem em casas chefiadas por mulheres negras e 63% dessas casas são sustentadas com menos de um salário mínimo (IBGE). Mulheres negras ainda estão mais suscetíveis a fome, desamparo estatal, diversas situações de violência, abusos sexuais, falta de segurança, superexploração de sua mão de obra e etc.

Após quase seis anos de um avanço desenfreado do fascismo no espaço político brasileiro (dois anos do governo Temer e quatro anos do governo Bolsonaro), que assassinou mais de 600 mil brasileiros, deixou milhares de famílias vivendo com a fome e ignorando a situação da população negra periférica, ao passo de que financiava o seu massacre e diversos casos de violência contra corpos negros por parte da PM, mais do que nunca, a escrita e profundas reflexões políticas de Carolina se tornam presentes.

A quase 100 anos o Brasil assiste empresas enriquecendo em cima da obra intelectual de Carolina, enquanto a realidade vivida e registrada por suas mãos e brilhantemente continua se agravando e as nossas Carolinas do século 21 seguem sendo excluídas, violentadas e sobretudo exploradas por um sistema econômico que garante a um pequeno grupo o dinheiro capaz de alimentar todo o povo brasileiro.

Este sistema desumaniza o povo negro e os mantém na base de uma pirâmide social e econômica pesada e cruel a partir da força armada da polícia e apagamento histórico, cultural e social da população preta junto da exclusão de sua presença em meios políticos e educacionais.

Nestes 110 anos, lembremos: Mesmo tendo seu nome e máximas repetidos constantemente em vestibulares elitistas e sua história romantizada pela mídia burguesa, que teoricamente a deu a “oportunidade” de se tornar mundialmente famosa com seu livro, Maria morreu pobre.

Carolina morreu aos 62 devido a uma crise de insuficiência respiratória, sem dinheiro para conseguir pagar um tratamento adequado para sua saúde. Mesmo que com o dinheiro do livro ela tenha conseguido comprar uma casa e sair da favela, assim deixando de catar latinhas para sustentar a si e sua família, Carolina nunca deixou de ser explorada.

Mas também nos lembremos: Carolina não escrevia só sua miséria, mas a miséria vivenciada por um coletivo inteiro. E que, 47 anos depois de sua morte, ainda vivencia. Carolina foi uma escritora preta detentora de um discernimento político e compaixão para com o povo sem igual, junto a sua enorme revolta com a situação ao qual estava inserida junto a tantos outros milhares.

Ela discerniu de forma única, potente e necessária sobre o cenário periférico e negro brasileiro. Mesmo que as grandes empresas literárias e a burguesia brasileira tenham conseguido tirar proveito de seu trabalho, Jesus sempre expôs as desigualdades de classe do nosso país de uma forma que jamais deve ser esquecida ou diminuída.

Carolina de Jesus foi uma professora e inspiração para inúmeras outras intelectuais dos séculos 20 e 21, e também para inúmeras mulheres e jovens negras. Seu legado não deve ser baseado em um discurso que apenas favorece aqueles que a exploraram, mas na sua luta e representação. Ao focarmos nossa atenção nas pessoas que Maria representa, percebemos que sua foi uma luta essencialmente coletiva. A escrita de Carolina Maria de Jesus é revolucionária e a 110 anos ela se faz presente!

*Coordenadora estadual do Movimento de Mulher Olga Benário e militante da UJR no estado de Goiás

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