Miguel Fegadolli
SÃO PAULO (SP) – O Jazz, enquanto gênero musical e fenômeno social, se forjou no seio da classe trabalhadora norte-americana nos confins do século XIX, a partir, principalmente, de alguns pilares culturais fundamentais.
A população trabalhadora africana e afro-americana – recém liberta das amarras da escravidão institucional – desenvolveu e preservou elementos da cultura musical de seus antepassados com destaque para os spirituals que surgiram como cantos de trabalho entoados nas plantações de algodão.
Esses elementos tinham enfoque nos ritmos e escalas (conjunto de notas musicais) africanas e também entraram em contato e se adaptaram a escalas da música erudita europeia e dos instrumentos de sopro metálicos característicos das bandas marciais (cornetas, trompetes, clarinetes, etc.) – muitos de origem francesa.
Além disso, os processos históricos desencadeados pela colonização implicaram também no uso da língua inglesa e a incorporação da religião cristã nas religiões de matriz afro.
Saiba mais: Jazz: a Origem desta Palavra
No desenvolvimento da fusão destes e alguns outros componentes o Jazz passou a ganhar forma no fim do século 19 e no início do século 20 em um cenário de nascente industrialização. O local conhecido por seu célebre nascimento é a cidade de Nova Orleans, no estado de Luisiana (sul dos Estados Unidos), que, na época era uma grande referência cultural e uma das capitais boêmias com intensa vida noturna e uma alta demanda por bandas musicais.
Os desfiles públicos em carroças desempenharam um papel especial no processo de formação do gênero com os músicos tocando seus instrumentos de sopro e o povo saindo das casas e do comércio para ver a banda passar; posteriormente, estes musicistas passaram a tocar em estabelecimentos, botecos, festas nos bairros populares, teatros, etc.
O primeiro gênero musical genuinamente norte-americano foi o estilo de Jazz conhecido como Ragtime (ragged, em pedaços ou irregular e time, tempo, denotando um sentido de síncope ou acento nas notas), uma música de caráter extremamente popular caracterizada muitas vezes como alegre, para se ouvir e dançar.
Foi após a Primeira Guerra Mundial – em que os EUA forneceram recursos bélicos e financeiros para as forças da Entente resultando em sua imensa ascensão política e econômica – em meados do século 20, que o Jazz passou a se tornar uma grande referência, um fenômeno norte-americano e global.
É evidente, no entanto, que o Jazz nunca foi um gênero do gosto da maioria da população já que sua característica inicial foi a linguagem musical de uma parcela da comunidade negra nos EUA.
Posteriormente, quando do desenvolvimento dos meios técnicos de gravação e distribuição musical neste cenário de “milagre econômico” pós-guerra nos EUA, o seu público se expandiu, em partes, pela juventude norte-americana de diversos setores sociais numa expansão comercial interna e também pela sua conquista do exterior, passando o seu público a se constituir de maioria estrangeira para onde se dirigiam os músicos estadunidenses com frequência.
Na década de 30, marcada pela ascensão do gênero swing, os músicos que inicialmente aprendiam a tocar de forma autodidata e tocando uns com os outros, improvisando sobre temas de músicas pop, passaram a organizar as conhecidas Big Bands (Bandas Grandes), conjuntos de orquestra como as de Duke Ellington e Benny Goodman em que diversos grandes nomes puderam se desenvolver.
Nestes períodos iniciais os músicos não faziam uma distinção rígida entre Jazz – um gênero marcadamente não-padronizado – e a música pop mais inclinada ao mercado. Sendo frequentemente caracterizada por agitada e até barulhenta, um dos propósitos das performances desempenhadas era sobretudo proporcionar a dança (além dos incontáveis elementos da expressão artística), um entretenimento em ascensão para a juventude.
Todavia, essa relação mudou totalmente no início da década de 40. Com o surgimento do Jazz Moderno (inicialmente o Bebop e o cool jazz, em 1950) quando os músicos se voltaram contra a indústria e até contra o público por sentirem uma limitação no cenário pop para uma padronização e processamento de hits e canções comercializáveis. Passaram então a desenvolver tecnicamente o Jazz a níveis nunca antes vistos, retomando inclusive influências da música erudita e organizando sessões entre músicos para realizar improvisos, re-harmonizações, disputas técnicas, etc.
Esse avanço demonstrou o quanto poderia se desenvolver uma música que surgiu em um cenário pré-industrial no seio da classe trabalhadora trazendo inovações técnicas e sendo reconhecida em diversos meios intelectuais, servindo inclusive como meio de ascensão e emancipação social para um determinado setor de uma sociedade drasticamente marcada pelo racismo. Mas esse mesmo processo acabou gerando um certo distanciamento da própria base popular da qual ela se originou.
Além disso, mesmo que alguns nomes tenham se destacado mais do que outros, o fator de identificação com as causas de luta contra as opressões e até mesmo a marginalização do próprio Jazz levou diversos artistas do gênero a se vincularem a movimentos de esquerda.
Entendendo que o Jazz Moderno, sobretudo o Bebop, foi um movimento de vanguarda da cultura que trouxe elementos que não foram acompanhados por uma assimilação geral do público no cenário cultural em comparação a suas fases anteriores, vemos que a educação musical mais desenvolvida passou a ser um requisito para se apreender e compreender o gênero, e, apesar de neste período o público de ouvintes brancos ter se expandido, a maioria dos músicos de destaque do gênero eram negros, tais como Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, John Coltrane, Billie Holiday, Charlie Parker, Nina Simone e Miles Davis.
Posteriormente, com as mudanças sociais em voga, e com a revolução musical dos anos 60 na advinda do Rock´n´roll, as influências e ramificações que o Jazz traça são inúmeras e a sua fusão com outros gêneros, tais como o próprio Rock, o Samba, o Hip-hop ou gêneros marcadamente pré-industriais geram possibilidades e dinâmicas musicais que merecem um olhar mais aprofundado, certamente.
O Jazz, em contraste com alguns gêneros musicais, destaca muito mais a individualidade do artista e a interpretação do que a composição musical em si dada a possibilidade de variações e improvisos frequentemente exercidos pelos musicistas em suas performances e a forma como os integrantes das bandas se organizam.
Em relação à influência da indústria cultural e do comércio de música, tendo em vista o enorme peso que o capitalismo exerceu no desenvolvimento da história social do Jazz e de outros gêneros de origem pré-industrial, vale destacar que a relação entre a Indústria pop e estes gêneros é de caráter duplo, pois, ao mesmo tempo que a indústria cultural apenas, na maioria, processa aquilo que pode ser comercializável e absorve as inovações que estas músicas fornecem, os músicos profissionais, sob o sistema capitalista, dependem e recorrem a esta Indústria para sustentar o seu ofício, visando o contato com o Público e com o comércio, numa fusão de dois polos.
É evidente, no entanto, que a música popular conforme se associa mais ao comércio e ao grande público, influenciado pelos gigantes monopólios da indústria da música (dado o seu controle sobre os meios de produção, gravação e distribuição musicais), mais ela é cerceada e limitada pelos moldes dessa mesma Indústria, ou seja, apenas em um sistema que valorize e apoie materialmente as iniciativas de música e cultura popular teremos de fato uma liberdade de expressão cultural sem as amarras que possuímos atualmente, em que boa parcela dos artistas constantemente se submete ao poder e à vontade do Capital.
Para maior detalhamento e profundidade sobre o tema exposto nesta matéria, recomendo a leitura da obra: “História Social do Jazz” do historiador marxista Eric J. Hobsbawm.