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sábado, 23 de novembro de 2024

Áudios do Superior Tribunal Militar comprovam que houve tortura na ditadura

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Heron Barroso | Redação

BRASIL – A recente revelação de áudios de sessões do Superior Tribunal Militar (STM), obtidos pelo advogado Fernando Fernandes e pelo historiador Carlos Fico, da UFRJ, reafirma um fato de todos conhecido: a prática sistemática de tortura contra opositores da ditadura era do conhecimento do Alto Comando das Forças Armadas.

Ao todo, são mais de 10 mil horas de gravações, onde os generais-ministros do STM comentam denúncias de tortura e maus tratos contra presos políticos. Um deles foi Nádia Lúcia do Nascimento, que estava grávida de três meses quando sofreu aborto após choques elétricos na genitália ao ser torturada no DOI-Codi. “Alguns réus trazem aos autos acusações referentes à tortura e sevícias das mais requintadas, inclusive provocando que uma das acusadas (Nádia) abortasse após sofrer castigos físicos”, disse o general Rodrigo Octávio Jordão Ramos, na sessão de 24 de junho de 1977.

Em outro momento das gravações, uma voz ainda não identificada pelos pesquisadores relata: “Eu sou revisor de um processo que aparece que eram quatro indiciados no inquérito, todos eles confessaram direitinho na polícia que tinham tomado parte. Uns acusaram os outros, mas na ocasião do sumário ficou provado que um deles não tinha nada a ver com a história. Esse trabalhava direitinho. Por que razão ele havia confessado? E ele disse: ‘Ou a gente confessa ou entra no pau’. E é o que está acontecendo. Eles apanham mesmo. Por isso, quando vejo um inquérito na polícia eu fico logo com um pé atrás”.

Num dos áudios, o ministro Waldemar Torres da Costa confessa certo “desconforto” com os relatos de torturas. “Começo a pedir a atenção dos meus eminentes pares para as apurações que são realizadas por oficiais das Forças Armadas. Quando as torturas são alegadas e às vezes impossíveis de ser provadas, mas atribuídas a autoridades policiais, eu confesso que começo a acreditar nessas torturas porque já há precedente”.

Já o almirante Julio de Sá Bierrenbach, em raro momento de “escrúpulos de consciência”, disse a seus colegas fardados ser “tempo de acabarmos de uma vez por todas com os métodos adotados por certos setores policiais de fabricarem indiciados, extraindo-lhes depoimentos perversamente pelos meios mais torpes, fazendo com que eles declarem delitos que nunca cometeram, obrigando-os a assinar declarações que nunca prestaram e tudo isso é realizado por policiais sádicos, a fim de manterem elevadas as suas estatísticas de eficiência no esclarecimento de crimes”.

Porém, a preocupação maior dos generais-ministros não era com a integridade física dos presos ou com os direitos humanos, mas que as denúncias de torturas e maus tratos não chegassem à opinião pública, como afirmou à época o almirante Bierrenbach: “Quando aqui vem à baila um caso de sevícias, esse se constitui um verdadeiro prato para os inimigos do regime e para a oposição ao governo. Imediatamente, as agências telegráficas e os correspondentes os jornais estrangeiros, com a liberdade que aqui lhes é assegurada, disseminam a notícia e a imprensa internacional em poucas horas publicam os atos de crueldade e desumanidade que se passam no Brasil”.

Por isso, mesmo tomando conhecimento dos bárbaros crimes promovidos nos porões da repressão, os membros do STM nada fizeram. Ao contrário, seguiram firmes defensores da ditadura, se calando e acobertando graves violações dos direitos humanos. Foi apenas graças à resistência popular e às denúncias feitas dentro e fora do país por ex-presos políticos, religiosos progressistas, jornalistas e organizações de defesa dos Direitos Humanos, que a ditadura foi aos poucos sendo encurralada, desmascarada e impedida de seguir sequestrando, torturando, estuprando e executando impunemente.

“Apenas ignoramos”

As Forças Armadas não reconhecem oficialmente a prática de tortura nas suas dependências, com autorização ou conhecimento dos seus comandantes, apesar de todos os testemunhos, evidências e provas materiais já apresentados. Isso é grave, pois o reconhecimento e a autocrítica seriam sinais de desaprovação e compromisso público de não repetir essa prática abominável. A negativa ou o silêncio deixam aberta a possibilidade de repetição.

Mesmo após a divulgação dos áudios do STM, o atual presidente do tribunal, general Luis Carlos Gomes Mattos, disse cinicamente que a nova denúncia “não estragou a Páscoa de ninguém. A minha não estragou. Garanto que não estragou a Páscoa de nenhum de nós”.
Segundo ele, a divulgação dos áudios é “notícia tendenciosa” com o objetivo de “atingir” as Forças Armadas. “Nós não temos resposta nenhuma para dar. Simplesmente ignoramos uma notícia tendenciosa daquela, que nós sabemos o motivo, né?”, afirmou o general-ministro, indicado ao STM pela ex-pre-sidente Dilma Rousseff (PT).

O Superior Tribunal Militar é composto por quinze ministros, que recebem um polpudo salário de R$ 38.238,73 e cujos cargos são vitalícios. Entre os magistrados, há quatro representantes do Exército, três da Marinha e três da Aeronáutica. Os demais são civis, mas profundamente vinculados às Forças Armadas.

Reportagem publicada no ano passado pela Folha de S.Paulo mostrou que somente um oficial de alta patente foi condenado pelo STM nos últimos dez anos. Trata-se de um contra-almirante condenado por lesão corporal culposa em 2015. Sua pena foi de apenas dois meses de detenção. Esse mesmo STM, condenou três civis a dois anos de prisão por picharem o muro de um quartel em 2021, enquanto arquivou pelo menos vinte investigações contra militares.

“Não há dúvida que houve tortura”

Para o historiador Carlos Fico, os áudios comprovam, mais uma vez, as conclusões do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014. “Não há dúvida que houve tortura, isso é óbvio. É até um pouco reiterativo, repetitivo dizer que houve tortura. Houve. Ponto final”, disse o professor da UFRJ.

A Comissão foi enfática ao afirmar que, durante os anos de ditadura militar, o Estado brasileiro praticou, “de forma massiva e sistemática”, prisões ilegais, torturas, espancamentos, assassinatos, estupros e o desaparecimento de milhares de pessoas.
No relatório são descritos os tipos de tortura e métodos usados pelos militares para obter informações de presos políticos, tais como o pau-de-arara, afogamento, unhas e mamilos arrancados, corpo queimado com vela, cigarro ou maçarico, simulação de execução, estupro.

E mais: 377 pessoas foram listadas como diretamente responsáveis por esses crimes. Apesar disso, passados mais de sete anos desde a conclusão dos trabalhos da CNV, praticamente nenhuma de suas recomendações saiu do papel.

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