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sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Sem justiça, sem paz: três meses do assassinato de Guilherme na Vila Clara

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VERA LÚCIA RODRIGUES – Guerreira e avó de Guilherme, jovem torturado e assassinado pela Polícia Militar. (Foto: Isis Mustafá/Jornal A Verdade)
“E cê vê que agora é assim… deu sete horas, cê não vê nenhum menino no portão, eles têm medo. O pessoal fala: ‘ah, tem medo de ladrão’. Não! Ninguém aqui tem medo de ladrão. Não tem mesmo. Aqui, a gente tem medo é das polícia, de polícia. Ladrão a gente não tem medo.”
Isis Mustafa e Gabrielle Guinlle

SÃO PAULO (SP) – Mais um jovem negro teve sua vida tirada pelas mãos da Polícia Militar em 14 de junho deste ano, nas ruas da Vila Clara, divisa da capital paulista com Diadema. Guilherme da Silva Guedes, 15 anos, foi sequestrado por dois policiais à paisana na frente da casa da avó.

O jovem negro foi encontrado, horas depois, em Diadema, com dois tiros na cabeça e com muitas marcas de tortura.

A comunidade se revoltou com a violência policial recorrente contra a juventude do bairro e iniciou protestos na região que resultaram em avenidas fechadas e ônibus incendiados por toda a semana.

A Zona Sul de São Paulo é a região mais violenta da capital: registra 1 a cada 5 dos homicídios que acontecem na cidade. No primeiro semestre deste ano, a Polícia Militar de São Paulo matou 498 pessoas, equivalente à um terço do total de homicídios no estado.

O Jornal A Verdade escutou dona Vera Lúcia Rodrigues, 52 anos, avó do Guilherme, moradora da Vila Clara, zona sul de São Paulo. Guilherme morava com ela.

Vera, fala um pouco de você, se apresenta, fala do seu trabalho, da sua história aqui no bairro.

Meu nome é Vera Lúcia Rodrigues. Moro aqui desde quando nasci, nessa casa mesmo. Aqui até que era um lugar bem sossegado antes de fazer esse parque. Mas as crianças não brincam mais, depois das cinco horas ninguém passa mais, não tem luz […] se não fosse isso aí o Guilherme estaria vivo até hoje. Antes de fazer esse parque era um muro aqui, era fechado, jamais esses policial ia entrar aí pra fazer o que eles fez.

Como o Gui era?

Ah, o Gui era, sempre foi desde pequeno um menino muito carinhoso. Não saía, não ia para baile. Eu trabalhava e ele ficava com a Giovana para mim, porque sou diarista. Aí, agora que eu não ‘tô trabalhando por causa desse coronavírus, mas sempre foi ele que ficou dentro de casa. Um menino muito amoroso. [Eu] ‘tava no serviço, ele ligava quando ele queria ir na mãe dele, ele pedia pra mim, “vó, eu posso ir?”.

Era um menino que ele tem 15 anos, mas uma mentalidade de 10. Sabe esses menino molecão mesmo? Eu tenho até uns áudio dele aí. Ele era muito besta, muito… Sabe? Tudo dele era piada. Tudo.

Depois do que a polícia fez, o bairro ficou mais mobilizado? As pessoas ficaram mais indignadas?

Ah, ficaram. E cê vê que agora é assim… deu sete horas, cê não vê nenhum menino no portão, eles têm medo. O pessoal fala: ‘ah, tem medo de ladrão’. Não! Ninguém aqui tem medo de ladrão. Não tem mesmo. Aqui, a gente tem medo é das polícia, de polícia. Ladrão a gente não tem medo. Aqui é um bairro que cê pode deixar um botijão de gás aí e ele vai amanhecer aí, entendeu? Agora, cê vê os menino que ficava brincando aqui nesse parquinho? Não fica. As mãe não deixa, tá tudo com medo. Eu já vi menino vizinho meu que de ver carro de polícia, eu reparei assim, entrando pra dentro de casa com medo.

E fica com medo por quê? O que a polícia faz?

Eles passam e intimidam. Esses dias pegaram um menino aqui, aqui na frente do meu muro. Eu saí para fora, eu falei: ‘Eu tô vendo tudo!’. O policial perguntou para o menino: ‘Tem documento?’. O menino respondeu: ‘Não, o documento tá em casa’. O menino deveria ter uns 17 anos. Eu só escutei a pancada no meu muro. Eu falei: ‘Não, eu não acredito’. Quando eu saí, eles estavam batendo na cabeça do menino. Eu falei: ‘Eu tô olhando’ e peguei o celular e liguei. ‘Tô filmando. Eu conheço o menino, ele mora aqui, ele não é ladrão. Por que vocês tão fazendo isso?’. O policial disse: ‘Ah, entra pra dentro!’. Eu falei: ‘Não, não vou entrar!’. ‘Tá sem documento’, o policial falou. Eu falei: ‘Então você espera que eu vou chamar a mãe e o pai dele, mas vocês não vai [sic] bater nele’.

