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quarta-feira, 24 de abril de 2024

O bumba-meu-boi e a resistência cultural no Maranhão

TRADIÇÃO POPULAR – Boi princesa na capital do Maranhão. (Foto: Reprodução)
Caio Cruz

SÃO LUÍS (MA) – A brincadeira do boi é muito popular no Brasil, podendo ser encontrada nas mais diversas regiões do país e sendo diferente de região para região. No Maranhão, a brincadeira é caracterizada por pertencer às festas juninas, com especial devoção a São Pedro, São João e São Marçal, em nome dos quais, em boa parte dos grupos, o boi é sacrificado como forma de se pagar uma promessa. Em seu mito de origem, é popularmente conhecida a narrativa sobre uma negra chamada Catirina que, durante a gravidez, sentiu o desejo de comer a língua de um boi da fazenda em que seu marido, Pai Francisco, trabalhava. Como o boi não resistiu a ter sua língua arrancada e morreu, o dono da fazenda ordenou que Pai Francisco o curasse, o que foi feito com a ajuda de pajés indígenas.

Nos arraiais maranhenses, os bois se apresentam como grupos, portando instrumentos e indumentárias imprescindíveis para a construção dos personagens típicos da brincadeira. As diferenças entre os grupos são marcadas de diversas formas, podendo ser percebido pelo nome, pelas cores e pelas diferentes formas de tocar, vestir e dançar, chamados de sotaques. E, assim, quase toda cidade ou região apresenta um sotaque próprio.

A relação do bumba-meu-boi com o Estado do Maranhão é marcada por perseguições e proibições. Brincadeira de origem negra, até os dias atuais ela enfrenta o racismo da sociedade e do Estado na sua continuidade.

Para servir como instrumento de luta não somente para o boi, mas também para todas as outras manifestações da cultura afro-brasileira maranhense, foi criado, em 2006, na cidade de Caxias –cidade de médio porte do interior do Maranhão –, o Centro de Folclore e Arte Popular de Caxias (Cefol), com o objetivo de colaborar para a salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro. A entidade foi idealizada pelo artista e mestre de cultura popular Antonio Cruz e fundada a partir da junção de diferentes segmentos da cultura popular: a escola de samba Malucos por Samba, fundada em 1950; o bumba-boi Brilho da Princesa, fundado no ano 2005; os caixeiros de São Sebastião, fundado em 2002; e o grupo de tambor de crioula Mafuá do Negro Cosme, fundado em 2006.

Em 2013, o Cefol inaugurou o Museu Dinâmico Folclórico na sua própria sede, proporcionando acesso gratuito e mediado ao seu acervo de instrumentos e indumentárias da cultura popular e afro-brasileira encontrada no Maranhão e desenvolvendo atividades em parceria com instituições de ensino da rede pública. Em 2020, esse equipamento foi reconhecido pelo Ministério do Turismo como Museu, e Caxias ganhou o seu primeiro museu de cultura popular.

Isso representou uma vitória do esforço e da luta de diversos mestres e grupos de cultura popular da cidade que se envolveram na construção do Cefol e, em especial, da devoção religiosa do fundador Antônio Cruz.

Homem, negro e pobre, Cruz nasceu no povoado Pé de Abóbora, em Caxias, no Maranhão, em 1950. Sua mãe era quebradeira de coco e seu pai agricultor. Desde os sete anos de idade, ele viajava do interior para a zona urbana em um jumento para vender coco, café e água para custear os estudos. Foi no interior que, aos cinco anos, teve seu primeiro contato com o mundo da encantaria ao encontrar uma mãe d’água nas águas doces da região, um encontro tão surpreendente que quase o fez perder a voz, deixando-o gago. A busca por uma cura para esse problema o levou a se iniciar na umbanda, e, dentro dos terreiros que frequentou, aprendeu sobre os mais diversos tambores e ritmos, tanto de religiões de matriz africana quanto da cultura popular do Maranhão. Seu talento o levaria a uma carreira de sucesso em teatros e salas de concerto de diversos países como México, EUA, Canadá, Portugal e muitos outros, entre 1975 e 1985.

Encantou-se no dia 24 de agosto de 2019, durante uma apresentação de bumba-boi na mesma data em que se celebra o Dia do Artista e de Oxumaré, orixá da transformação, do movimento, dos ciclos e da continuidade. Antonio Cruz deixou romances, peças de teatro, musicais e manuais de instrumentos de percussão inéditos, alguns escritos em espanhol, além de composições dos mais diversos gêneros e grandes toadas de boi gravadas no coração dos caxienses.

Atualmente, além das atividades culturais, o Cefol desenvolve atividades educacionais, oferecendo aulas de inglês, português e reforço escolar para crianças e adolescentes da periferia da cidade. Sem possuir convênio com o Estado, ou qualquer outro tipo de apoio institucional, ele sobrevive do esforço de voluntários, das suas apresentações artísticas e de doações. E, apesar disso, destaca-se como uma das mais atuantes entidades culturais da cidade e como um território negro de resistência e tradição onde toda a crueldade do sistema colonial racista e classista ainda em vigor no Brasil é exposto e o futuro é desenhado com fogo, tambores e toadas.

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