É assim que acontece aqui, eles não respeitam ninguém, ninguém, ninguém… Não respeita. Cê tira pelas filmagem no dia do protesto do Guilherme que fizeram aí, o tanto que apanhou lá em cima. Teve pessoas que foi parar no hospital.

Se fosse bairro rico não fazia, né…

Não fazia. Você não vê em Moema, Morumbi, um filho de rico que foi espancado, um filho de rico morreu por engano. Não! Você não vê esse tipo de coisa. Na periferia as pessoas é mais unida. Aquele protesto aconteceu porque todo mundo sabia que o Gui era um menino que nunca roubou, nunca usou droga. Era um menino que não saía. Então, por isso que todo mundo se revoltou e fez o que fez.

Assim como aconteceu com o Guilherme, antes dele já tinham acontecido outros casos aqui no bairro?

Já, bastante. Com polícia já, aqui em cima, na Vila Clara, eles matam, colocam uma arma na mão do menino e diz que ele atirou. Mentira! Não atirou. Nós já viu vários… teve pessoas que filmou polícia chegando e matando. O cara com a mão pra cima, eles atirando e depois falou que tinha dado tiro em cima deles.

Por que você acha que a polícia faz isso aqui no bairro?

Você vê esse [policial] que matou o Guilherme, tem 89 homicídios. Antes do Gui, ele tinha matado o menino cego… a vó dele deu uma reportagem: ‘olha, o que tá acontecendo? Tem quatro anos que mataram meu neto, nunca me deram uma resposta. Só tá dando agora por causa do caso do Guilherme’. Porque ela nunca teve uma resposta, nunca. Pra ela, o policial estava preso.

Como você acha que os moradores aqui do bairro podem se organizar para isso parar de acontecer, para exigir justiça e para que não aconteça mais uma história como a do Guilherme?

Para ter uma justiça, o único meio que o pessoal acha é esses protestos, porque é aí que chama a atenção das mídias, chama tudo, vem todo mundo, porque, caso contrário, não adianta. Então, enquanto não prender ele, eu falei mesmo pra mãe do Guilherme: ‘vocês têm que fazer sim [o protesto]’. Tem que chamar a atenção deles. Nós não esqueceu. Vocês esqueceram?

Cadê o cara que não tá preso ainda? Cadê esse policial? Porque eu não sei como eu vejo na televisão eles [os policiais] indo atrás de ladrão, eles sai mais de cem policial e consegue achar [fugitivos] e um cara desse ninguém acha. Ele não é invisível. Ele tá em algum lugar, tem como achar ele sim. A não ser que alguém da polícia mesmo tá ajudando ele a se esconder, que é o certo que eles tão fazendo…

Vera, você pode contar como foi a história dos meninos que entram no Roldão?

Esses menino mora lá na Vila Clara. O Roldão colocava coisa vencida na rua pra fora do mercado, aí acho que teve um problema com uma criança que se intoxicou. Agora, eles põem no fundo do mercado aquelas caçamba cheia de coisa vencida. Esses menino, que fala que passa até fome, eles não foi roubar a SABESP (onde ele [o policial] fazia a segurança), eles pulam para chegar no muro do Roldão, tem que pular o muro da SABESP, foi o que eles fez. Eles pulou o muro da SABESP para chegar no Roldão, isso às dez horas da noite, para pegar coisa vencida, chocolate, bolacha, carne… isso não é nem um roubo. Você vê que não teve nenhuma ocorrência. Na mochila o que tinha era bolacha vencida, era danone vencido, um pedaço de acém vencido… aí, foi o que o delegado falou, [que] isso não é um roubo, não é um roubo porque eles tava mexendo no lixo. E, assim, nem o Roldão fez B.O. [boletim de ocorrência], não fez nada. Então, eles [os policiais] fez de maldade, só porque os menino pulou dentro da SABESP, que é onde eles toma conta, entendeu? Foi isso que aconteceu. Depois, os menino foi todos depor, nenhum foi preso, não foi nada porque não foi um roubo.

Eles não estão aqui para combater crime algum, né?

Não, eles estão para matar. Só para matar. Porque não tinha nem necessidade deles fazer isso. Não tinha […]

Vera, o Jornal A Verdade roda em todo país entre mulheres trabalhadoras, entre o povo morador de ocupação, gente pobre, e muitas mães têm histórias parecidas com a sua, muitas famílias têm histórias assim. Você gostaria de deixar algum recado para essas mulheres, essas mães, essas avós que também perderam seus filhos?

Que nunca desistam. Nunca desistam. Uma hora a gente consegue fazer justiça, a gente consegue. Eu não desisti!

O assassinato de Guilherme não pode apenas ser mais um caso, não podemos deixar que as centenas de vidas tiradas pelas mãos da PM sejam esquecidas: na Vila Clara, o povo se revoltou e mostrou o poder das ruas contra o fascismo e a violência policial.

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